sábado, 2 de agosto de 2014

João Paulo - Tire a mão do meu teatro‏

Tire a mão do meu teatro
João Paulo
Estado de Minas: 02/08/2014


Antônio Nóbrega sabe que o bailarino popular dança para manter viva a beleza do movimento (SescTV/Divulgação)
Antônio Nóbrega sabe que o bailarino popular dança para manter viva a beleza do movimento

O maior inimigo da cultura não é a burrice, mas a ganância. De tal forma nos acostumamos com o valor da ambição que consideramos normal que teatros e cinemas fechem em nome dos interesses financeiros de seus donos. O mais recente exemplo vem de São Paulo, com a ameaça de encerramento das atividades do Teatro Brincante, de Antônio Nóbrega. Não é preciso esforço para defender Nóbrega e seus brincantes: trata-se de uma das mais consistentes propostas culturais do país, que corre o risco de se encerrar em razão da especulação imobiliária.

Depois de se destacar no Quinteto Armorial, fundado por Ariano Suassuna, quando ainda era um jovem violinista de orquestra, Nóbrega logo se torna uma das figuras de proa do Movimento Armorial. Contribuiu para isso seu conhecimento da cultura popular do Nordeste, o talento musical extraordinário, o dom para a pesquisa, o acervo de conhecimento sobre o teatro popular e, sobretudo, a incorporação da dança ao movimento. Nóbrega, bom em tantas artes, vinha nos últimos 30 anos construindo um repertório de movimentos do que um dia vai se chamar dança popular brasileira. Ao lado de tudo isso, mostrou capacidade de agregar, construir e mobilizar, com seu espaço que se tornou ponto de encontro entre o popular e o erudito, o passado e o presente, a arte e a reflexão.

A história de fechamento de endereços culturais, infelizmente, não é nova nem patrimônio de São Paulo. Quem já passou dos 50 anos se lembra bem do fim do Cine Metrópole, em Belo Horizonte, e da onda que se seguiu de extinção dos cinemas de rua até o deserto que hoje define o horizonte. Foram todos transformados em templos, lojas populares e estacionamentos. A sensação de perda se tornou ainda maior pela aparente naturalidade do processo, como se coubesse apenas ao dono do lugar dar o destino de sua propriedade, independentemente do interesse dos cidadãos e das responsabilidades do setor público.

O caso do Metrópole foi ainda mais triste em função da grande mobilização de pessoas dispostas a defendê-lo. O poder público se eximiu e apenas articulou um acordo no fio do bigode com o Bradesco, que levou à criação de um teatro, o Klauss Vianna, no alto da Avenida Afonso... que vai ser fechado no mês que vem. Desapropriado, o edifício que hoje abriga o teatro (que é um patrimônio da população de BH) passou ao Tribunal de Justiça, que o considera seu e não parece disposto a manter o funcionamento do equipamento cultural em suas dependências.

A situação é tão explícita e grave que gerou um movimento, em várias cidades do país, que propõe que se deixem os teatros em paz. Por sua natureza localizados onde há grande circulação de pessoas, os espaços se tornam atrativos para o setor imobiliário, sem que esse reconheça o que fica ali de história. Foi o movimento dos teatros e cinemas que levou para vários lugares da cidade o valor que hoje se torna moeda. A arte valorizou as regiões degradadas e hoje são expulsas do lugar que ajudaram a criar com seu estoque de méritos.

O maior prejuízo da especulação imobiliária que atinge a cultura em cheio, no entanto, é a cidade como um todo. O que vem se perdendo não são apenas casas de espetáculos e salas de exibição, mas um modo civilizado de habitar o mundo. Mesmo que os negócios em si sejam particulares e por isso afeitos às regras de mercado, há um substrato público na cultura: ela tem potencial agregador e crítico que cabe ao poder público defender e promover.

Shoppings e circuitos Curiosamente, em vez de acompanhar um processo de valorização da ocupação de todo tecido social, o que se vê é uma tendência concentracionista, seja dirigida pela iniciativa privada – por meio dos shoppings –, seja do poder público, em projetos como o Circuito Cultural da Praça da Liberdade, uma ilha dentro da ilha, em termos de urbanismo excludente e negação dos encontros de classes sociais. Trata-se de um espaço público que foi privatizado, destinado a um genérico “todos” que são apenas alguns.

Essa lógica, é claro, se traduz também nos conteúdos, com propostas que são sempre marcadas pelo lucro (cinemas de shopping só passam filmes para adolescentes de todas as idades) ou pela visão encastelada de cultura (que tende para o estereótipo, ainda que distinto). O que vem se estabelecendo nesses espaços é, ainda, um falso modelo de interatividade, que nada mais é que uma interpassividade mediada por computadores.

Com isso, no modelo único de centros culturais patrocinados com verba pública (que levam a marca privada de seus donatários na fachada e no nome) o que se consolida é um circuito altamente lucrativo, operado por curadorias de alto valor de mercado, com seus nomes de excelência a validar os projetos. As marcas passeiam sobre a cultura e dão nome a tudo. Não é mais preciso dialética para flagrar o fetichismo da mercadoria: desavergonhadamente, ela se mostra e até se vende em brindes encontrados nas “lojinhas”.

