sábado, 2 de agosto de 2014

Alma do mundo 
 
O escritor irlandês William Trevor mostra os dilemas, as alegrias e os fracassos da condição humana no romance A história de Lucy Gault
Estado de Minas: 02/08/2014


William Trevor, mesmo mergulhando nos dilemas humanos, gosta de se definir como um contador de histórias (Phillip Sollis/Divulgação)
William Trevor, mesmo mergulhando nos dilemas humanos, gosta de se definir como um contador de histórias

A Editora Globo acaba de lançar A história de Lucy Gault, do irlandês William Trevor. Inédita no Brasil, a obra foi finalista do Man Booker Prize e do Whitbread Novel Award. William Trevor percorre uma estrada de assombros. A história não poderia ser mais simples, como são simples as melhores coisas. Uma pequena garota, acuada pelo pavor de deixar sua terra, comete um ato de desespero que transforma sua vida e a de sua família. E é justamente a partir daí que tudo vai sendo moldado, num compasso de espera: os dias se confundem, as imagens, a memória e os objetos da casa passam a fazer parte deste grande tecido, costurado com apuro, sem perder as delícias da delicadeza.

No verão de 1921, quando a tensão política na Irlanda chegava ao limite com a Guerra da Independência, a pequena Lucy vê o destino de sua família sofrer uma reviravolta inesperada. Um acidente que envolve seu pai, um militar protestante e proprietário de terras, com um rebelde, morador da pequena cidade litorânea em que vivem, obriga a família Gault a sair da Irlanda, quando vê sua propriedade e suas vidas ameaçadas.

Lucy, ainda menina, contudo, se recusa a deixar a paisagem que lhe é tão querida e arma uma situação para obrigar a família a ficar ou, pelo menos, expressar seu imenso desgosto com o fato. Entretanto, um golpe do acaso, grande tecelão de todo esse enredo, dá início ao longo bordado a ser tecido por Lucy. Tudo isso, essa teia chega envolvida num turbilhão de afetos e desafetos. Existe, para todos os viventes, a espera, a culpa, o medo, a ansiedade e, acima de tudo, também a esperança.

Trevor conduz o leitor com mãos de mestre ao criar este belo – e triste – livro, que leva Lucy Gault da infância à maturidade. A delicadeza da narrativa, as tocantes descrições (da praia, das relações humanas, dos objetos, como também os diálogos, rápidos, cortantes como lâmina de faca) e a beleza de suas pequenas invenções para fazer passar os dias fazem com que Lucy (e também o leitor) se iluda com a passagem do tempo, embarcando numa fábula de certezas sempre incertas.

Certos lugares carregam, trazem dentro de si, doses de luminosidades, cargas de força e presença. Uma lembrança, uma espera, um presente, um carinho, um lugar. A casa da família Gault: “Não havia nenhum outro lugar em que pudesse ser mais feliz do que sob aquele telhado de ardósia da construção acinzentada de três andares, a pedra contrastando com a suavidade da madeira branca das janelas, e a delicadeza da claraboia sobre a porta branca da entrada”.

Trevor escreve com carinho e isso transparece como um belo presente para o leitor. É possível enxergar a casa, adentrar para sentir os cheiros, para, acima de tudo, conhecer as pessoas, que não são, apenas, personagens. Ler é como abrir janelas. “Os cômodos que davam para os fundos no andar de cima tinham vista para o mar até o limite do horizonte.” Assim, uma casa, um lugar podem fazer parte de uma pessoa tanto quanto os traços de sua personalidade, de seu rosto. A alma, o espírito humano, também é casa e morada.

Por vezes, os longos relatos, cheios de pormenores, acabam chateando o pobre leitor, que se perde num enfado, em tantos detalhes, muitas vezes desnecessários. Não é o caso de William Trevor. Ele fala de situações, de lugares, de circunstâncias, de pessoas, e se as descrições tornam-se minuciosas isso não afeta o bom andamento da prosa. Trevor apenas molda, lapida situações para auxiliar e para acrescentar temperos à história, na medida e no tempo certos, emprestando a tudo uma aura de sonho e beleza. Ainda que a história seja, sim, triste.

Abrir portas Palavras foram feitas para levitar. Palavras foram feitas de carne. No cerne de cada uma existem asas. Para isso existem léxicos, línguas, uma infinidade de possibilidades. Ler é o mesmo que abrir portas. O bom escritor não corre, não desanda, mas caminha numa estrada inventada, num contexto que exige prioridades e preocupações. Meu nome é terra, meu nome é céu, meu nome é casa, disse, um dia, a palavra, lá nos primórdios do sonho, e continua a dizer, ainda hoje, agora, arquitetando essa nossa babel, essa nossa morada para bichos, crianças, pedras e homens. Mulheres são flores, israelenses ou palestinas. Casa é sinônimo de lugar. A mesma palavra, o mesmo verbo serve para irlandeses e brasileiros. É só uma questão de festa e tradução.

William Trevor nasceu e passou quase toda a sua vida em pequenas cidades da Irlanda. Autor de diversos romances, uma coleção admirável de contos e peças de teatro, ganhou vários e importantes prêmios literários. Atualmente, vive em Devon. Para ele, os dilemas são produto da história: “Minha ficção pode, vez ou outra, lançar luz sobre aspectos da condição humana, mas não o faço conscientemente: sou um contador de histórias”. A Editora Globo prepara o lançamento de mais dois títulos do autor, A jornada de Felícia (no prelo) e Contos completos (a ser lançado em 2015).

A HISTÓRIA DE LUCY GAULT
• De William Trevor
• Editora Globo
• 288 páginas, R$ 44,90

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