sábado, 16 de novembro de 2013

José Miguel Wisnik

José Miguel Wisnik

Itamar

Como todo grande cancionista, Itamar Assumpção é um amante da sílaba

O Iº Encontro de Estudos do Canto e da Canção Popular, na Unicamp, me fez pensar em Itamar Assumpção e a canção paulista, nesse momento em que Zélia Duncan, que lançou o CD “Tudo esclarecido”, com músicas de Itamar, lança o DVD do seu show-monólogo tecido com as canções de Luiz Tatit. Itamar tinha o desejo de fazer sucesso, ao mesmo tempo em que parecia fazer tudo para impedi-lo, como se provocasse e testasse, compulsivamente, a si e as leis do mundo e do mercado musical. Essa era apenas uma das suas ricas complexidades e apenas um dos seus complexos. Os arranjos de suas canções, em seus discos, são muitas vezes sobrecarregados, excessivos, ou em desequilíbrio inquieto, tanto dando força quanto obscurecendo as canções. O “Tudo esclarecido” de Zélia funciona como uma lâmina comparativa, em formato pop, que contribui para ouvir com transparência certas propriedades internas a elas, mesmo que atenuando muito do que elas têm de sombrio.
“Na sala numa fruteira/ a natureza está morta/ laranjas maçãs e peras/ bananas figos de cera/ decoram a noite torta”. “Noite torta” é uma canção sobre a separação amorosa, como tantas que existem. Mas só Itamar enuncia esse cortejo de frutas mortas que se abate sobre a mesa da cozinha como uma cifra lutuosa da ausência de alguém, que se faz sentir de repente ali. Contribui para isso o uso sutil do verbo estar. “A natureza está morta”, isto é, a natureza morta (como chamamos o arranjo decorativo de frutas, agravado pelo fato de serem artificiais) ficou morta com a partida de alguém. Vida morta ao cubo: a irônica morte da natureza morta, destituída do sentido compartilhado. Mais do que semântica, a questão em Itamar é sempre prosódica, porque a enumeração das frutas, feita em pulso regular, como todo o resto, e numa melodia altamente comprimida, faz saltarem em destaque as menores variações acentuais, como acontece na palavra “maçãs”, no caso acima. Sei que é difícil explicar para quem não ouviu, mas a questão é que as sílabas ficam oscilando como partículas em suspensão e em colisão.
Por isso mesmo Itamar, cantando, sabia instaurar uma frase repetida que, a partir daí, parecia ficar dançando no ar, sozinha. É que esse negro paulista e paranaense, morador da Penha, em São Paulo, sem o auxílio fusional do samba, tem que ir ao âmago do suingue que mora nas menores flutuações dos acentos dos ritmos e dos sentidos das palavras. É um suingue decantado e que se dá num plano minimal e total. “Sozinha nessa cozinha/ em pé eu tomo um café/ na pia, a louça suja/ me lembra da roupa suja/ no tanque que a vida é”. A metáfora — a vida é um tanque de roupa suja — fica muito mais rente ao real com esse festival de oxítonas que de repente se instala na canção: “no tanque que a vida é”, rimando rebarbativamente com “em pé eu tomo um café”. Aqui, a natureza está (morta), e a vida, sem saída e amputada de adereços, é. São modulações semânticas e prosódicas, no caso, dessa propriedade particular da língua portuguesa, de distinguir, como poucas, o ser e o estar, e fazer isso com um sutil corte rítmico. Não por caso uma outra canção de Itamar, em parceria com Alice Ruiz, diz com gosto: “É de estarrecer: estar e ser, em inglês, é a mesma coisa”.
“Enquanto penso nela/ observo o sol por detrás da serra/ e daquela singela capela/ bem da janela da sala de espera/ desta bela tarde lilás amarela”. Nessa outra canção, “Enquanto penso nela”, a obsessiva lembrança de alguém, pontuada pela reiteração rítmica, é deslocada para a paisagem, na qual certas palavras saltam à frente, movidas por suas simples propriedades acentuais, como “singela” e “lilás”. “Observo o mar marejar a terra/ escaravelhos velhas caravelas/ sou sentinela de um barco à vela/ nesta bela tarde lilás amarela”.
Em Itamar Assumpção a canção é uma questão de escansão: o suingue interno às defasagens entre o pulso métrico da música e o impulso do acento verbal. Como todo grande cancionista, ele é um amante da sílaba. E deu-lhe status de rainha, bordejando o vazio e o tanque de roupa suja da vida, de uma maneira única. Gostaria de comparar aqui, contrastando, com a poética pan-etonímica da sensibilidade em rede de Arnaldo Antunes, também única. E com a decantação irônica das sílabas no próprio Luiz Tatit (com quem terei a honra de me apresentar hoje, no Espaço Tom Jobim, no contexto do Festival Villa-Lobos).
Mas não deu. Um exemplo ainda da gaia ciência de Itamar. Quando morreu o amigo e parceiro Paulo Leminski, Itamar, chamado a dar seu depoimento, declarou à “Folha de S.Paulo”: “Leminski, aqui é Beleléu. Não fui no teu enterro, também não irás no meu. Estamos quites, adeus”.


João Paulo - Revolta permanente‏

João Paulo

Estado de Minas: 16/11/2013 



Em junho o povo mostrou nas ruas quem manda. É bom não esquecer (Christopher Simon/AFP)
Em junho o povo mostrou nas ruas quem manda. É bom não esquecer

Este mês o mundo celebra o centenário do argelino Albert Camus (1913-1960), que se tornou mundialmente conhecido pelo romance O estrangeiro. Próximo ao grupo dos existencialistas que davam as cartas na intelectualidade europeia, Camus romperia com Sartre e sua turma em razão de divergências políticas. Enquanto o filósofo se firmava em suas posições comunistas, alinhadas com a União Soviética, o escritor argelino passou a desconfiar dos descaminhos soviéticos e se tornou defensor de um senso de revolta mais individual, quase metafísico.

No começo dos anos 1950, Camus publica o livro O homem revoltado, que marca o rompimento definitivo com Sartre. Com o olhar de hoje, pode-se dizer que Camus acertou na história, enquanto Sartre reinava na ideologia. Como se vê, a política é menor que a história e deve seu pedágio ao tempo. O livro de Camus pode ser lido ainda hoje com proveito. O comunismo soviético não existe mais. Que o senso de revolta tenha sido mais durável que a revolução é uma das boas lições que a história nos lega.

E é exatamente a revolta que hoje melhor define o sentido da política no mundo. A onda que se espalhou pelo planeta, mesmo sem saber, teve saudável inspiração camusiana. Com a desconfiança em torno das opções convencionais e do chamado realismo político – que não tem nada de real nem de político –, as pessoas foram às ruas para exigir novo patamar de representação, participação e competência na gestão do Estado.

No Brasil, a partir de junho, o que se viu foi exatamente um ultrapassamento do Estado pela sociedade. Se as táticas e estratégias habituais da esquerda apontavam a conquista do poder como estágio final, a partir do qual se estabeleceriam as bases de um novo arranjo de forças, hoje se sabe que questionar o poder é a tarefa por excelência da esquerda. Não apenas o poder conservador, mas todo tipo de poder. Enquanto os políticos tradicionais se digladiavam apontando a falha nos outros, o cidadão repudiou todos eles. O sistema político perdeu prestígio enquanto a política assumia novos horizontes.

Durante a movimentação que tomou conta do Brasil, muito se escreveu nos jornais e blogs, os debates foram intensos em várias instâncias, as teorias se esforçavam para dar conta da novidade. Entender o que se passava nas ruas não era apenas uma exigência da razão, mas um caminho para desdobrar a revolta em ações consequentes. Tudo que a teoria política, a história e a sociologia haviam ensinado até então parecia se desmanchar no gás lacrimogêneo.

Passados alguns meses, o fruto desse intenso trabalho de inteligência – em meio a muita burrice e má-fé – fez surgir as primeiras sínteses sobre as chamadas revoltas de junho. Alimentadas pela cobertura jornalística tradicional, mas vitaminada pelas novas mídias e canais militantes, o período já pode ser hoje compreendido e debatido em novas bases. Mais que aclarar um momento histórico rico, os estudos parecem abrir um novo período temporal na história recente brasileira. Essa é a inspiração dos estudos mais consistentes que estão chegando ao leitor.

Em movimento Livro que merece destaque nesse cenário é Imobilismo em movimento – Da abertura democrática ao governo Dilma, de Marcos Nobre (Editora Companhia das Letras). Professor de filosofia da Unicamp, Marcos Nobre havia sido um dos primeiros a lançar um olhar de profundidade sobre as revoltas de junho com o estudo Choque de democracia, as razões da revolta, publicado em formato de livro eletrônico no calor da hora. Seu novo trabalho, que acaba de ser lançado, mostra que havia um substrato para a análise, um estudo prévio que permitiu enquadrar as revoltas num esquema mais profundo de interpretação.

Marcos Nobre estuda um período muito recente, os últimos 30 anos, que parecem ter ficado entre parênteses em razão de interesses ideológicos. Como havia um inimigo comum, da ditadura militar aos governos neoliberais, o sistema político em si ficou blindado de críticas e intervenções mais corajosas dos analistas. Em outras palavras, o Brasil assumiu um perfil que o autor chama de “pemedebismo”, que pode ser resumido como a política do balcão de negócios, das alianças espúrias em nome da governabilidade, do moralismo de resultados.

Não se trata de uma crítica de um partido específico, o PMDB (que merece todas as críticas), mas de uma cultura que permite, por exemplo, que sua ética (ou falta de ética) se torne hegemônica no sistema político. Para viabilizar um governo, ainda que bem-intencionado (ou mesmo exatamente por ser bem-intencionado), valeria a pena sujar a mão no toma lá dá cá que escreve a história da maioria das legendas de aluguel que definem a política nacional?

É nesse cenário que se inscreve a interpretação das revoltas de junho. Em sua originalidade, fora dos padrões tradicionais de mobilização e distantes da cooptação pemedebista (inclusive a encastelada no Estado), o movimento das ruas explode o sistema político para impor nova agenda e nova relação entre a sociedade e o Estado. A democracia se enraizou na vida cotidiana. Não é um acaso que tenham sido os preços e a qualidade dos serviços o estopim de tudo. Nesse novo contexto, é tão importante o poder estatal como a gestão eficiente dos serviços devidos ao público. Não se aceita mais barganhar um pelo outro.

Outro livro que qualifica o debate é As ruas e a democracia, de Marco Aurélio Nogueira (Editora Contraponto e Fundação Astrojildo Pereira). Entre a análise de conjuntura e o esforço teórico, Marco Aurélio também sustenta suas observações num esquema histórico mais amplo. Ele explica que a crise não foi fruto de um acaso nem surgiu de repente, tendo germinado ao longo do tempo em razão de ações políticas específicas. Não se pode, lembra o autor, esquecer a insatisfação popular pela mediocridade da gestão, nem a revolta sempre renovada contra a corrupção do sistema.

