sábado, 10 de agosto de 2013

Walter Ceneviva

folha de são paulo

O Judiciário e o turbilhão

DE SÃO PAULO
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Nós, o povo, se dermos mais atenção ao Poder Judiciário, verificaremos que a agitação encontrada nos dois outros Poderes Constitucionais não é estranha à magistratura, ainda que em modo muito mais discreto. O que é bom. Podemos até pensar em aspecto que agita o debate em São Paulo. Antes se deve lembrar que, na Justiça bandeirante, se criou confronto de correntes para a escolha do presidente de sua Corte de Justiça. Por assim dizer, são políticas.
Aconteceu quando o atual presidente do TJSP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) admitiu a possibilidade de ser candidato à reeleição. Alheio aos meandros judiciais, o leitor achará a coisa mais natural do mundo. Não é.
O desembargador Sartori, o atual presidente, tem boa gestão. Olhando as coisas do ponto de vista da disputa, a recondução ao cargo daquele que cumpre sua missão no Executivo e no Legislativo (Constituição, arts. 44 e 46) é natural. Até porque, segundo a Folha noticiou, Sartori tem apoio de expressiva parcela do funcionalismo, circunstância inusitada. Além disso, conta com longa folha de serviços prestados à Justiça.
Há, porém, um pormenor com o qual o grande público não deve ter muita intimidade. É o seguinte: o TJSP é o maior do Brasil, com mais de trezentos desembargadores. É certo ainda que a Tribunal do Estado possa ter um Órgão Especial submetido, no caso de São Paulo --entre outros--, ao máximo de 25 desembargadores que o comandam.
Se a reeleição do presidente não for proibida aqui, como quer uma parte dos desembargadores, a minoria se dirá afastada do pleito. Assim: os atuais desembargadores --ainda que excluídos os próximos dos setenta anos-- de aposentação obrigatória dificilmente terão esperanças de disputar a presidência se aberta a todos, no futuro, a reeleição presidencial. Permitida, dobrará o número de possíveis candidatos frustrados, multiplicados durante decênios. Só Deus sabe quantas vezes.
Mesmo em tribunais menos numerosos, a porta de acesso estará fechada para muitos. Enfim: é, razoável que segmentos oposicionistas estejam perguntando: "e nós, como ficaremos?".
A pergunta é compreensível, mas tem seu "porém". Um dos problemas da magistratura está em que o encastelamento no controle dos tribunais (ou seja, os que só se aposentam no último dia) faz com que, mesmo hoje, as substituições nos cargos mais importantes das cortes de Justiça fiquem confiadas a um número restrito de titulares. Dentre estes, alguns alcançam tal domínio da situação que se transformam, desculpada a linguagem não jurídica, numa espécie de "donos de seu tribunal", controlando o mecanismo operacional. Em certas hipóteses influem até na formação da jurisprudência.
Por menos que o leitor saiba da ordem interna dos tribunais, certamente não tem dúvida sobre a variada pluralidade de efeitos em assunto aparentemente tão corriqueiro, em especial no turbilhão, que não para, dos processos em andamento.
Outro lado da mesma situação estaria no meio termo, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Ocorre que, nesse campo, os interesses a respeito do acesso à presidência de cada tribunal são muito intensos e diferentes de Estado para Estado, na variável força política local. O meio termo é necessário.
Walter Ceneviva
Walter Ceneviva é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. Assina a coluna Letras Jurídicas, publicada em "Cotidiano" há quase 30 anos. Trata, com cuidado técnico, mas em linguagem acessível, de assuntos de interesse para a área do direito. Escreve aos sábados na versão impressa de "Cotidiano".

Laertevisão e Quadrinhos

folha de são paulo
CHICLETE COM BANANA      ANGELI
ANGELI
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
LAERTE
DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
QUASE NADA      FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
HAGAR      DIK BROWNE
DIK BROWNE

