domingo, 23 de março de 2014

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Essas máquinas que nos amam "

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Essas máquinas que nos amam
Estado de Minas: 23/03/2014




Algumas pessoas viram aquele filme Ela e me convenceram a assisti-lo. Fui. Era sobre um homem que se apaixona por uma voz. Quando me contaram isto até disse: conheço uma estória parecida. O Afonso Borges, do Sempre um papo, me contou de um amigo que se apaixonou pela voz de uma portuguesa no GPS que ele usou lá na Europa. Ficou tão ligado nela que comprou a voz, levou-a para sua casa no Brasil para amá-la sonoramente.

De alguma maneira somos seduzidos por vozes. Dizem que Joana d’Arc ouvia vozes que lhe davam ordens. Não eram dessas que nos atormentam hoje. Eram mensagens celestes.

 Por exemplo: ligo para um desses serviços telefônicos para reclamar sobre a TV. E a máquina me atende com tanta intimidade que não sei se me apaixono ou se rio de mim mesmo. A moça na máquina é impecável, minha amiga de infância, diz aquelas expressões que os linguistas chamam de linguagem fática: interjeições, expressões que não dizem nada, mas servem para dar naturalidade à fala e para pontuar o discurso: “Ah! que bom, então, né, pois bem…”.

A pessoa que fez o texto dessa gravação é um craque em diálogos. Muito natural. Mas não estou querendo conversar com essa moça ou máquina simpática. Quero é resolver o problema. Estou há 45 minutos ouvindo gravações de publicidade de toda ordem e ela dizendo coisas amáveis.

Mas voltemos aos filme Ela. Aí a coisa chega ao paroxismo. Mostra um tempo futuro em que não se escreviam mais cartas. No entanto, um cidadão vivia de escrever cartas para as pessoas. Ele as ditava, o texto saía manuscrito e era enviado para indivíduos solitários, que se comoviam. Como se vê, ele era o personagem ideal para se apaixonar por uma voz.

Ele aceita o convite para entrar num programa ultramoderno e se relacionar com uma voz que passa a ser seu segundo ego. Uma espécie de secretária ultraeficiente, que lê os e-mails dele e vai ficando tão íntima que acaba se apaixonando por ele. Ele também por ela, é claro. Mas como amar uma abstração, uma voz sem corpo? Bem que o roteirista tenta introduzir algo picante: o homem tendo relações eróticas com a voz. E como não bastasse, resolve meter lá um amor a três. Creio que os roteiristas se divertiram muito com isso.  Havia uma cliente disposta a ser o corpo da voz e aparece para o ménage à trois. Que não dá certo.

 O problema piora porque o rapaz fica sabendo que a voz é “íntima” de uma centenas de pessoas. Ou seja, não era monógama, era uma voz de utilidade pública (e às vezes, púbica).

Vocês já perceberam que que achei o filme fraco, quase ruim. Longo demais. Mas teve gente que amou. E muitos sabem até o nome da atriz dona daquela voz: Scarlett Johansson. Um amigo foi assistir a uma peça de teatro em Nova York com aquela atriz só para ver a incorporação da voz na pessoa propriamente dita.

A película pretende retratar um mundo futuro em que a virtualidade nos deixará atônitos. Coisas que estavam em Blade Runner e em Matrix.

Outra forma de entender o filme é concebê-lo como um tratado da solidão na sociedade futura. O cenário é meio indicativo disso, e tudo termina com a “morte” (ou desaparecimento) da voz. No fim, mostram um homem e uma mulher desamparadamente solitários.

Matar a voz foi uma solução fácil dos roteiristas. Não é de hoje que o autor liquida o personagem quando não sabe o que fazer dele. Oswald de Andrade expulsou um personagem de seu romance.

Mas voltando à vida real, deparo-me com uma voz intransponível que não me dá afetos, mas só aborrecimentos. Ligo milhões de vezes para o Decolar.com e não me atendem, ou quando atendem, como uma máquina pouco amorosa, não conseguem dar solução aos equívocos de uma passagem que comprei para Bolonha.

Era melhor quando eu ia pessoalmente a uma agência de viagem. Como dizem os italianos: “Estávamos melhor quando estávamos pior”.

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