Marco Aurélio reforça o fato de as revoltas terem se dado sob governos petistas, em razão da reprodução das bases de clientelismo, patrimonialismo e corrupção que o partido tanto criticou e com as quais passa a conviver. Mesmo reconhecendo as mudanças na sociedade brasileira, com o combate à miséria, a distribuição de renda e a incorporação de grandes parcelas da população no mundo do consumo e da legalidade trabalhista, nem por isso se estabeleceu um pacto que fosse leniente com os desvios e a incompetência em tocar a máquina e oferecer serviços de qualidade.

O pesquisador capta o surgimento de uma nova politicidade, de novas relações que tiraram a política da letargia e colocaram em desconfiança os modelos habituais de formação de consensos. Mudou a sociedade, a comunicação, as relações sociais. Mesmo com baixo poder de agenda, as ruas se firmam como uma espécie de inconsciente político em repouso, pronto para emergir à consciência e se rearticular em bandeiras específicas. A tarefa de dar consistência e continuidade à revolta ficou exatamente para a parte menos nobre do jogo: os partidos. O que fica claro é que a reforma política por si não resolve. As ruas pedem outra política.

Ano que vem tem eleição, mas antes tem Copa do Mundo. Um bom teste para a memória política das revoltas de junho. Um boicote seria o ideal. Mas, se não for possível, vai ser muito bom atrapalhar como for possível a festa pobre para a qual não fomos convidados, mas cuja conta estamos pagando.

O tempo não para - Mozahir Salomão Bruck

O tempo não para 
 
Um elemento a mais no jogo sem fim da memória e da verdade, as biografias ocupam espaço em permanente mutação entre a ciência e a arte, a lenda e o registro, o conhecimento e a imaginação 
 
Mozahir Salomão Bruck

Estado de Minas: 16/11/2013


Para a romancista Virginia Woolf, diferentemente do poeta, o biógrafo seria obrigado a aceitar em última instância o curso de uma vida real (Gisele Freund/Reuters  )
Para a romancista Virginia Woolf, diferentemente do poeta, o biógrafo seria obrigado a aceitar em última instância o curso de uma vida real

Exclusiva coincidência, passei a dedicar parte de meus estudos às biografias em 2003, mesmo ano em que teve início a vigência, no Brasil, do então novo Código Civil, que acolheu a polêmica proibição de publicação de biografias não autorizadas. Ou, para melhor entendimento, a exigência de permissão dos biografados (ou de seus herdeiros) para que as histórias de suas vidas possam ser contadas. Nesses pouco mais de 10 anos, confesso que nunca tinha visto a mídia e outras instâncias da sociedade dar tanto espaço e importância ao tema “biografias”. A recolha de Roberto Carlos em detalhes (Editora Planeta), em 2007, por determinação da Justiça, acatando pedido do cantor, foi, salvo melhor juízo, o momento mais intenso de discussões. Mas mesmo diante da gravidade da medida restritiva, o debate foi curto e deixou de fora o cerne da discussão que agora eclodiu: o direito à liberdade de expressão.

Ao que tudo indica, a discussão ganhou força neste momento por evidenciar um conflito de direitos não equacionável: o da liberdade de expressão colocado em contraponto ao direito à privacidade. Essa junção de artistas do Procure Saber reivindica, em sua plenitude, este último: o de decidir quando, quem e como suas trajetórias de vida serão contadas. Entendem que se a vida lhes pertence, as narrativas sobre elas também lhes são de domínio exclusivo. Mas narrativas têm propriedade? Mesmo entendendo ser o âmbito da privacidade um direito fundamental, como desconhecer que o direito à liberdade de expressão é um direito absoluto e, por isso mesmo, impossível de ser relativizado, com autorizações prévias ou acordos e negociações?

A polêmica está matizada, pode-se dizer assim, por grupos de questões de naturezas distintas: sobre essencialidades de direitos, sobre detenção de propriedades autorais e também sobre as biografias. No debate atual, as biografias colocam-se, talvez, menos como o centro da questão – que, como já se disse, trata-se de um embate acerca de direitos conflitivos – e mais como um mote que apenas o patrocina.

O trabalho biográfico estabelece-se a partir de operações que diretamente tocam e são tocadas por questões e aspectos fundantes da experiência e do conhecimento humano: o ético, o estético, o epistemológico, o ideológico e o psicológico. O espaço e o tempo. Sendo uma narrativa de natureza memorialística, a biografia se institui a partir de uma relação tensa com o tempo. Tem o objetivo de impedir o progressivo apagamento de personagens e seus feitos, seus efeitos e, se for essa a perspectiva, seus defeitos – ou seja, em tudo aquilo que esses atores se dispuseram de maneira mais vital no mundo. É um jogo entre temporalidade e significação. Entre vida e morte. As significações de uma vida que se distancia no tempo e que tendem a reduções e condensações, fazendo com que o que delas persista não seja uma essência, mas uma fórmula, um espectro.

Mas talvez o que mais desponte nas biografias seja sua circunstância paradoxal. Sendo as biografias, em geral, marcadas, caracteristicamente, por uma contratação que busca se basear na verdade e na tentativa de reposição efetiva de fatos e circunstâncias de uma trajetória de vida, elas acabam sendo, no entanto, em função desta substância e essência, atiradas a uma zona de sombreada e não definida entre a ciência e a arte, entre a lenda e o registro científico, e entre o conhecimento e a imaginação.

Tal circunstância paradoxal da biografia – estar aquém e além de muitas das características das narrativas nos campos em que acaba por ser enquadrada, desde a história, o jornalismo até a literatura – faz com que esta acabe se tornando objeto de percepções e conceituações difusas por parte de teóricos e estudiosos e, mesmo, dos leitores em geral. François Dosse (Le pari biographique) a denominou de gênero impuro, em função exatamente dessa natureza imprecisa. Já Virginia Woolf (The art of biographie), que foi uma atenta estudiosa e crítica das biografias, percebia-as como o resultado do trabalho não de um artista, mas de um artífice.

Para Woolf, na ficção e na poesia, a imaginação do artista, na sua mais alta intensidade, acende o que é perecível em fato; e constrói com o que é durável. Já o biógrafo seria obrigado a aceitar o que é perecível, o curso de uma vida real – construir com ele, incrustá-lo bem no tecido de seu trabalho. Por isso, o biógrafo estaria mais para um artífice, e seu trabalho não seria uma obra de arte, mas algo intermediário e localizado entre ambos. Para a escritora, a arte da biografia – se é que se pode chamá-la assim – seria a mais restrita das artes, pois tem sua prova bem à mão. Ao contrário da arte efetiva, sua matéria-prima é tangível.

Proximidade Se há uma contraindicação para a feitura de uma biografia é a de que o biógrafo seja alguém muito próximo do biografado ou de seus familiares. Para autores como Janet Malcom (A mulher calada), o biógrafo deve ser um “inimigo” da família do biografado. A jornalista e pesquisadora norte-americana Malcom analisou cinco biografias sobre a vida da poetisa Sylvia Platt, que se suicidou em 1963. A atenção de Malcom se volta especialmente para uma das biografias, Bitterfame, elaborada por Anne Stevenson e lançada em 1989. Mesmo considerando-a, de longe, a melhor das cinco biografias, Malcom desmonta o trabalho de Stevenson, a começar pelo prefácio da obra, em que a biógrafa assinala: “Toda biografia de Sylvia Platt escrita enquanto seus familiares e amigos ainda estão vivos precisa levar em consideração a vulnerabilidade dessas pessoas, mesmo que sua abrangência possa sofrer com isso”.

Para Malcom, Stevenson estabeleceu com o viúvo de Platt, Ted Hughes, uma relação de proximidade e cooperação pouco indicada e que resultou num trabalho que optou por manter-se na superfície da densa vida da poetisa. “Levar em conta, protestou Malcom, a vulnerabilidade! Dar mostras de contrição! Poupar os sentimentos alheios! Deixar de avançar até onde for possível! O que essa mulher estará pensando? A tarefa do biógrafo é satisfazer a curiosidade dos leitores, e não demarcar seus limites. Sua obrigação é sair a campo e, na volta, entregar tudo – os segredos malévolos que ardiam em silêncio nos arquivos. [...] Os familiares são os inimigos naturais dos biógrafos”.

Aspectos diversos como as contratações estabelecidas pelo biógrafo, tanto em relação ao biografado quanto ao leitorado, e as ferramentas, critérios, caminhos e soluções de natureza técnica e estética de que se vale para construir suas biografias, acabam por revelar a percepção e intencionalidades que tem o autor em relação à obra biográfica. Quem teve a oportunidade de ler a biografia sobre Roberto Carlos, construída por Paulo César de Araújo, sabe muito bem que, por si só, o livro não daria motivos ao cantor para que se opusesse e trabalhasse para cassar a publicação. Muito pelo contrário: chega a incomodar na biografia a postura abertamente laudatória do biógrafo, um assumido fã do cantor.

Ou seja, tecnicamente – em termos do que se espera do trabalho de investigação e revelação do biógrafo – é uma biografia frágil. E isso é tão evidente que Paulo César de Araújo insere no texto passagens autobiográficas, que atestam sua admiração por Roberto Carlos. Nada disso fez com que o cantor de Esse cara sou eu! poupasse a biografia. Obteve a proibição na Justiça, valendo-se do disposto no Código Civil brasileiro. Como anunciou recentemente pela mídia, Roberto só aceitaria uma biografia sobre sua vida narrada por ele mesmo. E pondera: “Só eu poderia dar todos os detalhes do que vivi e senti nos momentos de minha vida”.

E promete contar tudo sobre o acidente com o trem, em que perdeu a perna direita – como se ainda houvesse o que ser contado. Quando da proibição do livro de Paulo César de Araújo, entre os inúmeros comentários que circularam, um dava conta de que a reação judicial do cantor tinha se dado em função de o biógrafo abordar o tema do acidente. Difícil acreditar. Paulo César de Araújo narra o fato com timidez, dedicando-lhe pouco mais de dois parágrafos. Como já se disse, é uma biografia frágil, escrita por um biógrafo tímido, sobre a vida de um biografado arrogante.

Por outro lado, seria ingenuidade imaginar que os desvios, inverdades ou imagens equivocadas sobre qualquer pessoa pública sejam, de modo prevalente, cristalizados pelas biografias. Tais narrativas podem, pelo contrário, contribuir para que se desfaçam mitos que foram construídos pela memória coletiva. Dê-se como exemplo a excelente biografia Estrela solitária (Companhia das Letras), sobre a vida de Garrincha – também alvo de ação judicial e escrita por Ruy Castro.

O biógrafo apresenta dados suficientes para desmontar a percepção que o senso comum – com efetivo apoio da imprensa – alardeou e cristalizou sobre Garrincha: a ideia de que o incrível craque de pernas tortas – que tanta alegria deu ao Brasil – foi “esquecido” por toda a nação, tendo morrido pobre e abandonado. Uma meia-verdade. Pobre sim, mas não abandonado. Garrincha nunca foi esquecido pelo povo e recebeu, dos amigos, efetivo e generoso apoio – moral e mesmo financeiro – para que tentasse escapar da bebida. Mas insistia em aplicar seus mais ousados dribles contra si mesmo.

As biografias são, enfim, apenas mais um elemento do infinito universo da memória, que se substancia de mitos, imaginações, crenças sem fundamento e, também, claro, verdades. Uma substância informe que se rearranja, se recicla e se reconfigura permanentemente. E que nos dá uma única certeza em relação ao passado: ele nunca está concluído.