Tensão social gera série de ataques entre os chineses - Marcelo Ninio

folha de são paulo
Tensão social gera série de ataques entre os chineses
Para ativistas, atos de violência são resposta a rígido controle do governo
Censura estatal não consegue mais abafar completamente os casos, divulgados pelas redes sociais no país
MARCELO NINIODE PEQUIMUm vendedor de melancias é brutalmente morto por guardas municipais. Inconformado com a política de filho único, um pai de quatro filhos mata dois funcionários públicos a facadas.
No ultravigiado aeroporto de Pequim, um deficiente detona uma bomba caseira em protesto contra a agressão policial, que ele alega tê-lo deixado paralítico.
Após comprar uma faca num supermercado da capital, um homem ataca várias pessoas a esmo, incluindo uma criança de dois anos.
Uma série de atos sangrentos ocorridos na China nas últimas semanas evidencia a crescente tensão social no país, que já não pode ser mais totalmente abafada pela censura graças às redes sociais.
Essa é a opinião de proeminentes ativistas de direitos humanos consultados pela Folha, que descrevem um panorama pouco animador da nova liderança chinesa nos primeiros cinco meses no poder.
Eles preveem que as ações extremas se multiplicarão, alimentadas pela sensação de impotência diante do autoritarismo do governo e da inexistência do Estado de Direito na China, onde não há separação entre poderes.
"A tensão social definitivamente está crescendo. Há uma relação direta entre os recentes atos de violência e os métodos de controle do governo", diz o dissidente Hu Jia. "Quando as pessoas não têm meios de obter justiça, resta o desespero".
Mesmo após ficar três anos e meio preso, acusado de subversão, Hu não mede palavras contra o governo. Para ele, a política de manter a estabilidade a qualquer custo tem transformado a sociedade chinesa num "barril de pólvora".
O incidente mais falado das últimas semanas foi o de Deng Zhengjia, 56, um fazendeiro da província de Hunan (sul) que teve um fim brutal quando tentava vender melancias.
Segundo testemunhas, ele morreu ao ser golpeado na cabeça com um peso de sua balança por fiscais parapoliciais, os odiados "chengguan", durante discussão sobre a licença de trabalho do agricultor.
As imagens do corpo de Deng estirado no chão se espalharam pela internet, antes que a censura oficial pudesse apagá-las.
A frustração com o sistema legal está na origem da frustração, diz Sophie Richardson, diretora para a China da Human Rights Watch."Há tão pouca confiança na capacidade do Estado de fazer justiça que é difícil supor que não haverá protestos."
Dois ataques a facadas em centros comerciais de Pequim em poucos dias deixaram três mortos. A polícia reagiu proibindo a venda de facas em supermercados, e o governo atribuiu os ataques a "desequilibrados mentais".
Mas até a mídia estatal manifestou preocupação com a violência. "É importante que haja punições de acordo com a lei", disse a estatal Xinhua. "Mas o mais importante é que o governo crie um ambiente social harmonioso, com cuidado, tolerância e justiça."
Segundo estudo da ONG americana Freedom House, o controle da internet aumentou desde a posse do novo presidente chinês, Xi Jinping.
"A censura continua rigorosa, mas mesmo que a informação sobreviva por pouco tempo no ar, é o suficiente para que as pessoas fiquem sabendo", diz Hu Jia.
"Xi [Jinping, presidente chinês] enfatiza o sonho chinês e o naciona-lismo, mas promove o legado de Mao [Tse-tung], em que os direitos humanos são praticamente ignorados"
Pu Zhiqiang, advogado do artista Ai Weiwei
    ANÁLISE
    Casos de violência com camelôs na China evidenciam impacto da desaceleração
    DO "FINANCIAL TIMES"A cada ano, o verão da China leva às ruas multidões de vendedores ambulantes não licenciados. Eles muitas vezes são tratados asperamente pelas autoridades, mas este ano vem sendo especialmente sangrento, como mostra o caso de Deng Zhengjia, vendedor de melancias morto por um grupo de "chengguan".
    Para especialistas, o desemprego, especialmente no setor industrial de exportação de produtos de baixo preço, gera alta no número de camelôs, causando confrontos nas ruas.
    Além da menor disponibilidade de emprego no setor, também existe um descompasso entre os empregos disponíveis e a capacitação e ambições dos trabalhadores.
    "Para muitos camelôs, o problema não é que não consigam encontrar emprego, mas sim que não estão dispostos a trabalhar por longas horas nos empregos de alto risco do setor industrial" diz Ye Tan, colunista que costuma escrever sobre os chengguan.
    Porque as vendas ambulantes são a principal fonte de renda de muitos desses migrantes, o potencial de confronto violento é maior quando os chengguan conduzem batidas regulares contra os camelôs não licenciados.

