quinta-feira, 7 de março de 2013
Marina Colasanti - Uma festa muito cabeça
Marina Colasanti - marinacolasanti.s@gmail.com
Estado de Minas: 07/03/2013
Meu amigo fez 80 anos. Suas ex-mulheres, mães de suas filhas, e suas filhas e maridos e filhos e até o bisneto celebraram a data com um jantar. E ao longo da noite vieram também, com presentes e abraços para o ex-sogro, os ex-maridos das filhas, pais de alguns dos seus filhos, com suas novas mulheres, trazendo no celular as fotos dos seus novos filhos. Houve um momento em que todos se juntaram para tirar a clássica foto de família, ou talvez não fossem todos, mas eram muitos. Os demais convidados sorriram vendo tantos parentes em harmonia. E eu pensei que ali estava uma bela versão de família estendida, construída a partir dos anos 1960, quando nem essa definição nem essa estrutura estavam em moda.
Nos anos 1960, eu e boa parte dos convidados do jantar íamos três vezes por semana ao consultório do aniversariante, expor a vida e elaborar a psique. Era nosso conceituadíssimo psicanalista.
Tratou das cabeças mais pensantes e mais divertidas do Rio de Janeiro daquela época, em que fazer análise era quase uma obrigatoriedade intelectual. E que época rica em cabeças aquela! Foi disso que mais se falou na festa, ao redor das mesas esparsas no jardim. Só na minha estavam três atores, uma socialite, uma especialista em música e um escritor, todos antigos frequentadores do mesmo endereço, os que haviam feito análise individual, e a maioria que havia caprichado também na análise de grupo. Ali, conversando entre amigos, tudo pareceu mais light e prazeroso do que naqueles dias, quando exorcizávamos nossos demônios, expúnhamos nossas fraquezas e tantas vezes choramos.
Disse a ele ontem, brincando, que era um ótimo papel o seu, ficar ali recebendo de seus pacientes, em primeiríssima mão, os melhores projetos artísticos, os esboços das peças, o avançar capítulo a capítulo dos livros ou até das novelas de TV – eu própria tive uma companheira de grupo noveleira – , sem precisar ir a vernissage, estreia ou noite de autógrafos.
Mas não eram tempos fáceis. Os que faziam teatro, cinema, os que escreviam ou eram jornalistas sofriam censura e repressão, havia alguns secretamente envolvidos na subversão. E chegou o momento em que nosso psicanalista, temendo que agentes da ditadura invadissem seu consultório para investigar os pacientes, devolveu a cada um seu prontuário com as anotações das sessões.
Esqueci, ontem, de contar aos companheiros de mesa um episódio curioso. Eu fazia individual há algum tempo, quando comecei a sentir sobre mim um peso estranho. Disse a ele: “Olha, tem alguma coisa ruim, as portas estão todas trancadas à minha frente, não sou eu, é alguma coisa, algum trabalho que me fizeram”. E ele: “Veja bem, Marina, isso aqui é análise, coisa séria, científica, não podemos lidar com esse tipo de possibilidade”.
E passados uns dias, afastando minha mesinha de cabeceira para procurar algo que havia caído, encontro atrás, imprensada entre a mesinha e a parede, uma folha de papel com meu nome escrito à mão, e pingos de vela retendo fios de cabelo e rasgos feitos com alguma faca ou ponta sobre meu nome. Enojada, botei o papel num envelope, levei para ele. A presença obscura pesou naquele consultório. “O que fazemos com isso?”, perguntei. Ele riscou um fósforo, e queimamos o achado ali mesmo, cientificamente.
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