Mozahir Salomão Bruck é pesquisador da PUC Minas.

Política vivida em público‏

Política vivida em público 
 
Ricardo Fabrino Mendonça e Márcia Maria Cruz

Estado de Minas: 16/11/2013


As recentes manifestações que tomaram as ruas de diversos países ajudaram a enterrar a velha hipótese de uma dissociação constitutiva entre “engajamento on-line” e “mobilização efetiva”. Não é possível (como nunca foi) operar com uma dicotomia entre um suposto ativismo de sofá e a concreta manifestação de grupos de interesse em ações tidas como reais. A internet, em sua diversidade de plataformas e modos de interação, perpassa a vida pública contemporânea, configurando-se não como mero instrumento de mobilização, mas como um dispositivo que atravessa a própria construção dos sujeitos, de suas ações e da sociedade em que se inserem.

Não há, pois, como distinguir claramente o que é específico da internet ou mesmo linhas unidirecionais de difusão – como se os protestos “saíssem” da internet para ganhar as ruas. Nem mesmo de uma circularidade entre rua e internet poderíamos falar, já que tal ideia partiria da premissa de que há duas entidades claramente distinguíveis: a rua e a internet. O que parece claro é que não há como separar rua e internet, o que ajuda a contestar a ideia de que o dito mundo on-line é palco de um ativismo cômodo, descompromissado e inócuo, diferentemente da voz do povo nas ruas.

Dito isso, podemos dar mais um passo e pensar algumas consequências das recentes manifestações brasileiras. Há quem defenda que elas acabaram por se dissolver sem deixar muitas consequências. Um olhar atento ao processo revela, todavia, que ele tem sido bastante revelador e transformador. Não estamos, aqui, restringindo as consequências das manifestações às conquistas no plano da política institucional, embora algumas mudanças formais tenham, de fato, ocorrido. Essa redução do sentido das manifestações a conquistas institucionais implicaria desconhecer a própria natureza das manifestações. Mesmo porque seria extremamente difícil avaliar as conquistas em comparação com as demandas, tendo em vista a frequente manifestação pública de reivindicações contraditórias.

Assim gostaríamos de chamar a atenção para três transformações que emergem no bojo das manifestações e que dizem: (1) das formas de algumas lutas contemporâneas; (2) dos conflitos e dilemas experimentados no Brasil atual; (3) do tipo de participação almejada.

(1) As manifestações contemporâneas chamam a atenção por suas características organizacionais, que abrem novas possibilidades para as lutas sociais. Não defendemos, com isso, que elas sejam inteiramente inovadoras em suas estruturas e formas. Mas há de se reconhecer que o conjunto da obra tem certas especificidades. Um ponto que chama a atenção na organização destes protestos é a existência de diferentes níveis organizacionais no interior de uma manifestação. Se há pessoas mobilizadas efemeramente por meio de redes sociais e encontros casuais, existem conjuntos mais organizados de ativistas em torno de grupos, coletivos, movimentos ou associações. Se isso pode parecer óbvio, a compreensão das relações dinâmicas entre esses dois níveis organizacionais não é nada banal. Há pontos de convergência e de tensão entre esses níveis, sendo que os desdobramentos das lutas dependem dessas relações. Por um lado, é interessante observar, por exemplo, como a presença pública de um grande volume de pessoas permite ações que não seriam possíveis de outra forma. Afinal, os ditos “coxinhas” podem prestar um serviço aos ativistas de longa data. Por outro lado, é este mesmo volume que pode levar a uma dispersão das reivindicações. Um segundo ponto sobre a natureza organizacional das manifestações está relacionado a um processo de personalização da participação, que foi bem analisado por Lance Bennett e Alexandra Segerberg.

(2) Para além da dinâmica organizacional de alguns conflitos contemporâneos, as manifestações são reveladoras de conflitos e dilemas experimentados pelo Brasil. Em primeiro lugar, a pulverização das demandas gera uma competição simbólica sobre a efetiva natureza dos protestos. Nessa competição, vieram à tona discursos tradicionalmente invisíveis, que demonstraram sua força e capilaridade. É o que se nota, por exemplo, nos cartazes que propõem o retorno dos militares ao poder. Em segundo lugar, e no sentido de tornar discursos existentes visíveis, observa-se que as manifestações fizeram aflorar as tensões existentes em um país que se diz consensual. No Brasil para inglês ver, não havia conflitos religiosos, nem entre direita e esquerda, assim como o Brasil de outrora já foi visto como uma democracia racial. Ao questionar o mito de um país consensual e capaz de acomodar diferenças, as manifestações contribuíram para a exposição de dilemas muito significativos com os quais se faz necessário lidar.

(3) Uma terceira mudança apreensível a partir das manifestações diz respeito ao tipo de democracia almejada por parcelas significativas da população. Pode-se, facilmente, argumentar os perigos de um sistema político sem partidos para afirmar que os protestos contemporâneos não apresentam uma alternativa concreta à forma como as democracias liberais estão institucionalizadas. No entanto, é possível ler a crítica aos partidos como uma defesa por formas de organização política que aproximem eleitores e representantes e que gerem novas formas de expressão e consideração das opiniões dos cidadãos. Essa defesa implica transformações nas organizações partidárias, nos processos eleitorais e, também, nas próprias instituições participativas existentes. Os protestos parecem apontar para a insuficiência de certas instituições participativas existentes, demandando formas de debate mais inclusivas, abertas, articuladas e empoderadas.

 A institucionalização informal desse anseio nas assembleias populares é forte indício desse desejo. A geração de diversos debates públicos historicamente silenciados (que vão do acesso à cidade até a reforma política, passando por questões de direitos humanos) também acena para o desejo de uma política construída e vivida em público.

Ricardo Fabrino Mendonça é professor adjunto do Departamento de Ciência Política da UFMG. Márcia Maria Cruz é jornalista.

ENTREVISTA - ELIANE BRUM por Carlos Herculano Lopes

O dever de iluminar Escritora defende que literatura e jornalismo têm compromisso com a emoção e a verdade


Carlos Herculano Lopes

Estado de Minas: 16/11/2013



 (Lilo Clareto/Divulgação)

Uma das jornalistas mais reconhecidas do país, ganhadora de 40 prêmios nacionais e estrangeiros ao longo da carreira, a gaúcha Eliane Brum – desde 2010 atuando como repórter independente, depois de ter trabalhado em vários jornais e revistas brasileiros – é também cronista, ficcionista e documentarista, tendo codirigido, entre outros, o filme Uma história severina. Nascida em Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, em 1966, ela é autora do romance Uma duas e do livro de reportagem Coluna Prestes – o avesso da lenda, a vida que ninguém vê, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti em 2007. “Só sei viver escrevendo. Termino ainda este ano um novo livro, que não é nem romance nem reportagem”, disse a escritora, em conversa com o Pensar.


Uma vez você disse que escrevia porque a vida lhe dói. Continua pensando assim? O que escrever significa para você?

Sim, escrevo para transformar dor em palavra. Essa possibilidade, que eu descobri ainda na infância, foi transformadora e me permitiu criar uma vida com sentido. Mas não é só dor o que percebo no mundo, mas também uma abissal delicadeza. Isso me move na reportagem, a delicadeza mesmo nas horas brutas. A frágil e intrincada teia de sentidos com que cada um inventa uma vida, a partir de muito pouco, quase nada. Escrever é minha expressão no mundo. É o que sou e também o que me torno a cada dia. Em um dos textos de A menina quebrada, escrevi sobre a declaração de morte de um grupo de guarani-kaiowá, no ano passado. Precisei, então, pesquisar o que era a palavra para esta etnia indígena, já que carta é palavra. Tanto o conceito quanto a experiência da palavra, para eles, são extremamente sofisticados e muito, muito bonitos. Palavra é também ou principalmente “palavra que age”. Encontrei ali o que busco ser neste mundo: “palavra que age”.

É também assim nas suas reportagens? Há alguma que emocionou você mais?

Todas as reportagens que faço me transformam. Ser repórter exige um gesto profundo de entrega em direção ao desconhecido que é o outro. Assim, tornei-me habitada por todos aqueles que abriram a porta da sua casa e da sua vida para me contar as suas histórias, suas vozes falam em mim. O povo brasileiro ou os vários povos brasileiros me fascinam com seus achados de linguagem e muitas vezes estive diante de analfabetos que faziam literatura pela boca. Então, não conseguiria escolher uma reportagem como aquela que mais me emocionou, porque me sentiria traindo todas as outras. Cada uma delas deixou uma marca em mim, uma marca que me tornou e me torna o que sou. Posso dizer que, no período mais recente, uma das reportagens  que mais me marcaram foi acompanhar os últimos 115 dias da vida de uma mulher com um câncer incurável. Esta foi a principal reportagem que fiz em dois anos trabalhando com a questão da morte – não a morte violenta, que em geral é o tema da imprensa, mas a morte escondida e silenciada na nossa época, que é a morte por doença e por velhice. Silenciada porque é a morte que a maioria de nós terá. Este silenciamento é a marca da nossa época. Mas confrontar-se com a morte é confrontar-se com a vida e por isso perdemos muito ao empreender essa tentativa desesperada e condenada ao fracasso de não lidar com a certeza de nossa finitude. A reportagem, que saiu na revista Época, foi também publicada no livro O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real, pela Editora Globo, de 2010.

O que nesta reportagem afetou você mais?

Me obrigou a um confronto que me levou diretamente àquela que é talvez a questão ao mesmo tempo mais crucial e mais negligenciada: a do tempo. Todas as mudanças que fiz e tenho feito na minha vida desde 2008 foram determinadas por esse enfrentamento. Alice, a mulher que confiou em mim a ponto de me deixar testemunhar o fim da sua vida e escrever uma história que ela jamais leria, tinha tido uma vida dura. Quando ela se aposentou e começou a viajar, a dançar e a se arriscar a outras experiências, veio o câncer. Em um dos nossos primeiros encontros, ela disse: “Quando tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”. Era uma frase profunda e, desde então, a constante reapropriação do meu tempo, a descoberta do que é viver no meu tempo e não no tempo de um mundo regido pela velocidade e pela alienação da experiência, passou a ser meu desafio cotidiano. Mais do que um desafio, um ato de resistência.

Deste desafio, deste ato de resistência é que surgem suas histórias e crônicas?
Como eu era uma repórter escrevendo uma coluna de opinião, usava parte do processo de reportagem na produção de minhas colunas e crônicas. Isso significa que cada uma delas partia de um espanto e seguia uma investigação movida pelas dúvidas. Podia ser tanto uma observação do cotidiano, como no texto que dá nome ao livro, no qual testemunho o momento exato em que uma menina descobre que até as crianças quebram e que não há como colar nossos pedaços. Como podia partir da necessidade de refletir sobre um ângulo pouco abordado de uma notícia, como que tipo de pai Eike Batista podia demonstrar ser no acidente em que um de seus filhos atropelou e matou um ciclista, e o que isso revela sobre a paternidade em nossos dias. Ou mesmo as diferenças entre o Lula real e o Lula do cinema – e o que essas diferenças dizem da passagem dele pelo poder. Meu pacto com o leitor é de só tomar o seu tempo se acreditar que posso iluminar alguns cantos escuros de um acontecimento ou trazer para a luz o que chamo de “desacontecimentos” e não está no noticiário. Essa sempre foi a minha busca. Se consigo ou não, só os leitores podem dizer.