      Minha história - Israel Guarnizo

      folha de são paulo

      Colega de Nicolás Maduro em curso ideológico relembra passado em Cuba

      DEPOIMENTO A...
      FLÁVIA MARREIRO
      DE SÃO PAULO
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      O colombiano Israel Silva Guarnizo, 48, recorda seus meses ao lado de Nicolás Maduro, então com 24 anos, num curso de formação ideológica oferecido por Cuba nos anos 80 a jovens da América Latina --passagem considerada decisiva na vida do sindicalista "fidelista" que viraria herdeiro de Hugo Chávez. Silva rememora as convicções do presidente venezuelano enquanto sonha em rever o amigo de Havana.
      *
      Nicolás Maduro e eu estivemos em Havana entre 1986 e 1987, foram quase dez meses de aulas na Escola Nacional de Quadros Julio Antonio Mella. Todos éramos jovens que pertencíamos a organizações de esquerda da América Latina. Um dos critérios era ter gente com potencial de liderança.
      Fui selecionado na minha organização, como Maduro também [o venezuelano era da Liga Socialista]. Aos 21, pertencia à Juventude Comunista Colombiana.
      Era uma escola de formação ideológica. Não tinha nada a ver com formação [para guerrilha]. O que se estudava lá era história da Revolução Cubana, história da América Latina, economia política, filosofia idealista e materialista. Era um lugar onde as pessoas poderiam desenvolver outro modelo de cooperação, de convivência --à diferença do que oferece o capital.
      Os professores eram de alto nível e havia várias escolas: uma para jovens, uma para líderes sindicais, formação política de líderes agrários.
      Era tudo pago pelo Estado cubano. Dormíamos num alojamento em Havana do Leste. Não víamos altos dirigentes, mas o nosso contato com a cultura política do país era permanente.

      Maduro em Havana

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      Arquivo pessoal
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      Israel Silva (segundo à esquerda) e Nicolás Maduro (primeiro à direita) durante visita a fábrica de cigarros em Cuba em 1986, quando faziam juntos curso de formação ideológica na ilha. Segundo Israel, o homem ao lado de Maduro é brasileiro e se chama Josivaldo Albuquerque
      JEITO CARIBENHO
      Convivíamos no tempo livre. Fomos a Varadero [praia famosas de Cuba].O nosso grupo era variado, venezuelanos, colombianos, mexicanos. Tinha um brasileiro também, que se chamava Josivaldo "Bahia" Albuquerque, mas não mantivemos contato. Se eu não me engano, ele era da juventude do PT ou do Movimento Revolucionário 8 de Outubro [MR8].
      Maduro era uma pessoa muito amena, muito cordial, bastante alegre. Tipo caribenho mesmo, que gosta de fazer gozação, muito diferente de nós colombianos que não somos do litoral. Seu nível de análise já era importante. Tinha um nível de formação ideológica. Dos venezuelanos que estavam lá, era o mais convencido, digamos, com mais argumentos da causa.
      Hoje sou diretor da Associação de Cooperativas e Empresas Solidárias de Huila [departamento (Estado) da Colômbia]. A formação em Havana serviu para seguir nos movimentos sociais.
      O propósito em Havana era o fortalecimento das ideias, e aí cada um regressava a seu país de interesse. Mas, de fato, do grupo que estivemos na época, não sei se todos estamos em atividade políticas.
      Nunca poderia imaginar que Nicolás Maduro chegaria à Presidência da Venezuela nem que vários governos da região se ergueriam a favor da população marginalizada. O desafio grande que Maduro tem agora é continuar esse caminho [de Hugo Chávez], superar as dificuldades. Acho que já há uma geração que é capaz de fazer mudanças em matéria de educação, em matéria de geração empregos na Venezuela e isso é uma fortaleza.
      Queria muito encontrá-lo e para isso estou em contato com a Embaixada da Venezuela na Colômbia. Guardei fotos nossas da época e numa delas Maduro escreveu uma dedicatória, de próprio punho, em 23 de outubro de 1986: "Uma foto para a lembrar de um espaço da vida em que os caminhos se cruzaram, no primeiro território onde a liberdade cagou na cara do imperialismo".