Por isso os espaços culturais de rua, espalhados por toda a cidade, têm um papel agregador e de confirmação da cidadania. E é exatamente por se situar de forma autônoma (não em shoppings ou circuitos) que criam uma identidade própria, que realiza a dimensão plural da cultura. Ao se cerrarem as portas de cinemas, teatros e galerias de rua, a cidade fica mais estática, se movimenta menos, perde a dinâmica que atrai pessoas diferentes e faz conviver a diversidade.

Em Belo Horizonte, nos últimos anos, estamos vivendo os estertores desse tipo de cultura. É claro que há reações. Grupos de teatro, por exemplo, estão criando seus espaços, que permitem habitar regiões geográficas da cidade e latitudes estéticas da arte (que se contrapõe ao modelo canônico dos editais), inclusive no Hipercentro, com resultados muito importantes para a vida cultural e para a mobilização política do setor.

Outro modelo agregador tem sido o dos coletivos, o que viabiliza o aspecto material, mas avança também para o sentido compartilhado da criação, em contraponto ao culto da celebridade e da carreira individual fundada no mercado de bens. E, com mais consistência e combatitividade, as ocupações de espaços adormecidos da cidade, que vêm ganhando uma rica dinâmica criativa e de circulação de ideias.

Mobilização Voltando a São Paulo, a mesma cidade que é exemplo de insensibilidade com a ameaça do fim do Brincante em razão da especulação, deu provas recentes da capacidade de se articular para recuperar o Belas Artes, um histórico espaço de cinema de repertório, que estava fechado há muitos anos. Reduto do cinema chamado de arte, o Belas Artes foi objeto de intensa mobilização popular para que fosse recuperado e entregue novamente ao uso da população.

O movimento popular precisou – sempre precisa – de capacidade política tanto na organização como no desenho de um projeto viável. Entram em cena, nessa hora, não apenas o interesse do dono do imóvel, mas da municipalidade, que tem por dever proteger os direitos do cidadão, sendo a cultura um dos mais valiosos. A solução encontrada envolveu poder público, proprietário do espaço, setores organizados do meio cinematográfico e população.

Nessa hora se estabelece um novo jogo de forças, capaz não apenas de reverter situações dadas como definidas, como de avançar na reposicionamento de cada setor envolvido. O que fica patente no caso do Belas Artes de São Paulo é que o setor público não precisa se abater aos valores do mercado, mesmo que legítimos, e deve se dirigir pelo que responde de forma mais completa aos interesses da sociedade. Cabe ao dirigente púbico a sensibilidade para buscar soluções que viabilizem a vitalidade da cidade e melhore a vida de seus cidadãos.

Outra constatação é que há saída, dentro do mercado, que preserve o funcionamento dos cinemas de rua. Entregue à população em meados de julho, o Belas Artes de São Paulo tem acompanhado um significativo sucesso de público e já ensaia investimentos em novos projetos de ampliação de espectadores. Para isso são fundamentais parcerias que reúnam todos os interesses em nome de um propósito básico de viabilização do espaço, o que significa que cada área aprende com a outra.

Além disso, um dos maiores gargalos da indústria cinematográfica do país, a exibição, passa a ter um novo caminho, já que se trata de um conglomerado de salas, com vocação para público mais permeável ao novo e com grande repercussão no campo da formação de opinião. As dezenas de produções que estrearam em festivais e aguardam salas, têm, certamente, nos cinemas de rua e em propostas como a do Belas Artes, sua melhor via para chegar ao público.

Uma conta em que todo mundo ganha é sempre resultado da boa política. O que exige determinação, capacidade de organização e conhecimento técnico. O poder, como ensinou Michel Foucault, não é algo fixo, que troca de mãos entre os mais fortes a cada momento do jogo político. Poder é uma situação que se cria, um momento da vida social que coloca em xeque o estabelecido em nome de um horizonte mais ampliado de direitos e liberdade.

Belo Horizonte ainda tem alguns de seus esqueletos de cinema de rua recuperáveis, o Pathé, o Royal, o Odeon, o Roxy, o Nazaré, o Regina, o Santas Tereza, o Art-Palácio, entre outros. O mesmo vale para teatros que deixaram a população menos servida de arte, que foram agonizando até que todos se esquecessem deles. Outros morrem aos nossos olhos, sob promessas sempre procrastinadas, como o Marília e o Clara Nunes, em obras permanentes, sempre fechados.

Muitos já se perderam de forma irrecuperável. Um movimento para revitalizar esses espaços, dando a eles viabilidade inclusive econômica, não é um desvario, mas a retomada viável de um tempo perdido. O que falta, por exemplo, para o Cine Pathé voltar a ser um cinema e deixar de ser um estacionamento inútil, que espera apenas a hora certa de jogar o prédio no chão? A se confirmar esse “the end”, a atual gestão da cidade e as próximas ficarão marcadas pela leniência em responder a essa pergunta.

São Paulo está perdendo um teatro, mas recuperou cinemas de rua e, talvez, com sua mobilização cultural amadurecida pelo embate, ainda consiga salvar o Brincante, para bem da cultura brasileira. Aqui em BH, estamos apenas na coluna das perdas, das ameaças e das portas fechadas. Salvar o Klauss Vianna e reabrir o Pathé como cinema talvez sejam bons começos para despertar o amor pela arte que nos faz melhores e, quem sabe, no futuro próximo, mais fortalecidos e menos entregues ao desejo cego do mercado. 

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