Você diz que a internet mudou o mundo. Como fazer desta ferramenta uma aliada?

A internet mudou o mundo, acho que isso já é um fato. É possível discutir como ela vem mudando e o que significam todas as novidades e desafios que ela nos trouxe, mas a mudança já aconteceu e continua em curso. A internet é um sonho que não sonhamos por falta de elementos para sonhá-lo. Nem mesmo os grandes escritores de ficção científica do século 20, tão competentes em antecipar e perceber realidades futuras, que hoje já se concretizaram, foram capazes de sonhar com a internet. Para o repórter, penso que a internet tem uma potência extraordinária.

De que maneira?
Ela ampliou as narrativas e os narradores, deu voz e meios de amplificá-la a quem não tinha, para que pudesse contar sua versão sobre a história, sobre o seu grupo e sobre si mesmo. Isso torna tudo mais rico e mais desafiador. Se o jornalismo quiser se manter como uma narrativa relevante sobre sua época histórica, terá que reforçar e qualificar aquela que é o seu diferencial: a reportagem. Se ficar disputando as notícias rápidas e rasas, que outros podem fazer e fazem, vai perder credibilidade, reputação e relevância. Ao suprimir os limites de espaço, a internet ainda nos dá a possibilidade de resgatar as grandes reportagens, os textos de profundidade, assim como as entrevistas longas, nas quais o entrevistado pode desenvolver a complexidade do seu pensamento. Acho uma enorme cegueira acreditar que a vocação da internet é a dos textos curtos e rápidos. Pode até ser usada para isso também, mas esta é a parte menos interessante para o jornalismo.

Você nasceu em Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, filha de família ligada à terra. Como foi que se deu a sua iniciação com as histórias?
A família do meu pai é da zona rural e essa é uma experiência que me assinala porque foi lá que eu comecei a ouvir as histórias dos meus tios, com suas bombachas puídas da vida na roça, um cigarro de palha no canto da boca, os dentes ruins, os rostos, os pés e as mãos vermelhas por causa da geada das madrugadas de inverno. Mas eles eram histórias, a vida era essa narrativa da vida, e eu era ao mesmo tempo estrangeira e parte daquele mundo. Só podia ser parte porque estrangeira. Sempre me senti assim. Acho que foi assim que me tornei “escutadeira”.

O que veio primeiro, a literatura ou o jornalismo?

Meu primeiro amor foi a literatura, porque a palavra escrita me deu a possibilidade de viver. Até descobrir os livros eu não sabia o que fazer com as histórias que escutava dos outros e mesmo de mim. A literatura arrancou a pesadeira do meu peito e alargou meu mundo de dentro, me dando uma outra geografia, na qual eu poderia ser a história que quisesse. E essa possibilidade de ser planta, bicho, princesa, alien, homem, velho, me salvou. Mas sempre vivi parte dentro, parte fora, sempre tive uma enorme curiosidade pelo mundo que é o outro, e foi isso que em levou para a reportagem. Preciso da ficção e da reportagem para viver. Como escritora, acho que minha voz na ficção é muito diferente da minha voz na reportagem e talvez por isso eu precise das duas para existir. 

Bruto, como a vida - João Paulo

Aos 88 anos, Rubem Fonseca lança o volume de contos e poemas Amálgama, em que mostra a permanência de temas e linguagem, sem perder a capacidade de dialogar com as novas gerações
 

João Paulo

Estado de Minas: 16/11/2013



Com tramas protagonizadas por gente solitária e comum, Rubem Fonseca mostra que não tem medo de cara feia nem defende ideias redentoras sobre moral e política (Marcelo Carnaval/AG)


Com tramas protagonizadas por gente solitária e comum, Rubem Fonseca mostra que não tem medo de cara feia nem defende ideias redentoras sobre moral e política
Rubem Fonseca está com 88 anos. Tecnicamente, um velho. Mas o escritor, que sempre prezou a força do corpo, as demandas do mundo e as cobranças do sexo, certamente não gostaria de ser chamado assim. Arredio, com poucas aparições públicas, sem dar entrevista ou se deixar fotografar, Rubem Fonseca mantém com seus livros a janela que escolheu manter aberta para a vida. É assim que chega ao seu 29º título, Amálgama, coleção de contos curtos e alguns poemas.
Autor de obra considerável para quem já começou a publicar já maduro, Rubem Fonseca estreou como contista com Os prisioneiros, em 1963, ao qual se seguiram dois outros volumes de histórias curtas. Já era considerado um clássico de nascença com seus contos quando lançou o primeiro romance, O caso Morel, em 1973, abrindo novo flanco criativo. A partir daí, romances e contos se equilibram em sua bibliografia, com um único volume de crônicas, O romance morreu, e um pequeno ensaio autobiográfico, José.

Amálgama tem um pouco do melhor Rubem Fonseca, inclusive a capacidade de, em meio ao aparentemente conhecido, trazer sempre a marca da originalidade. As histórias, a maioria em primeira pessoa, são intercaladas com alguns poucos poemas, quase prosa poética, de forte peso referencial, que parecem esboços de narrativas que ficaram apenas na intenção. Muito duro para ser poeta de verdade, o prosador no entanto parece revelar o lirismo bruto que lhe sopra das origens de sua invenção.

A carreira longa de Rubem Fonseca deu a ele uma característica que não é incomum na república das letras: uma certa má vontade que persegue os bons. Há um ressentimento atávico na imprensa e na academia com quem parece portar o segredo de escrever ao mesmo tempo para o grande público e para os iniciados. Depois de ser incensado por muitos anos pela força de sua criação, pela inauguração de novo cenário moral, pela limpidez de sua linguagem e pela brutalidade de seu universo, o esporte da vez passou a ser malhar o escritor. Assim, cada livro era sempre considerado um amaneiramento do anterior, como se Zé Rubem, como é tratado pelos amigos, tivesse perdido a mão em nome do sucesso.

O novo livro, Amálgama, é uma confrontação com a história deste juízo. O escritor retoma seus temas, enxuga ainda mais a linguagem, recupera algumas obsessões, faz uso de referências literárias e não recua diante da falta de sentido, da suspensão da ética ou da explícita manifestação do mal. O contista reencena a cada narrativa seu assumido ceticismo com o destino do homem, mas sempre baseado em uma forma vicária de justificação, que serve apenas ao personagem e não busca convencer o leitor de seu acerto. O título do livro, dessa forma, poderia ser lido de forma dupla: ao mesmo tempo funde várias intenções em um composto único e denso e, com certa liberdade, propõe-se a ser uma oferta de todas as formas de erro humano, uma certa gama de males.

Em “O filho”, uma jovem de 16 anos pensa em vender o bebê que carrega na barriga para que a mãe possa comprar uma dentadura. O fim é mais sórdido que a situação em si e mostra que os limites estão ainda além da pura maldade. Em “Decisão”, um matador de aluguel apresenta seus limites éticos depois de torturar uma mulher e se recusar a cumprir um contrato de extermínio. “Isto é o que você deve fazer” é a curta história de um homem que se especializou em assassinar gatos. O pungente “Conto de amor” narra a história de um pai que manda um filho para a guerra por amor. “O ciclista” recupera uma das atitudes presentes em outros momentos da obra fonsequiana: a busca da redenção por meio de uma forma peculiar de se fazer justiça contra as demasias dos homens e as leniências da lei.

O resumo das histórias, contudo, não dá a dimensão literária nem se aproxima da motivação humana do escritor. Rubem Fonseca não quer apenas contar histórias fortes, mas dizer certas coisas de uma maneira muito própria. Em cada um dos relatos ele oferece toda sua desconfiança com os poderes da linguagem (vários narradores são escritores que tentam se expressar e duvidam das palavras) e com a capacidade de entrar no coração das pessoas. Se nos primeiros livros do autor a força das circunstâncias tinha um peso evocativo de outras determinações (como falar em violência e exclusão durante o regime militar), agora o peso é mais real, quase expulsando a metáfora para fora de um mundo em que o mal é muito mais amplo que a ditadura que vem de fora.

Com Amálgama, Rubem Fonseca parece seguir a trilha de outro contista recluso, Dalton Trevisan, sofisticando ainda mais a linguagem quanto mais parece estar abrindo mão dela. Há quase um grau zero da escrita, um ponto em que as palavras parecem ter custado muito para ser escolhidas para figurar ali, mas sem que demonstrem o esforço que as sustenta. Senhor das histórias de mistérios, o escritor sabe que o crime perfeito não pode deixar marcas.

Corações solitários Rubem Fonseca é um autor sofisticado. E, ao mesmo tempo, é popularíssimo, na linha dos escritores americanos de hard boiled, uma de suas referências. Assim, ele oferece com sua grande arte o prato certo para cada leitor. O aficionado em histórias de crimes e violência vai se deparar com um mestre, principalmente nos contos. Quem procura outros materiais em seu amálgama vai dispor de uma visão de mundo cínica, construída de forma cuidadosa, habitada por gente aparentemente comum, como pequenos golpistas e solitários de várias estirpes, que são capazes de tudo para mostrar que estão certos. Mas não o fazem por meio de discursos, mas de ações determinadas. Como diria Chesterton, louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão.

Uma mesma história, dessa forma, vai permitir muitas leituras: da diversão (ainda que cruel) à leitura da alma das personagens e das circunstâncias morais de seu tempo e de seu meio, sobretudo da cidade do Rio de Janeiro. Com Fonseca, os leitores aprenderam a sair do explícito de suas palavras para mergulhar em uma espécie de hipertexto de outra realidade. O mesmo leitor que desliza na trama superficial pode, de repente, se ver enredado pela profundidade do que experimenta. Para o autor de O cobrador, não há nada mais profundo que o superficial. Ao mesmo tempo em que narra, o escritor ensina a ler nas entrelinhas que ele mesmo cria.

Um criador contemporâneo que parece lançar mão do mesmo método é o cineasta americano Quentin Tarantino, conhecido pela ambição de reprocessar lixo da cultura popular em arte de qualidade. Fonseca e Tarantino parecem hábeis jogadores no terreno da metalinguagem, extraindo ouro do monturo, fazendo amálgamas duráveis de materiais altamente perecíveis. O escritor brasileiro (que sempre se confessou cineasta frustrado, teve seus livros levados às telas e é pai de diretor de cinema) é muito mais radical e não se perde em gracinhas e violência quase pornográfica. Pode-se rir das matanças de Tarantino. Em Fonseca, a violência sempre causa asco.

Há em tudo que Rubem Fonseca escreveu, e Amálgama não é exceção, uma defesa individualista da existência. Não que a convivência e a política deixem de se manifestar em seu mundo, mas sempre o fazem a partir do homem só e de suas frustrações em alcançar a felicidade ou fazer justiça. E no mais extremo limite do sujeito parece restar apenas o corpo. Rubem Fonseca sempre foi siderado pela dimensão física da existência, pela força do sexo, pelos desvios da fisiologia, pela afirmação da consumação como destino inevitável. Sexo e morte são seus limites, os líquidos corporais e as impossibilidades da vida plena são seus desvios e geram histórias cheia de dor e fúria.