      Joâo Paulo - O corpo e o espírito de corpo‏


      Estado de Minas: 10/08/2013 

      O resultado anunciado esta semana do Programa Mais Médicos, do Ministério da Saúde, confirmou a participação de menos de 1 mil profissionais no programa. Foram 938 selecionados para preencher a necessidade identificada de pelo menos 15.460 médicos, que serão encaminhados para 404 cidades – a previsão era atender 626 municípios. As vagas estão localizadas nas periferias de metrópoles e em regiões com poucos profissionais e em situação de extrema pobreza.

      O baixo número de médicos brasileiros interessados e aptos para participar do programa, apenas 6% do necessário, abre agora segunda fase da seleção, que vai receber inscrições de profissionais de outros países interessados em trabalhar no projeto por três anos, com bolsa de R$ 10 mil. Os médicos estrangeiros não precisarão validar os diplomas e serão encaminhados às mesmas áreas recusadas pelos colegas brasileiros.

      O programa vem gerando polêmica desde seu anúncio e já passou por várias discussões até assumir o formato atual. Antes, o governo chegou a anunciar o aumento do tempo de formação do médico em dois anos, que seriam dedicados ao exercício em unidades do Sistema Único de Saúde. O programa atual ganha tempo, já que os profissionais começam a trabalhar em setembro, e abre perspectivas para residência em saúde básica de forma massiva, o que deve impactar todo o processo de formação do médico, hoje excessivamente especializado.

      Entre as críticas apresentadas pelas entidades médicas estão a abertura aos profissionais estrangeiros sem comprovação da qualidade da formação deles e a contratação de médicos em locais sem condições ideais de trabalho. O Mais Médicos, no entanto, foi direcionado em sua primeira fase apenas a profissionais nascidos no país e o baixo índice de preenchimento das vagas mostra que não existe interesse dos brasileiros em ocupar os postos oferecidos. Com relação aos médicos estrangeiros (não apenas e nem majoritariamente cubanos, como se propagou a princípio), passarão por treinamento e supervisão a cargo de universidades brasileiras.

      No que diz respeito às condições de trabalho, não se trata de um problema a mais, mas do problema em si. É exatamente porque é impossível garantir todas as condições tecnológicas a todas as unidades de serviço que é preciso hierarquizar a atenção à saúde. Não se trata de oferecer saúde pobre para pobre, mas de prover a maioria das demandas de saúde – segundo a Organização Mundial de Saúde, 80% dos cuidados são resolvidos no âmbito da atenção básica – para a maior parte da população. Os profissionais, além do atendimento a problemas reais que afligem a população, seriam agentes de informação e encaminhamento para os outros níveis de complexidade, hoje entregue à ambulancioterapia eleitoreira.

      Os 14.522 postos em aberto nessa primeira fase chamam a atenção para as resistências das entidades classistas e profissionais. Afinal, que propostas elas oferecem ao país para saldar essa dívida, que, é bom que se diga, ainda é bem abaixo das necessidades reais do país? A defesa dos interesses da corporação, um princípio legítimo numa sociedade democrática e plural, precisa ser articulado com outros valores, tendo como horizonte os interesses de toda a sociedade.

      Mesmo com falhas, o Mais Médicos é a primeira ação direta a enfrentar a falta de médicos nos rincões rurais e urbanos, sem apelar para propostas de médio e longo prazo (como a reforma curricular dos cursos médicos, quase sempre recebida como ingerência à liberdade universitária) ou para mecanismos de mercado. Esses, de forma perversa, criaram a ciranda de salários entre prefeituras pobres em sua tentativa de organizar seus sistemas de saúde em moldes quase sempre centrados na atenção individual e na atuação de um único profissional, o médico.

      Ato e fato


      O trabalho indispensável dos profissionais médicos gerou, ao longo do tempo, um campo muitas vezes impermeável às políticas de saúde pública, criando até mesmo disputas em torno de procedimentos exclusivos da categoria, sem respaldo técnico ou científico. A recente discussão do ato médico evidenciou a separação entre a defesa corporativa e as necessidades do cidadão atendido pelo serviço de saúde. Se aprovado, sem vetos, o projeto reduziria o espaço de atuação de vários profissionais, sem a contrapartida de oferta dos serviços. É preciso sempre destacar que quando se fala em médicos se cria uma generalização, que expressa a opinião das entidades representativas, mas que não pode ser imputada ao grande contingente de profissionais dedicados à saúde pública.

