quinta-feira, 7 de março de 2013

Amnésia revolucionária-Paloma Oliveto‏

Há 60 anos, Henry Molaison perdeu a capacidade de reter informações recentes depois de ter parte do cérebro retirada em uma cirurgia experimental 


Paloma Oliveto

Estado de Minas: 07/03/2013 

Durante 55 anos, o americano Henry Gustave Molaison acordou sem saber o que tinha feito no dia anterior. Com QI acima da média e descrito como amoroso, engraçado e generoso, o paciente H.M. se lembrava do nome da cidade da Louisiana onde seu pai nascera, contava que os Natais em sua casa não tinham árvores enfeitadas e reconhecia artistas e celebridades dos anos 1940. Mas desconhecia completamente eventos que havia vivido algumas horas antes.
Molaison morreu há pouco mais de quatro anos, sem saber que sua amnésia significou uma revolução para a neurociência. Mesmo depois de participar de mais de 100 experimentos cognitivos ao longo de décadas, não conseguia se lembrar disso. Os pesquisadores, porém, jamais vão esquecê-lo. Foi graças ao paciente H.M. que os mecanismos de armazenamento de fatos cronológicos, nomes, objetos – enfim, da memória – começaram a ser compreendidos.  

Antes de Molaison passar, em 1953, por uma cirurgia experimental que removeu uma importante região de seu cérebro, esse era um conceito abstrato. Os médicos sabiam que a memória existia, mas não tinham ideia de onde ela estava. Esquecimentos e amnésia eram tratados mais em consultórios de psicanalistas do que de neurocientistas. Ninguém desconfiava da existência de diferentes tipos de memória: uma de curto prazo, que permite decorar um número de telefone e discá-lo pouco tempo depois, para então esquecê-lo; e outra de longo prazo, pela qual fatos, nomes e habilidades adquiridas são estocados. Os cientistas muito menos podiam supor que a memória de longo prazo tem subdivisões. 

Isso mudou quando Molaison acordou na mesa de cirurgia, depois de ser operado pelo famoso neurocirurgião William Beecher Scoville. A especialidade do médico eram as psicoses, mas ele estava realizando um procedimento experimental no Hospital de Hartford, em Connecticut, que prometia dar fim à epilepsia. Na pré-adolescência, H.M. começou a sofrer convulsões, relacionadas a um acidente sofrido aos 9 anos. Cansado dos acessos cada vez mais frequentes e incapacitantes, aos 27, Molaison aceitou ser operado. Quando abriu os olhos, era outra pessoa.

Hipocampo Na operação, Scoville removeu parte dos lobos temporais e os dois lados do hipocampo. A retirada acabou com as convulsões, mas também transformou Molaison em um homem sem passado. “H.M. sentia que estava livre da epilepsia, por isso acreditava que tinha uma vida melhor. Foi uma troca. Digo sempre aos meus alunos: essa cirurgia o livrou da epilepsia, mas a um preço terrível”, disse a neuropsicóloga Brenda Milner, do Instituto e Hospital Neurológico de Montreal, durante uma coletiva de imprensa sobre o legado de Molaison, durante o encontro anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), realizado há uma semana.

A história de H.M. está entrelaçada à de Milner. Quando seu paciente apresentou os sintomas de amnésia anterógrada (a perda da capacidade de reter novas memórias), Scoville entrou em contato rapidamente com a neuropsicóloga, que trabalhava em Montreal e era reconhecida como uma das melhores do ramo. 

Milner desconfiava de que o hipocampo estava associado ao processo de armazenamento. No mesmo ano em que H.M. fez a cirurgia, dois pacientes canadenses passaram por um procedimento parecido, em que foi retirada uma porção unilateral dessa região. “Eles ficaram com danos gerais na memória. Especulamos que a razão era um dano no hipocampo”, recordou a especialista. Naquela época, não existiam ressonâncias magnéticas nem tomografias que pudessem mostrar o interior do cérebro e suas conexões.

A psicóloga havia comentado sobre esses casos durante um encontro internacional de neurociência, no qual Scoville estava presente. “Ele entrou em contato comigo e disse: ‘Acho que vi esse tipo de paciente que você descreveu’”, contou. H.M. conseguia se lembrar de tudo que havia acontecido até três anos antes da cirurgia. Depois disso, as recordações pareciam embotadas. Era sinal de que o procedimento também provocou, com menos severidade, a amnésia retrógrada, quando o indivíduo não se lembra de fatos ocorridos antes da lesão. O maior problema de Molaison era com o armazenamento de novas memórias. Todas as manhãs, era preciso contar a ele o que havia acontecido com seu cérebro. Os médicos que conviveram com o paciente durante décadas tinham de se reapresentar diariamente.

Por minutos Milner desenvolveu diversos testes cognitivos que aplicava em H.M. Mesmo depois que ele voltou para os Estados Unidos, a neuropsicóloga cruzava a fronteira para fazer experimentos. Ela notou que o paciente conseguia decorar números e nomes, além de reter a aparência de objetos e de faces por alguns minutos. Isso indicava a existência de uma espécie de memória rápida, que permite recordar ertas coisas por tempo determinado. É a memória de curto prazo. Pouco tempo depois de gravar as informações, contudo, Molaison as esquecia completamente. Ele, inclusive, nem se lembrava que tinha feito os testes de Milner. O que acontecia é que ele não conseguia converter a memória de curto prazo em de longo prazo, uma evidência do papel crucial do hipocampo — que o paciente não tinha mais — no processo de armazenamento das informações. Até morrer, aos 82 anos, Molaison só conheceria um passado: aquele vivido até três anos antes da operação.

Durante as pesquisas, H.M. mostrou que a organização da memória era ainda mais complicada. Um experimento em particular provou que o paciente conseguia reter alguns tipos de novas informações, ainda que não se desse conta disso. Brenda Milner pediu que ele desenhasse uma estrela, sendo que deveria observar sua mão e a figura apenas em um espelho. O teste foi repetido por 10 sessões e, a cada dia, a performance do paciente melhorava. Molaison podia não se lembrar que tinha feito o mesmo desenho 24 horas antes, mas o aperfeiçoamento de seu desempenho era prova de que o cérebro estava registrando o aprendizado. O mesmo aconteceu com um andador, que ele precisou usar quando estava mais velho. “Ele não entendia por que usava o andador, mas sabia que, se não usasse, cairia. Usar esse equipamento pode parecer fácil, mas há toda uma habilidade envolvida. Você está em uma cadeira ou na cama, tem de se transferir para o andador, depois manuseá-lo. Ele aprendeu tudo”, atestou Suzanne Corkin, professora de neurociência comportamental do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT) que começou a estudar H.M. em 1967.

Ainda assim, por mais que participasse de testes repetitivos, Molaison jamais readquiriu a capacidade de se lembrar de fatos ou de pessoas. Corkin afirma que H.M. não pensava que tinha sempre 27 anos, idade em que fez a cirurgia, mas tinha uma compreensão errada do tempo. “Você poderia imaginar que, quando começasse a ter cabelos brancos, ele se olharia no espelho e sairia gritando: ‘O que aconteceu comigo?’. Mas não era assim. Ele não tinha consciência de que já estava com cabelos brancos até se ver, mas a imagem lhe parecia familiar”, relatou. De acordo com a neurocientista, H.M. não parecia se abalar com o fato de ter envelhecido e até fazia brincadeiras com isso. No dia seguinte, esquecia que o tempo havia passado, olhava-se no espelho, notava os fios grisalhos e seguia em frente. 

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