O último conto do novo livro chama-se “Foda-se” e é sobre um homem que descobre que perder coisas é o caminho para recuperar a energia de vida. Quando nada mais interessa além das funções mais básicas da carne, um grande foda-se ao mundo das convenções é uma afirmação tão fisiológica quanto política. Rubem Fonseca é capaz de dar dimensão metafísica até a um palavrão.

AMÁLGAMA
• De Rubem Fonseca
• Editora Nova Fronteira
• 160 páginas, R$ 29,90

O dedo na ferida - André di Bernardi Batista Mendes

O dedo na ferida
 
Em Afirma Pereira, Antonio Tabucci mostra os dilemas existenciais e as descobertas de um jornalista português em plena ditadura salazarista


André di Bernardi Batista Mendes


Estado de Minas: 16/11/2013


O italiano Antonio Tabucchi manteve relação amorosa com a literatura portuguesa, sobretudo com Fernando Pessoa   (Morena Brengola/Getty Images)


O italiano Antonio Tabucchi manteve relação amorosa com a literatura portuguesa, sobretudo com Fernando Pessoa
Pereira era viúvo, cardíaco e infeliz. Pereira encontrou, numa noite de setembro de 1992, a pessoa ideal, o interlocutor perfeito para “dizer-se”, para “contar-se”. “Naquela noite de setembro, compreendi vagamente que uma alma, que vagava pelo éter, precisava de mim para se narrar, para descrever uma escolha, um tormento, uma vida.” Em agosto de 1993, o italiano Antonio Tabucchi escreveu a última página do livro Afirma Pereira. A obra acaba de ser relançada pela editora Cosac Naify, depois de O tempo envelhece depressa (2010) e Noturno indiano (2012).

Escrito em forma de testemunho, Afirma Pereira narra as desventuras de um jornalista viúvo, de meia-idade, que se ocupa de sua saúde frágil e trabalha para a página cultural de um jornal conservador. O livro se passa em Portugal, no final dos anos 1930, quando estava se firmando a ditadura salazarista, que duraria até 1974. Tabucchi também escreve tendo como pano de fundo o fascismo italiano e a guerra civil espanhola. É inegável, portanto, a aura política que envolve e empresta brilho e diversos sabores ao livro. Pereira, um ordinário ser, apega-se, num primeiro momento, à sua rotina, a despeito do clima de terror e de catástrofes iminentes, a despeito da censura, distante de um clima geral de opressão que nada mais faz que ampliar o medo. Pereira bebe limonada sempre no mesmo local, é servido pelo mesmo garçom, percorre as mesmas ruas – em horários fixos – e conversa com o retrato da mulher morta. Nada mais triste.

Outro problema, este insolúvel: já na primeira página, “naquele belo dia de verão, com a brisa atlântica acariciando o topo das árvores e o sol resplandecendo, e a cidade que cintilava, literalmente cintilava sob sua janela”, Pereira começa a refletir sobre a morte. Pereira, até aquele momento, era católico, “um bom católico” que, entretanto, não acreditava na ressurreição da carne.

Somos os nossos melhores inventores. Somos inverificáveis até certo ponto e tudo começa a partir do desejo. O livro aborda o núcleo de uma reviravolta. A rotina de Pereira reflete uma passividade diante da vida e dos acontecimentos que o rodeiam, mas tudo muda quando ele conhece Monteiro Rossi, jovem que passa a colaborar para o jornal. A função deste seria escrever necrológios antecipados de autores ilustres. Rossi e sua namorada, Marta, auxiliam o protagonista de forma definitiva e arrebatadora. Além de Marta e Rossi, outros personagens tornam-se importantes: um padre (António) e um médico (doutor Cardoso, que lhe apresenta a Confederação das Almas, uma interessante e sugestiva teoria filosófica). A amizade, a influência é uma espada, é uma corda desprovida de pontas e desespero.

Toda convicção é, de certa forma, imprecisa, e as razões do coração não são as mesmas para todos. As afirmações de Tabucchi chamam a nossa atenção para um grande dilema: um verdadeiro homem consolidado é aquele que sabe de sua pequenez, que encara a sua incompletude. “Senta-te ao sol. Abdica/ E sê rei de ti próprio”, afirma Fernando Pessoa. “As razões do coração são as mais importantes”, afirma Pereira, num importante trecho do livro.

Tudo muda para Pereira a partir de uma série de acontecimentos. Tudo muda para Pereira depois que algumas palavras – proibidas – surgem impressas. Exercício de reflexão, para além e sobre os limites impostos e incorporados por um homem, Tabucchi fala sobre avessos, sobre mudanças e sobre descobertas. É preciso água e tempo. É preciso inventar um trampolim feito de palavras, é preciso, sobretudo, coragem. É preciso força para enxergar, é preciso coragem para ouvir, é preciso alegria para chegar ao outro; é preciso coragem e atos radicais para chegar a si mesmo.

A poderosa e burra mão da violência, sem saber (e não é sempre), acaba, no caso do livro, por moldar, acaba por lapidar a personalidade de um homem inteiro, um homem que, como poucos, soube esperar para, enfim, cantar (ainda que com palavras de dor) dentro de sua integridade recomposta. Pereira, entregue ao rio dos acontecimentos, passa a obedecer a outros desmandos naturais. A nossa individualidade (que, no caso de Pereira, bate de frente com a realidade), a nossa existência pode e deveria ser muito mais rica e intensa de pássaros. Antonio Tabucchi acha para Pereira, por fim, significados políticos e existenciais para eventos e infortúnios.

Estilo discreto O silêncio, o vazio, a brutalidade. Quem ou o que se apropria de forma grotesca do que existe em nós de mais precioso? Por que, que força nos impele a entrarmos em histórias que, a princípio, certas sombras, certos cães insistem em morder, insistem em dizer que não nos dizem respeito? Que água, que força, que combustível nos acorda, que tipo de fagulha raríssima serve para acender um homem? Antonio Tabucchi sabe algumas respostas, mas as diz de forma delicada, sem sobressaltos, sem gritos de rock e despreparo, dentro de uma linearidade inteligente e sedutora, com um estilo que preza a economia.

Kabuki é uma forma de teatro japonês, conhecida pela estilização do drama e pela elaborada maquiagem usada pelos atores. Em Afirma Pereira, Antonio Tabucchi trabalha no sentido contrário. Ele parte de uma espécie de drama para chegar, para confiar no real. Limpando camadas sobrepostas de dúvida, descaso, solidão e desamparo, o escritor, a cada página, com a força das palavras, vai revelando, aos poucos, um rosto único, humano até a alma, esta sim talvez passível de ressurreições. Tabucchi cria canais de aproximação.

O desejo de liberdade é uma limonada, é um vinho do Porto que se abre e que se toma no escuro; liberdade é sinônimo de veneno. Tabucchi, por meio de Pereira, mostra que é preciso, sim, interferir para, lembrando Fernando Pessoa, outro português incrível, aprendermos a levitar diante do desassossego. (Vale lembrar: apaixonado pela obra do poeta, Tabucchi traduziu para o italiano diversos textos do mestre dos heterônimos). Todos os atos carregados de generosidade, toda tomada de consciência implica necessariamente a formação de ventos e tempestades. “Pereira enfim conhece a capacidade de indignar-se e de agir. Sem a qual, no fim das contas, a vida vale bem pouco”, afirma, na apresentação do livro, Maurício Santana Dias.

Tabucchi nasceu em Pisa, em 1943, mas desde 2004 tinha também nacionalidade portuguesa. Um dos principais escritores europeus contemporâneos, Antonio Tabuchhi morreu em 25 de março de 2012, em Lisboa.

AFIRMA PEREIRA
• De Antonio Tabucchi, tradução de Roberta Barni
• Editora Cosac Naify
• 160 páginas, R$ 29,90

Caçadores de hereges‏

Livro reúne estudos que narram a história da inquisição e da perseguição feita aos judeus, cristãos-novos e indígenas nas Minas Gerais do século 18



Ângela Faria


Estado de Minas: 16/11/2013


Júnia Ferreira Furtado narra a dramática e reveladora história dos portugueses irmãos Nunes, que viveram entre a Bahia e Minas     (Leandro Couri/EM/D.A Press)
Júnia Ferreira Furtado narra a dramática e reveladora história dos portugueses irmãos Nunes, que viveram entre a Bahia e Minas


Pelo menos desta vez, Inquisição não é propriamente castigo. Organizado pelas historiadoras Júnia Ferreira Furtado e Maria Leônia Chaves de Resende, o livro Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício (Fino Traço Editora) revela personagens sofridos e fascinantes, protagonistas de alentados ensaios sobre a saga de cristãos-novos e seus “caçadores” na Terra de Santa Cruz que se tornou Brasil.

É bom lembrar: a fogueira não foi exclusividade de judeus, obrigados pela coroa portuguesa a se converter ao catolicismo no século 15, e de seus descendentes. Acusados de feitiçaria, bigamia ou superstição, sobrou também para os índios. Em 1745, um deles, Custódio da Silva, acabou preso às galés por cinco anos. Aos negros se atribuíam os crimes de mandinga, cópula carnal com o demônio e adivinhação.

Em 17 capítulos, cerca de 20 especialistas analisam como a Igreja e a Inquisição moldaram o universo religioso-católico no espaço geográfico do império marítimo português. O Tribunal do Santo Ofício não se instalou no Brasil, mas nossas capitanias se enredaram em seus tentáculos. Do século 16 ao início do século 19, 1.076 prisioneiros de nosso país foram sentenciados pela Inquisição, 29 deles submetidos à pena capital. Calcula-se que 57 cristãos-novos de Minas Gerais foram processados – oito morreram queimados.

Pode parecer pouco, mas Travessias inquisitoriais... deixa claro: o impacto desse processo transcende – e muito – as estatísticas. As organizadoras do livro argumentam que, dessa forma, cumpriu-se a missão de “homogeneizar a fé e os ritos católicos, caçando bruxas de tradição europeia, reprimindo as crenças e os deuses africanos e indígenas, e, mais particularmente, perseguindo os cristãos-novos que teimavam em judaizar”. O leitor encontra reflexões sobre as relações da Inquisição com o episcopado lusitano; descobre que ser agente do Santo Ofício dava status e que muita gente fingia ser um deles; indigna-se com suplícios e torturas impostos aos prisioneiros em Portugal.

Pessoa


São muitas as desventuras dos personagens desta cruel história. Um deles morou por 25 anos em Ouro Preto, no século 18. Martinho da Cunha de Oliveira Pessoa veio de família de cristãos-novos portugueses e se dividia entre duas vidas: a de “fora”, como católico, para escapar da perseguição, e a de “dentro”, junto dos seus, seguidor do judaísmo às escondidas.