      Ainda há muito a ser feito na área de saúde. É evidente que o Programa Mais Médicos não é panaceia. É preciso regulamentar o índice de investimento da União no setor (a proposta histórica é de 10%, frente a 12% dos estados e 15% dos municípios) e garantir que recursos sejam bem utilizados. É necessário ainda aumentar o número de vagas nos cursos de medicina, ainda muito abaixo do padrão internacional, criando caminhos de especialização no âmbito da saúde pública e da atenção primária. A recente discussão da PEC sobre a atuação dos médicos militares no SUS é um bom exemplo de atualização de procedimentos legais em favor da realidade social. Sem falar nos vários projetos setoriais, carentes de atenção em termos financeiros e políticos, que correm o risco perene da reversão (como se acompanha no âmbito da saúde mental, cada vez mais permeável ao ataque da psiquiatria biológica e da indústria de medicamentos).

      A engenharia do Sistema Único de Saúde, na soma de princípios fundamentais (universalidade, equidade e integralidade) e organizativos, entre os quais se encontram as propostas do Mais Médicos, estabeleceu-se no Brasil a partir de uma situação muito complexa do ponto de vista social. Temos um sistema que expressa a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, que convive com práticas de mercado, que deveriam ter função complementar e acabam por assumir vertente competitiva, inclusive de recursos.

      Não somos nem Canadá nem EUA – dois exemplos radicais de opção pelo direito e pelo mercado no campo da saúde –, mas precisamos ficar com o melhor dos dois mundos, tanto em provisão de serviços quanto em eficiência. Corremos o risco, entretanto, de usar um diagnóstico de ordem social, que aponta a falta de médicos em determinadas realidades, e mesmo assim buscar tratamento para outro sintoma, optando por um modelo liberal de atenção, baseado no individualismo e na intensividade tecnológica.

      O Brasil deve muito a seus médicos. E é exatamente em nome dessa dívida que a situação precisa ser mudada. A melhor distribuição de profissionais, a equidade na provisão de serviços, a universalização real do atendimento, a hierarquização da atenção, a integralidade da concepção de saúde, tudo isso caminha para um cenário em que a população deverá ser mais bem atendida em seu corpo físico e mental. Deixando que as questões corporativas fiquem, como devem ficar, para o âmbito do mercado e da economia profissional.

      A importância de pensar - Clara Arreguy‏


      Estado de Minas: 10/08/2013 

      Hannah Arendt (1906 – 1975) foi uma filósofa judia alemã que conseguiu escapar do nazismo e se refugiar nos Estados Unidos, onde viveu como professora e autora de diversos livros e teses. Sua importância para o pensamento político contemporâneo é imensa, pois veio dela a principal reflexão sobre o totalitarismo, tanto na face direita (nazista) quanto na esquerda (stalinista). Foi ela quem criou o termo banalização do mal, a partir da cobertura que fez para uma revista norte-americana, editada também em livro, do julgamento do nazista Adolf Eichmann em Israel.

      Uma fração dessa história está muito bem contada no filme Hannah Arendt, da alemã Margarethe von Trotta, que tem Barbara Sukowa no papel da ativista judia em um momento-chave de sua vida, justamente o episódio da cobertura do julgamento, em 1963. Ali, ao assistir ao que ela considera equívocos – julgar o Holocausto como um todo durante o julgamento de uma pessoa, um homem que deveria estar num tribunal internacional, e não sequestrado arbitrariamente por um país –, a filósofa tece análise que vai jogar toda a opinião pública contra ela.

      O filme é importante e inteligente, mas nessa sequência, em especial, revela sua importância para o momento político que estamos vivendo, em que a “opinião pública” se torna um ator impessoal, injusto e cruel. Nos textos que publica sobre Eichmann, Hannah afirma que ele, sob a justificativa adotada pelos criminosos nazistas de que apenas cumpriam ordens, banaliza o mal e renuncia à própria condição de ser humano, pois a natureza do ser humano é pensar, decidir, responsabilizar-se por seus atos. Quando age sem consciência, sem assumir o que faz, deixa de ser um homem. Ele desqualifica o mal que faz.

