segunda-feira, 27 de maio de 2013

Jabuticaba sem complexo - Renato Janine Ribeiro


Valor Econômico - 27/05/2013


Santos Dumont, inspiração para inventar o novo


Uma frase espirituosa, cunhada há uma ou duas décadas, diz que tudo o que há só no Brasil, e não é jabuticaba, é ruim. Sem dúvida, é uma afirmação engraçada, e já a ouvi de pessoas que estimo. Mas é totalmente errada. Sugiro um teste: substituam "só no Brasil" por "só nos Estados Unidos", na Grã Bretanha, na França, na Alemanha, na China ou na Índia, países ricos os primeiros, importantes todos eles; duvido que algum nacional desses países admita que tudo o que há somente na França, e não é camembert, só no Reino Unido, e não é whisky, apenas nos Estados Unidos, e não é whiskey, só na Alemanha, e não é embutido de nome germânico, é ruim. Ao contrário, todos esses países e seus cidadãos têm enorme orgulho das muitas suas contribuições originais para a humanidade, inclusive aquelas que não podem ser reproduzidas em outros países.

Por que, então, o Brasil é possivelmente o único país de vocação mundial a depreciar, a esse ponto, o que tenha de original? Antes de propor uma explicação, avancemos um pouco. Nos últimos anos, assistimos a uma crescente depreciação de Alberto Santos Dumont, nosso maior inventor. Vejam o significado disso: o brasileiro que mais coisas inventou, inclusive um dos produtos mais importantes que hoje existem, o "mais pesado que o ar", é constantemente diminuído. Chegou um importante jornal brasileiro, ao chegar o ano 2000, a listar entre os grandes inventores do século XX os irmãos Wright, ou seja, a negar a originalidade de Santos Dumont. (Na verdade, o jornal estava apenas traduzindo um dossiê americano). Não é minha intenção discutir aqui os dois irmãos - basta lembrar que o voo deles, que dataria de 1903, somente foi divulgado anos depois, e que dependeu do impulso, externo, conferido por uma catapulta, em vez de decolar com seu próprio empuxo. Mas Santos Dumont não inventou apenas o avião. Era uma inteligência agitada, sempre em busca de soluções, sempre procurando o novo; o relógio de pulso foi um pedido seu ao amigo Cartier (que continua produzindo as "montres Santos de Cartier" - caríssimas, belíssimas), embora uma versão anterior seja atribuída ao filósofo Pascal; e seu espírito se vê de maneira magnífica na escada que construiu para sua casa de Petrópolis, na qual o visitante é obrigado, sempre, a começar a subida com o pé direito - uma invenção elegante e simples, primorosa, de marcenaria.

Inventar e descobrir são as ações mais nobres do intelecto humano. Quem descobre revela ao mundo algo que já existe, algo importante, mas que se ignorava. Pode-se descobrir um continente, um animal ou vegetal antes desconhecido, as propriedades medicinais de uma planta. Já quem inventa acrescenta ao mundo algo que nele não existia. Talvez, por isso, inventar seja até mais nobre do que descobrir. Nos dois casos, diminui-se o desconhecimento, a ignorância. Mas o descobridor está explicando o mundo, enquanto o inventor está acrescentando algo ao mundo. A natureza é descoberta. Já o que se inventa é cultura.

Uma invenção, por relevante que seja, poderia nunca ocorrer. Poderia nunca ter aparecido o avião, ou o computador, ou o jornal. Mais que isso: imagine o leitor aquilo que ninguém, jamais, inventou. Solte a imaginação, porque tudo seria possível. Poderíamos ter - e talvez um dia tenhamos - leitoras de mentes alheias, mochilas que façam cada indivíduo voar solo, em suma, uma lista de causar inveja no professor Pardal, que todos nós conhecemos e possivelmente admiramos em nossa infância. É até difícil imaginar as invenções possíveis, porque com algumas delas o mundo mudaria por completo. Por isso, é tão estranhamente significativo que o Brasil não se orgulhe de Santos Dumont. Há até uma importante carreira de Estado que, na sua mitologia interna, evita pronunciar seu nome, para não atrair a má sorte, porque ele teria sido azarado - com sua grande invenção sendo atribuída aos rivais Wright, com o espírito cavalheiresco e aristocrático com que inventava para doar conhecimento ao mundo sendo substituído pelo ânimo lucrativo com que Orville e Wilbur procuravam fazer dinheiro, com o uso militar de uma invenção que para ele deveria ter aplicação civil, com as mortes da Grande Guerra causadas por aeroplanos e, finalmente, o que pode ter levado a sua morte voluntária, em julho de 1932, com os aviões sendo usados pelos dois lados durante a Revolução Constitucionalista. "Nunca pensei que minha invenção fosse causar derramamento de sangue entre irmãos", teriam sido essas as suas últimas palavras.

Mas, ao desqualificá-lo, desqualificamos a capacidade brasileira de inventar, de agregar algo ao mundo - em especial, de lhe agregar algo que esteja na ponta da ciência e da tecnologia, porque o mais pesado que ar foi isso: uma das principais invenções da história humana e uma das maiores do século XX.

É claro que o avião não existe só no Brasil - portanto, o complexo de jabuticaba não se aplicaria ao caso. Mas o que me preocupa é a crença de que a única contribuição especificamente nossa ao mundo seria a jabuticaba, um fruto de nossa natureza - algo que não inventamos, apenas descobrimos. Seríamos meros descobridores, maus inventores. Ora, há alguma razão para acreditarmos nisso? Não seria melhor, como a China e a Índia, países de perfil parecido com o nosso, gigantes do subdesenvolvimento superando seu atraso, crer mais em nossa capacidade de inventar o novo? Porque a vida, e no caso o avanço científico, cultural, tecnológico e econômico, não são movidos apenas pela razão, mas também pelas convicções.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. 
E-mail: rjanine@usp.br


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