Preso em Portugal, Martinho foi obrigado a pedir perdão aos inquisidores. Ao se ver “livre”, emigrou para o Brasil. Fez fortuna, reunia-se com outros “judeus secretos” em Vila Rica. Eles tinham cultura e livros. De volta ao país natal, foi encarcerado novamente e morreu queimado, em abril de 1747, a mando da Santa Inquisição. “Não posso estar em parte alguma./ A minha pátria é onde não estou”, escreveria, muitos anos depois, um de seus descendentes, Fernando Pessoa. Na opinião da historiadora Anita Novinsky, os versos do multifacetado poeta remetem à saga de seus antepassados.

Relatado por Júnia Furtado, o caso dos irmãos Nunes daria uma bela minissérie de TV. Descendentes de famílias que escaparam de perseguições inquisitoriais espanholas, os portugueses João, Diogo e Sebastião receberam secretamente os ensinamentos do judaísmo. Oficialmente, eram católicos batizados e crismados. Comerciantes, estabeleceram-se em Salvador e decidiram fazer fortuna na região das minas, às quais tiveram acesso graças ao Caminho dos Currais – ao longo dessa rota, aliás, fixaram-se várias famílias de cristãos-novos. De 1709 a 1724, os Nunes zanzaram entre Minas Gerais e Bahia, deixando escritos preciosos sobre a região, seu povoamento e a respeito de fatos históricos, como a Guerra dos Emboabas.

Nas palavras de Júnia, os Nunes nos legaram uma “geografia vivida”, entrelaçando Salvador a Pitangui, Serro do Frio, Vila Rica e Itacambira. Graças a roteiros de viagem dos irmãos, o cartógrafo francês Jean Baptiste Bourguignon D’Anville pôde descrever o território da América portuguesa que consta da Carte de l’Amérique méridionale. Aqueles registros serviam de guia para outros cristãos-novos acessarem o “éden minerador”.

Em sua análise instigante, Júnia remete ao imaginário judaico as descrições topográficas, da fauna e da flora feitas pelos irmãos. O Rio Jordão se encontra com o Rio São Francisco; o sertão brasileiro parece tão hostil quanto regiões percorridas depois da travessia do Mar Vermelho. Pelos Nunes, ficamos sabendo dos bichos, frutas e índios das Minas setecentistas. João morreu, Sebastião viveu em Londres, onde pôde abraçar sua fé, enquanto Diogo se viu preso e obrigado a revelar detalhes do judaísmo praticado na colônia, delatando cristãos-novos como ele. Há indícios de que conseguiu encerrar sua saga errante em Minas Gerais.

Jurema

Às heresias do Velho Mundo se juntaram as novidades do éden americano. No século 18, missionários católicos acionaram agentes da Inquisição para pôr fim ao ritual que envolvia o consumo de uma bebida alucinógena obtida a partir de uma planta chamada jurema.

Desta vez, o “feiticeiro” se deu bem. O historiador James Wadsworth revela: praticado inicialmente em aldeias indígenas da Paraíba, o culto se espalhou, avançou pela Amazônia e chegou ao século 21 com o status de símbolo-chave da “indianidade” nordestina.

TRAVESSIAS INQUISITORIAIS DAS MINAS GERAIS AOS CÁRCERES DO SANTO OFÍCIO
. Organizado por Júnia Ferreira Furtado e Maria Leônia Chaves de Resende
. Fino Traço Editora, 484 páginas, R$ 65

Tv Paga

Estado de Minas: 16/11/2013 



 ( Paramount/Divulgação)
Sessão pipoca
Clive Owen é o nome mais conhecido do elenco de Agente C – Dupla identidade, suspense que estreia hoje, às 22h, na HBO, com uma trama de espionagem que envolve ativistas do grupo terrorista IRA. Mas ação por ação, o Telecine Premium extrapola com a eletrizante aventura João e Maria: caçadores de bruxas, com Jeremy Renner e Gemma Arterton (foto) e um monte de efeitos especiais de fazer o queixo cair. O problema é que vai ao ar também às 22h, mesmo horário do drama político No, com Gael García Bernal, estreando no Telecine Cult.

Muitas alternativas na
programação de filmes


Sábado é dia das sessões especiais, e o Megapix caprichou na sua, emendando os quatro primeiros filmes da saga Todo mundo em pânico, a partir das 18h35. Na concorrida faixa das 22h, o assinante tem mais 10 opções: Polaroides urbanas, no Canal Brasil; Batman: o Cavaleiro das Trevas ressurge, na HBO HD; Padre, na HBO 2; Os especialistas, no Telecine Action; Mamma mia!, no Telecine Touch; Tão forte e tão perto, no Max HD; A casa dos sonhos, no Max Prime; O desinformante, na Warner; O vigarista do ano, na MGM; e Segurando as pontas, no Comedy Central. Outros destaques da programação: Motoqueiro Fantasma, às 21h30 , no Universal; Zohan: um agente bom de corte, às 22h30, na Fox; e Treze homens e um novo segredo, às 22h30, no FX.

Documentário discute
a identidade angolana


O SescTV estreia hoje, às 22h, o documentário Cartas para Angola. Ganhador do prêmio da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, o filme, dirigido por Coraci Ruiz e Julio Matos, discute a identidade angolana por meio de depoimentos de angolanos, brasileiros e portugueses, separados por um oceano.

Velozmente emplaca
segundo ano no DCK


O Discovery Kids estreia hoje a terceira temporada de Velozmente, às 19h30. Apresentado pelo ator Mariano Chiesa, o programa conta com a participação de crianças brasileiras, argentinas, mexicanas e colombianas. A proposta é desafiar a memória e a concentração das crianças, com jogos e histórias animadas, criadas especialmente para divertir e estimular suas habilidades audiovisuais.

Don L e Filipe Catto
na telinha da Cultura


O rapper Don L se apresenta hoje no palco do Manos e minas e bate um papo com o apresentador Max B.O., às 17h, na Cultura. No mesmo canal, às 18h, Roberta Martinelli recebe o cantor e compositor Filipe Catto no programa Cultura livre.

Multishow transmite
espetáculo de humor


O Multishow vai transmitir ao vivo e com exclusividade a apresentação que o grupo de humor Os Melhores do Mundo faz hoje em Brasília, às 22h. O espetáculo Tira – Codinome perigo brinca com os filmes policiais americanos, numa sátira afiada a Hollywood.  

VIDEOBRASIL » Como tudo começou‏

Estado de Minas: 16/11/2013 



O cineasta Fernando Meirelles está entre os convidados do Videobrasil na TV  (GBrosch/Divulgação )
O cineasta Fernando Meirelles está entre os convidados do Videobrasil na TV



A 18ª edição do Videobrasil, que celebra os 30 anos do evento audiovisual que reúne artistas do mundo todo em dois espaços de São Paulo (o Sesc Pompeia e o Cine Sesc), tem programação estendida também para a telinha. A partir de segunda-feira, a nova temporada do programa Videobrasil na TV explora as questões que orientam essa edição do festival. Os três primeiros programas contemplam as transformações do Videobrasil e da produção artística contemporânea nas últimas três décadas, focalizando, à luz do presente, o surgimento do evento na cena cultural paulistana dos anos 1980 e seu diálogo com diferentes contextos artísticos, estéticos, sociais e políticos.

Na segunda-feira, a partir das 23h, será exibido programa sobre o tema “Produção independente: televisão e abertura política”, que aborda questões que motivaram o surgimento do Videobrasil no contexto das primeiras produções independentes de vídeo, da abertura política, do fim da ditadura militar e o desejo de dar visibilidade a questões sociais, políticas e culturais do período. Os entrevistados são Ana Maria Maiolino, Eder Santos, Fernando Meirelles, Gabriel Priolli, Goulard de Andrade, José Celso Martinez Correa, Marcelo Machado, Marcelo Tas, Ninho Moraes, Solange Farkas, Tadeu Jungle, Walter Silveira, Lucilla Meirelles e Kiko Farkas.

O programa segue sempre às segundas-feiras, às 23h, com os seguintes temas “Vídeo: linguagens, tecnologias e as novas possibilidades” (dia 25); “Internacionalização: nas visões do Sul” (2 de dezembro); “Circuitos expandidos” (9 de dezembro).
As mostras 30 anos e Panoramas do Sul continuam em cartaz até 2 de fevereiro de 2014, no Sesc Pompeia, Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo. Entrada franca.

Para sintonizar o SescTV: Canal 3 da Sky; Canal 137 da NET; Canal 29 da Oi TV.

Cara a cara - Ana Clara Brant

Cara a cara
 
Atores que levaram para as telas personagens reais falam da experiência de conviver com o imaginário do público. Depois de Gonzaguinha, Júlio Andrade vai ser Paulo Coelho no cinema


Ana Clara Brant

Estado de Minas: 16/11/2013


Júlio Andrade no papel de Paulo Coelho no filme
Júlio Andrade no papel de Paulo Coelho no filme "Não pare na pista"


Júlio é Gonzaguinha ou Gonzaguinha é Júlio? Thiago é Renato ou Renato é Thiago? E Larissa é Maysa, ou seria o contrário? Quando um ator interpreta um personagem, ele mergulha a fundo e muitas vezes chega a ser confundido com o papel. Quando vive uma figura que realmente existiu, aí a linha é ainda mais tênue. “No filme Não pare na pista (cinebiografia de Paulo Coelho), tinha que ser o Paulo, mas ao mesmo tempo tinha que ser eu mesmo. No caso do Gonzaguinha foi a mesma coisa. O grande desafio é não cair no estereótipo da imitação e acho que consegui isso com os dois trabalhos”, declara o ator Júlio Andrade, que já virou expert em viver personagens reais. “E ainda fiz o Raul Seixas no especial Por toda a minha vida, da TV Globo. Acho que minha cota desses papéis já está boa, né?”, brinca.

Apesar de ter trilhado um bom caminho antes de encarnar esses personagens, foi a partir deles que Júlio se tornou conhecido do público. O mesmo ocorreu com Thiago Mendonça, que deu vida ao sertanejo Luciano em 2 filhos de Francisco. O ator carioca não temeu ficar estigmatizado pelo papel e reconhece a projeção que a interpretação deu à sua carreira. “Em todos os trabalhos me dedico de corpo e alma e cada experiência tem a sua importância. Claro que o Luciano foi algo fantástico, porque foi visto por milhões de pessoas. Mas não tive medo de ficar marcado por ele. E, anos depois, surgiu o Renato Russo, que veio me redimir. Mostrou que sou capaz de ser personagens completamente diferentes. O público já consegue enxergar o ator ali”, analisa Thiago, que viveu o líder do Legião Urbana no filme Somos tão jovens.


Júlio Andrade como o cantor Gonzaguinha em Gonzaga, de pai para filho (Isabel Valiante/Divulgação  )
Júlio Andrade como o cantor Gonzaguinha em Gonzaga, de pai para filho

Larissa Maciel, que despontou na minissérie Maysa na pele da cantora protagonista, também assegura que nunca teve receio de ficar marcada pelo carisma da deusa da fossa. Em todos os papéis que interpreta, assim que grava a última cena chega a ter o que considera um período de “luto”, mas depois se sente pronta para outro desafio. “Todo ator deseja ter a oportunidade de interpretar alguém que se torna inesquecível, e Maysa foi assim. Não convivo com os personagens depois que um trabalho acaba. Quando tem um novo no ar, as atenções do público se voltam para ele. As pessoas na rua querem saber o que vai acontecer, torcem, dão lição de moral. Maysa, felizmente, continua viva na lembrança de muita gente e adoro isso. Ficaria muito triste se ninguém mais se lembrasse. Sempre que alguém me aborda para comentar como gosta do meu trabalho e cita a minissérie, sinto a sensação de dever cumprido”, revela a atriz, que está grávida do primeiro filho.