      A personagem, em flashback, reencontra o antigo mestre acadêmico, o filósofo Martin Heidegger, de quem foi mais que a aluna mais brilhante: eram amantes e ela teve nele o grande amor. Hannah se lembra de Heidegger ensinando a importância do pensamento, ensinando a pensar. Recorda também a dor maior sofrida quando, não bastasse a perseguição nazista, a perda do país e da nacionalidade, viu Heidegger sucumbir ao poder do Reich para se manter reitor da famosa Universidade de Heidelberg, bajulando Hitler e se corrompendo intelectualmente.

      Reencontros posteriores à guerra não apagaram o desapontamento da ex-aluna com o velho mestre. O grande amor não resistiria à covardia moral, quando tantos (milhões!) morriam, fugiam ou resistiam, na Alemanha e por toda a Europa. Hannah nunca perde o espírito de luta, a coerência, mesmo ao correr riscos. Ela se mantém firme em seus pontos de vista mesmo quando a imprensa, a comunidade acadêmica e a comunidade judaica se juntam contra ela, acusando-a de absolver Eichmann e de responsabilizar lideranças judaicas por omissão durante o extermínio de seu povo (a crítica à postura das lideranças durante a guerra ela, de fato, assume).

      O bombardeio sofrido por Hannah naquele momento a fez perder importantes amigos, companheiros de vida e de luta que não a compreenderam. Isso provoca dor, mas ela não recua. Muitos paravam no prejulgamento, no preconceito, condenando-a sem sequer ler seus argumentos, com base apenas em “resenhas” de má-fé. Outros, mesmo lendo, discordavam de sua franqueza temerária, consideravam-na traidora. Na universidade onde lecionava, confrontou a direção, que a queria expulsar, e teve apenas o apoio dos alunos.

      Numa das cenas mais brilhantes do filme, na aula em que se defende dos ataques, personagem e atriz dão um show, na explicação clarividente de sua construção política e filosófica. Indagada por uma aluna sobre o porquê de tachar de crimes contra a humanidade os crimes dos nazistas contra os judeus, ela responde candidamente: “Porque judeus são seres humanos, então um crime contra eles é um crime contra a humanidade. E o que os nazistas queriam era retirar do povo judeu sua condição de humanidade”.

      Com ensinamentos sobre a importância de pensar, refletir, elaborar, analisar, criticar, sobre defender os pontos de vista nos quais se acredita, sobre defender a pluralidade e a liberdade de pensamento e expressão, sobre a coerência e a coragem diante de qualquer adversidade, sobre pagar o preço por essa coerência e por essa coragem, Hannah Arendt mantém viva a figura que o inspirou, uma das mulheres mais brilhantes do século 20. Um filme importante, atual, necessário, que nos faz mais inteligentes e joga luz sobre o mundo em que vivemos.


      Clara Arreguy é jornalista

      A música das palavras - Severino Francisco‏


      Estado de Minas: 10/08/2013 

      Fernando Sabino, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos eram amigos inseparáveis e cronistas de jornais concorrentes. Fernando escrevia para O Jornal, Braga publicava no Diário de Notícias e Paulo no Diário Carioca. Na mesa de bar, não raras vezes, surgiam assuntos partilhados pelos três, conta Sabino em célebre texto sobre os “condenados à crônica”. Quando as ideias minguavam, o desesperado de plantão pedia, descaradamente, uma crônica emprestada. Certa vez, Braga recorreu ao expediente infame. Sabino cedeu uma sobre o menino que pedia sopa em uma casa de pasto. Braga requentou a sopa, mudou o preço e pôs o título “A sopa”. Chegou o dia em que Sabino estava no aperto, solicitou o empréstimo da crônica e recebeu de volta a mesma sopa. Reciclou tudo e publicou com este título fulminante: “Esta sopa vai acabar”.

      A historinha é evocada para falar de dois volumes de crônicas de Paulo Mendes Campos, O amor acaba e O mais estranho dos países (Cia. das Letras), porque ela é bastante reveladora do ambiente e do entrelaçamento da trajetória dos grandes cronistas brasileiros formados pelo modernismo. Eles partilhavam inquietações, temas e até textos inteiros (devidamente recriados). Os dois volumes, organizados por Flávio Pinheiro, marcam o lançamento de 15 títulos do autor pela Companhia das Letras, a partir de pesquisa no acervo do Instituto Moreira Salles, que guarda a obra do mineiro.

