Paulo Vanzolini
Era um ídolo, capaz de viver tudo o que eu admirava: a paixão pela ciência e pela cultura popular
Fui aluno do professor Paulo Vanzolini no primeiro ano da faculdade. Eram aulas de bioestatística, aos sábados, nos tempos do quadro-negro e do giz que ele só largava na hora de acender o cachimbo.
Era um ídolo, capaz de viver a um só tempo tudo o que eu mais admirava: a paixão pela ciência e pela cultura popular. Tornamo-nos amigos 40 anos mais tarde, depois de uma viagem no barco-escola da Unip, para gravar uma série de entrevistas no rio Negro.
Vou dividir com você, leitor, alguns trechos dessa conversa (que pode ser vista na íntegra no site drauziovarella.com.br).
-- Sempre gostei de bicho, mas não gostava das aulas. Para ser sincero, nos quatro anos do primário, cinco de ginásio, dois de pré-médico, seis de medicina e três anos em Harvard, nunca assisti às aulas com gosto.
-- Com 14 anos, consegui um estágio no Instituto Biológico. No laboratório, eu era uma espécie de segundo auxiliar de cachorro, mas comecei a aprender zoologia e descobri a evolução.
-- Meu pai era professor da Escola Politécnica da USP. Um amigo dele, André Dreyfus, fundador da genética no Brasil, me aconselhou: "Se quiser estudar vertebrados, vá à faculdade de medicina aprender anatomia, histologia e fisiologia; na Zoologia, esses cursos são muito ruins.
-- Depois de formado, fui para Harvard me achando o maior cientista. Tomei um choque cultural quando vi o que era a zoologia moderna. Com eles, aprendi que o cientista precisa ser generoso, ele não é o dono da ideia. Se tenho uma coleção, devo colocá-la à disposição de todos. A escola científica europeia é baseada na pequena vantagem, na mesquinharia, atributos que a fazem muito diferente da americana.
-- Charles Darwin pertencia à classe mais privilegiada da Inglaterra. Nunca precisou trabalhar. Veio para a América do Sul como naturalista numa expedição que passou pelo Brasil e Argentina antes de chegar a Galápagos. Lá, ele se deparou com um cenário intrigante: ilhas que apresentavam fauna e flora distintas.
-- Era um gênio, um conservador que chegou a uma ideia revolucionária. A publicação de "A Origem das Espécies" agrediu profundamente o establishment inglês. Darwin viveu um drama pessoal terrível. Só seguiu em frente porque era um pesquisador honesto. Acho que, se pudesse, teria desistido. Imagine contestar a crença de que a Terra tinha apenas 6.000 anos e que as espécies haviam sido criadas ao mesmo tempo por Deus.
-- Trabalhando separadamente, Alfred Wallace chegou às mesmas conclusões, mas a documentação de Darwin foi mais completa. Wallace escreveu um artigo maravilhoso, enquanto Darwin escreveu um livro. Mas os dois comprovaram uma regra básica da zoologia: o zoólogo tem que ir para o mato.
-- Pensar uma teoria é um ato social. No isolamento ninguém consegue.
-- Andei pelo Brasil inteiro, conheço o Nordeste como o fundo de meu bolso. Visitei a Amazônia peruana, a equatoriana e a brasileira. Descia do barco, conversava com as pessoas e anunciava: "Compro lagartixa, sapo, jacaré e cobra". Quando assumi o trabalho no Museu de Zoologia, a coleção de répteis e anfíbios tinha 1.200 exemplares. Agora, no fim da minha carreira, chegou a 220 mil.
-- Sou um zoólogo de unhas sujas, apaixonado pelo trabalho. Com quase 80 anos, aposentado, vou diariamente ao museu, das 8h30 às 19h. No momento, passo os dias contando escamas de cascavéis.
-- O silêncio do laboratório me faz bem. Gosto do povo, mas de um em um não gosto não.
Nessa altura fiz a pergunta inevitável: -- Ainda sobra tempo para compor?
-- Houve uma época em que todas as noites eu ia ao jogral do meu amigo Luiz Carlos Paraná, onde havia música da melhor qualidade. Era o bar mais interessante de São Paulo. Quando o garçom faltava, eu vestia a jaqueta e servia as mesas. O Paraná e outros amigos se foram, deixando uma sensação terrível de perda pessoal. Sem eles, diminuí, fiquei menor.
-- Olhando para trás, para sua vida de compositor de músicas memoráveis e de cientista consagrado, você se considera feliz?
-- Sou um homem em paz. Feliz? Não sei qual filósofo, Sólon ou Thales, disse que só é possível julgar a felicidade de uma pessoa depois de sua morte, porque é imprescindível ter uma morte feliz.
Adeus, professor.
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