A gaúcha relembra que para a Maysa “nascer” foram necessários seis meses de trabalho diário, com vários profissionais, entre eles uma especialista em composição de personagem, uma fonoaudióloga e uma professora de canto e performance. O fato de ter 11 anos de carreira quando fez a minissérie global foi fundamental para que tivesse a maturidade e a experiência necessárias para realizar um trabalho tão complexo. “Representar uma personagem real me levou a descobrir possibilidades que talvez não experimentasse como atriz na ficção. Tinha que fazer o público acreditar que eu era a Maysa, alguém que conheciam e de quem se lembravam. Não há espaço para se acomodar e não ir a fundo na composição. Convencer como um personagem que ninguém tem parâmetros para comparar é muito diferente. Ter essa experiência foi um presente”, celebra Larissa.

Júlio Andrade destaca que não costuma compor e nem construir personagem, e que sua criação vai muito em cima do “fluxo e da intuição”. Entretanto, no caso dos tipos inspirados em pessoas reais, tem que seguir alguns registros inevitáveis. Com Gonzaguinha, o ator gaúcho diz que foi um processo bem solitário e que o fato de ser fã do cantor e compositor facilitou na hora de interpretá-lo. “No personagem ficcional você tem mais liberdade para criar. Mas nos reais não. No caso do Gonzaguinha, as pessoas conheciam o jeito dele, já tinham uma imagem formada. E quando o encarnei, facilitou o fato de eu ter um timbre parecido, já cantava muita música dele, e mesmo assim vi muitos vídeos e entrevistas. Lembro-me que quando o Breno Silveira (diretor de Gonzaga – De pai pra filho) me viu, falou que eu já estava preparado e nem precisava fazer o teste”, recorda.
Depois de viver o sertanejo Luciano, Thiago Mendonça interpretou Renato Russo em Somos tão jovens  (Imagem Filmes/Divulgação)
Depois de viver o sertanejo Luciano, Thiago Mendonça interpretou Renato Russo em Somos tão jovens

Cobranças Já em Não pare na pista, previsto para estrear em 2014, em que interpreta o escritor Paulo Coelho, Júlio comenta que a preparação foi diferente, até porque vive o mago a partir dos 30 anos, um pouco antes de ele se tornar famoso. Chegou a passar três dias o observando em Genebra, na Suíça, onde Paulo mora, e se aprofundou em sua obra. “O Paulo Coelho que estamos acostumados já é mais velho, depois dos 50 anos. Não tem muito registro dele no período que começo a fazê-lo, lá pelos 30. Tive essa liberdade de não me preocupar tanto com os trejeitos e o modo de ser e de falar. Foi uma experiência diferente interpretar uma pessoa que ainda está viva. Ele chegou a me ver maquiado e ficou impressionado”, conta Júlio, cujo irmão, Ravel Andrade, vive o escritor na adolescência.
A atriz Larissa Maciel deu vida ao mito da MPB, a cantora Maysa (Renato Rocha Miranda/Divulgação)
A atriz Larissa Maciel deu vida ao mito da MPB, a cantora Maysa

Já Thiago Mendonça, que também teve dupla experiência de interpretar personagens reais no cinema, acredita que eles são praticamente composições coletivas, especialmente os famosos, já que agregam muito sentimento em torno de si, sejam de amigos, familiares ou admiradores. No entanto, faz questão de estar aberto a essas impressões e acredita que elas também ajudam na hora de criar.
Para Thiago, esse tipo de trabalho é uma faca de dois gumes, já que ao mesmo tempo em que facilita ter o relato de quem conviveu com o personagem e ter acesso a materiais como vídeos e entrevistas, abre espaço para a cobrança em ficar o mais parecido possível com a figura real. “Existe essa imagem formada na cabeça das pessoas e se não for parecido com o que elas conhecem acaba desacreditando um pouco. Quero mais é exercitar meu ofício”, sintetiza o ator, que está escalado para a próxima novela de Manoel Carlos, Em família.

ARNALDO VIANA - A confissão‏

Estado de MInas: 16/11/2013 




Há mais de 20 anos, o Chico morreu. Foi ao velório e ao enterro do amigo e, vendo-o no caixão, lamentou várias vezes a falta de coragem de chegar e contar. Conheceu o Chico quando chegou àquele escritório, aos 15 anos, para trabalhar na limpeza. Varrer e encerar as três salas e lavar o banheiro era tarefa mole para quem tinha as mãos calejadas do trabalho em pedreira. Depois, saía com as mãos cheias de faturas e correspondência para entregar aos clientes.

Chico, um pouco mais velho, já era auxiliar de escritório. Ficaram amigos. Às segundas-feiras, falavam das garotas do fim de semana, do futebol, das façanhas de adolescentes. Mais de 20 anos e ainda se lembra de todas as conversas. Chico de cabelos lisos, calças jeans, botinhas da moda. Um galã. Olhava-o com admiração. Não podia se comparar ao amigo na elegância, pois mal tinha duas mudas de roupa para trocar. E sapatos toscos escondiam meias furadas.

Ao meio-dia, um pouco mais, um pouco menos, chegava a marmita do Chico. Às vezes o pai, às vezes um irmão. Alguém trazia a comida. Olhava a comida. Um bife suculento, coberto por molho de tomate. Arroz, feijão, salada. Olhava a marmita do amigo, que sempre deixava a salada, e suspirava fundo. Terminado o almoço, Chico fechava a marmita e perguntava:
– E você, bicho, não vai almoçar?

– Vou sim, Chico. Vou descer e comer alguma coisa.

Descia as escadas de dois andares, correndo. Desfilava o corpo magro por três, quatro, cinco quarteirões. Contava as moedas e, quando dava, entrava no boteco e pedia uma média de café com leite e um pão com manteiga. Média é a medida de uma xícara de chá. Se não dava, comprava duas, três bananas. E não tirava a marmita do Chico da cabeça. Aquilo é que era almoço. Voltava e mentia:

– Chico, peguei um PF de tirar o fôlego: arroz, bife, ovo e farofa…

Comer, mesmo, só à noite, quando chegava em casa. A mãe deixava no forno um prato com arroz e feijão. De vez em quando, um chuchu refogado com carne picadinha.

Devia ter falado ao Chico de sua família. Dos nove irmãos. Do pai e da mãe. Da viagem em carroceria de caminhão, depois de ônibus e trem, do Vale do Jequitinhonha a BH. Da casa sem água encanada e esgoto alugada na última fronteira da periferia. Não, tinha que parecer ao amigo que morava bem, que comia do bom e do melhor, mesmo com as roupas e os sapatos dizendo o contrário.

O pior foi não ter confessado o olho guloso que botava na marmita depois daquela notícia que recebeu, numa manhã em que chegou ao trabalho e não viu o amigo. “O Chico está internado no sanatório. Tuberculose. Só sai em seis meses”, disse alguém. Encheu-se de coragem para visitá-lo um mês depois. Achou o Chico amarelo. Conversaram as coisas de sempre: futebol, garotas. E não deixou de fazer uma observação, talvez impertinente naquele momento:

– Chico, você não comia as verduras. Acho que você adoeceu por isso.

Do principal não falou. Não teve coragem de contar ao Chico que comia a marmita com os olhos. Aquele bife suculento, o molho, antes de sair rua afora para fingir que estava almoçando. Acreditava que tirou do amigo o que de mais nutritivo havia na marmita. Será que por isso ele ficou tuberculoso? Mas não foi essa a doença que o matou antes dos 40 anos. É que o Chico deu-se a beber. Exagerou. Mas e a tuberculose? Devia ter contado do olho na marmita. Devia.

Eduardo Almeida Reis - Dízima periódica‏

São centenas, milhares de baladas todas as noites. Só vendo para acreditar que aquilo existe e lá está para ser visto pelos que não acreditam


Eduardo Almeida Reis

Estado de Minas: 16/11/2013


Cheguei a uma idade, digamos, provecta, sem saber que bufa é ventosidade anal silenciosa, geralmente fétida. Ora, bolas, se pode eventualmente não ser fétida, que mal existe numa ventosidade silenciosa? Quando estrepitosa e fétida, a ventosidade cria situações curiosas, como numa noite em que voltávamos debaixo de muita chuva, da então distante Barra da Tijuca, no Skoda de um primo. Três primos e três belas moças. O Skoda cinzento, fabricação tcheca, comportava quatro pessoas; éramos seis rapazes e moças de estatura acima da normal. Havia uma curva, na subida para o Joá, exigindo primeira marcha que no Skoda engatava com dificuldade. Talvez não fosse sincronizada. Naquele tempo, tive um fusca alemão e a primeira não era sincronizada.

Temporal indescritível, vidros fechados, calor, sem ar-refrigerado, seis jovens apertados no Skoda e o primo às voltas com o engate da primeira, quando atroou os ares habitáculo a ventosidade mais estrepitosa de que há notícia na história da medicina mundial. Ainda por cima, demorada. Junto com ela inenarrável fetidez.

Educadíssimos que sempre fomos, abrimos os vidros do carro, deixando entrar a chuva que encharcou o habitáculo e os seis jovens. Levamos as moças para suas casas. Desembarcada a última, começou o inquérito: “Foi você? Foi você?”. Sob palavra de honra, os três garantimos que a explosão fétida não partiu de nenhum de nós.

Naquela emergência gravíssima para os nossos planos matrimoniais, rompemos com as respectivas namoradas. Se um de nós resolvesse levar adiante o namoro, correria risco percentual muito alto, de 33,3333333333333333%. Acho que o nome é dízima periódica.


O que é?
Maior cidade brasileira e capital do estado mais rico do país, São Paulo pode ser a síntese do que vai pelos nossos 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Daí a preocupação que me permito dividir com o caro, preclaro e pacientíssimo leitor de Tiro&Queda.

Uma de minhas filhas, quando muito pequena, sempre que procurava explicação para alguma coisa perguntava “quisso é?”. O Google tem 34 mil entradas para quisso, uma delas no Dicionário In-Formal: “Aglutinação da expressão ‘o que?’ e da palavra ‘isso’. Logo, quando falamos ‘quisso’ é como se perguntássemos ‘o que é isso?’.

– Maria, você já ouviu falar em diplópodes?

– Quisso?

– É uma classe de animais, Maria!”.

Para o espanhol quiso o Google tem mais que 33 milhões de entradas. O buscador, impende notar, inteirou 15 aninhos há poucos meses. Dá para imaginar o Google de 2028, se o mundo ainda existir. Aí é que está: os telejornais noturnos me dão a impressão de que o planeta estertora, verbo estertorar, emitir (moribundo) respiração ruidosa, agonizar, bruxulear, extinguir-se.

Vejamos: telejornal supostamente sério. Repórter paulista faz matéria de cinco minutos na casa dos artistas que cantariam na última noite do Rock in Rio. Entrevista um cavalheiro tatoo color, como se alguém, com mais de três neurônios, pudesse ter interesse pelo que pensa e diz um cidadão inteiramente tatuado em cores.

Pouco antes, reportagem da série “Noites insanas” em São Paulo. São centenas, milhares de baladas todas as noites. Só vendo para acreditar que aquilo existe e lá está para ser visto pelos que não acreditam. Que será daqueles milhares de jovens – dezenas, centenas de milhares... – que estão nas baladas?

Enquanto isso, o PCC, Primeiro Comando da Capital, executa os bandidos que mataram o menino boliviano de cinco aninhos. Quer dizer: nem o crime organizado suporta o nível de violência e a barbaridade de certos crimes cometidos na capital paulista. É o PCC mostrando aos legisladores e à Justiça que tudo na vida tem limites. Vale notar que os índices de violência paulistana são menores que os de outras capitais.

Não bastasse isso, há o Islã. Marco Pórcio Catão terminava todas as suas intervenções no Senado romano com a frase: Ceterum censeo Carthaginem esse delendam (Aliás, sou de opinião que Cartago deve ser destruída). Minha preocupação com o Islã é maior e mais justificada que a de Catão, o Velho.


O mundo é uma bola
No dia 16 de novembro de 1908, como acabo de ler na Wikipédia, o médium Zélio Fernandino de Moraes incorpora o Caboclo das Sete Encruzilhadas, dando início ao culto de umbanda, religião nascida no Rio de Janeiro, que originalmente congeminava elementos espíritas e bantos, estes já plasmados sobre elementos jeje-iorubas, e hoje se apresenta segmentada em variados cultos caracterizados por influências muito diversas: indigenistas, catolicistas, esotéricas, cabalísticas etc.

Em 1945, fundação da Unesco. Deve ter sido a quarta ou quinta fundação da Unesco que transcrevo nos últimos dias, sinal de que a Unesco foi mesmo fundada. Em 1980, Louis Althusser, filósofo francês, estrangula sua mulher. Houve quem achasse que Louis teve um surto psicótico, mas há que tomar todo o cuidado com os filósofos, sobretudo com aquele bagulho que se apresenta como filósofa petista. Bons, mesmo, são os philosophos que não estrangulam suas companheiras e nunca acreditaram no PT.


Ruminanças
“A cisterna contém, a fonte transborda” (Blake, 1757-1827).

A saudade e a dor torácica - José Carlos Lassi Caldeira

Estado de Minas: 16/11/2013 



Seria a saudade um diagnóstico diferencial da dor torácica isquêmica crônica? Tirando o aspecto anedótico, o que se sabe, desde o ponto de vista das evidências clínicas, é que as crises psicoafetivas como ansiedade, raiva, medo precipitam ou agravam os episódios de dores recorrentes que são consequentes ao fluxo sanguíneo insuficiente para a oxigenação/nutrição da musculatura cardíaca (miocárdio), como ocorre nas anginas estáveis (AE) , nas instáveis (AI) e no infarto agudo do miocárdio (IAM).

Além do estresse e de outras condições emocionais cujas dores podem se lhe assemelhar, há uma série de diagnósticos diferenciais que devem ser considerados na dor torácica isquêmica ou dor da angina. Essa dor, causada pela insuficciência coronariana, tem características particulares: trata-se de dor constritiva do tipo aperto ou opressão, geralmente sobre a área cardíaca (precordialgia), com irradiação para ombro e braço esquerdos (menos comum para braço direito, queixo e mandíbula e região epigástrica – sobre o estômago), estando associada a exercícios físicos, frio ou estresse e que melhora com o repouso ou com o uso de nitratos em 10 minutos, na angina estável.

Na angina instável e no IAM, a dor tem características semelhantes, mas é mais intensa, menos tolerante aos esforços e geralmente não cede após 30 minutos de repouso, melhorando apenas parcialmente com o uso de nitratos. Dores caracterizadas como pontadas, fincadas, punhaladas no peito geralmente não são consequentes à insuficiência coronariana (mas devem ser bem observadas) e, por outro lado, existem anginas instáveis (AI) e IAM sem dores, em especial no paciente idoso, nos diabéticos, em mulheres. E esses quadros podem se manifestar apenas como náuseas, mal estar, sudorese e dispneia.

Nas mulheres, por apresentarem diferentes perfil endocrinológico e constituição da rede arterial, os sintomas são distintos, não sendo a precordialgia e sua irradiação para o braço os sinais mais frequentes (o estrógeno tem ação protetiva contra a dor, aumentando o limiar de sensibilidade dolorosa dos nervos, assim como protegem as artérias). Também são diferentes os fatores de risco cardiovascular para elas – a hipertensão arterial é mais danosa que nos homens e a associação entre depressão, menopausa e isquemia é frequente, segundo a Sociedade de Cardiologia de São Paulo. Por tais motivos, muitas vezes as mulheres negligenciam sinais ou os desconhecem, sendo essa uma das causas do grande aumento do número de mulheres enfartadas no Brasil atualmente (10 vezes mais que há 50 anos).

Muitos outros quadros aparecem como diagnóstico diferencial, entre os quais as dores de origem gastrointestinais, como os espasmos de esôfago, as gastrites e a doença do refluxo gastroesofágico, sendo que nesses casos a dor apresenta-se como queimação ou azia, piorando com a compressão da região epigástrica e melhorando com uso de antiácidos; as dores de origem pulmonar, como as pleurites/pneumonias; as traqueobronquites e o pneumotórax espontâneo apresentam dor ventilatório-dependente (piora com a respiração) e são acompanhadas de tosse, desconforto respiratório ou dispneia severa e febre, sendo que o RX de tórax muitas vezes confirma o diagnóstico. As dores de origem musculoesqueléticas, como as costocondrites e as doenças dos discos cervicais, cursam com dores fortes, súbitas e fugases, localizadas e que podem ser reproduzidas com a pressão manual sobre a área afetada ou a movimentação da área. As dores por doenças da vesícula (inflamaçoes e pedras) se localizam no quadrante superior direito do abdome, são provocadas após as refeições e apresentam características próprias, como o sinal de Murphy positivo.

Muitas outras causas de dor torácica devem ser pesquisadas, como as pancreatites (uso abusivo de alcool), o herpes zoster, a embolia pulmonar, principalmente nos acamados e nas mulheres usuárias de pílulas anticoncepcionais, e a síndrome do pânico, atualmente muito comum nas consultas de urgência. Nos adolescentes e adultos jovens, checar o uso de drogas sobretudo cocaina e crack.

A boa anamnese e o exame físico acurado, na maioria dos casos, definem o diagnóstico. E a terapêutica dependerá, naturalmente, da condição mórbida que causa a dor: nas das dores anginosas que surgem após esforços físicos e que melhoram com o repouso, esses casos devem ser cuidadosamente examinados e, se necessário, encaminhados ao pronto-atendimento. A abordagem terapêutica em tempo hábil permite ao paciente uma longa e saudável vida. Para o caso das dores de origem psicoafetivas, emocionais, a psicoterapia e as canções são um santo remédio. “A saudade mata a gente, morena, a saudade é dor pungente”(João de Barro, A saudade mata a gente).

A questão da eutanásia‏

A questão da eutanásia 
 
Deixar a decisão para o médico é, sem dúvida, uma má escolha. Ele decidirá com base nos valores individuais dele 
 
Luciana Dadalto
Advogada, coordenadora do Departamento de Direito Médico, Odontológico e Hospitalar da Ivan Mercêdo Moreira Sociedade de Advogados, doutoranda em ciências da saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG


Estado de Minas: 16/11/2013


A divulgação recente de casos de eutanásia na Bélgica e na Holanda, países que legalizaram a eutanásia há muitos anos, reavivou os debates sobre a necessidade da legalização dessa prática no Brasil.

De um lado, os defensores sustentam argumentos jurídicos acerca da autonomia individual e da dignidade humana, afirmando que o indivíduo deve ter o direito de morrer quando estiver passando por sofrimento físico ou mental e que os profissionais de saúde devem ajudá-lo.

De outro, os contrários a essa prática se baseiam em diferentes razões: religiosos afirmam que a vida é um presente divino e que não cabe ao indivíduo tirá-la. Juristas afirmam que a vida é um direito indisponível e que, portanto, o indivíduo não pode abrir mão dela. Médicos que trabalham com cuidados paliativos afirmam que a efetividade dos cuidados com os pacientes fora de possibilidades terapêuticas permite que o paciente tenha um fim de vida digno, sem que seja necessário abreviá-la.

Defender a eutanásia é, em que pese os aspectos éticos e morais, o caminho mais simples, pois vivemos a primazia do individual sobre o coletivo, num mundo que protege com virulência as liberdades individuais. Dessa forma, a defesa da eutanásia centra-se na ideia de que o indivíduo deve ser livre para fazer escolhas ilimitadas, inclusive sobre a morte, e cabe ao Estado, aos profissionais de saúde, aos familiares e amigos respeitá-las.

Ser contra a eutanásia é um caminho espinhoso. O argumento religioso pode soar piegas, irracional e moralizante para aqueles que não têm crença religiosa e para os que defendem que o Estado é laico. O argumento jurídico pode dar a ideia de que o direito, muitas vezes, impõe barreiras socialmente ultrapassadas e que o Estado não pode limitar a autonomia do indivíduo. O argumento médico pode soar ilusório, pois a verdade é que os cuidados paliativos (ramo da medicina que visa proporcionar ao doente conforto para que a morte chegue no tempo certo, sem sofrimento) ainda estão engatinhando no Brasil, com raras exceções.

Mas, talvez, o cerne da discussão não seja nenhum desses argumentos. O que parece é que discutir qualquer assunto que tenha a ver com morte é, para a sociedade brasileira, um tema secundário, que precisa ser varrido para debaixo do tapete e ali ficar até a morte repentina ou diagnóstico de uma doença fora de possibilidades terapêuticas (terrivelmente conhecida como doença terminal).

Quer dizer que antes de defender a eutanásia no Brasil precisamos defender a necessidade de conversar sobre a morte. Todos vamos morrer, portanto, podemos e devemos decidir sobre como queremos morrer caso tenhamos uma doença fora de possibilidades terapêuticas, recusando, se quisermos, tratamentos que apenas prolongam a vida sem garantir a qualidade dela. Para isso existe o Testamento Vital, regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina em 2012.

Contudo, apenas um documento não resolve. Precisamos conversar com nossos familiares e, principalmente, com nossos médicos, pois são eles que têm a cruel missão de nos orientar quando questionamos: “Doutor, o que o senhor faria?”. Ou, ainda, de decidir entre seguir a vontade dos familiares ou a vontade do paciente, manifestada durante um sussurro no leito.

Deixar a decisão para o médico é, sem dúvida, uma má escolha. Pois esse profissional decidirá com base nos valores individuais dele, decidirão sendo pressionado pela família e assombrado pela ameaça de um processo judicial. Assim, a escolha deve ser de cada um de nós e, quem sabe, o dia em que tivermos essa consciência, não precisemos defender a eutanásia no Brasil.