      As coletâneas estão divididas em sessões temáticas. O mais estranho dos países apresenta a agudeza de Paulo Mendes Campos ao revelar a alma dos lugares em que viveu ou por onde viajou e a mestria na construção de perfis. A vertente sobre o Brasil nos anos de euforia desenvolvimentista e modernista da década de 1960 é perpassada de finas observações críticas: “Deixa isso pra lá é uma simpática fórmula do perdão nacional; já o rouba mas faz é uma ignorância vertiginosa”.

      Vinicius de Moraes, Aníbal Machado, Fernando Sabino, Di Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade e Lamartine Babo ganham vida por meio de retratos atilados, bem-humorados e afetuosos, com olhar de cronista. Vejamos o que Paulo diz de Lamartine Babo: “Ele dispunha em quantidade generosa do que me escasseava: alegria. Eu, desempregado da alegria, tinha que lhe dar essas ‘facadas’ de bom humor”.

      Turbulência dramática As crônicas líricas e existenciais estão reunidas em O amor acaba. Mas Paulo não costumava escrever sobre nada; sempre tinha assunto no bolso e raramente se instalava “ao rés do chão”, como, por exemplo, o amigo Rubem Braga. Em vez de dissimular ou contrabandear a poesia, o autor assume despudoradamente a condição de vate e se lança em altos voos de reflexão. É cronista-poeta, cronista-jornalista, cronista-ensaísta a destilar ceticismo e lirismo em divagações vagamente filosóficas, atento aos movimentos de turbulência dramática da alma de mineiro, às invenções da ciência, às novas tecnologias de comunicação e às tendências do comportamento. Sua frase elegante tem fluência musical e é construída com palavras precisas, capazes de expressar os matizes mais sutis das cenas, da imaginação ou dos estados de alma.

      Tamanho requinte estilístico sugere formação erudita, mas ele não a conquistou nos bancos de escola. O único curso que Paulo concluiu foi o de datilografia. Era o suficiente para quem tinha vasta cultura e proporcional sensibilidade, observa Sérgio Augusto, em excelente texto para o posfácio. Sempre movido por seu ânimo anárquico, Paulo Mendes Campos borboleteou pelos cursos de odontologia, direito, farmácia e veterinária. Começou profissionalmente como mata-mosquitos da Secretaria de Saúde de Minas Gerais, mas garantiu a sobrevivência graças a malabarismos com as palavras, a ponto de imaginar a criação de um escritório de “fazeção de textos”. Espalhou largamente seu talento em crônicas, reportagens, entrevistas, traduções, poesias, roteiros de cinema e anúncios de publicidade. A erudição nunca foi peso para ele, que sempre exercitou o senso de humor: “Ari Barroso não foi tão assíduo quanto Antônio Maria no Ministério da Noite, mas não chegou a ser um funcionário relapso”.

      Apocalipse íntimo É difícil falar de Paulo Mendes Campos sem mencionar Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Hélio Pelegrino, seus amigos mineiros desde os tempos da adolescência em Belo Horizonte. Eles eram os “quatro cavaleiros de um apocalipse íntimo”, na definição de Otto. Percorriam as noites de BH bebendo, conversando (muito sobre literatura) e “puxando angústia”.

      Na condição de mineiros incorrigíveis, introspectivos, angustiados e dramáticos, os quatro trocaram as montanhas pelo mar, Belo Horizonte pelo Rio de Janeiro, atraídos pela força solar, dionisíaca e leviana daquela cidade litorânea. Na crônica “Mulheres bonitas”, Paulo discorre sobre o espírito carioca encarnado na beleza tentadora de suas mulheres: “Às moças montanhesas falta (se me entende, por favor) um vago toque de obscenidade, que é a raiz do magnetismo animal. Era o Rio uma cidade fascinante e perigosa, feita de braços, coxas, seios, cabeleiras, lábios”. E complementa: “Os grandes pecados públicos não são para Minas Gerais, e o Rio pecava às escâncaras, sem pudor, com alegria e confiança. Oh, Minas Gerais!”.

      Mendes Campos se tornou mais leve e quase carioca no Rio de Janeiro, uma cidade absorvente, mas não deixou de “puxar angústia”, de desconfiar e de fazer reflexões existenciais sobre suas perplexidades muito mineiras. Certo dia, passou um fim de semana tão perfeito na casa de amigos à beira-mar que chegou a ficar irritado com a própria felicidade: “Sem minhas atribulações, sou o atribulado, a própria atribulação; sem minhas angústias, sou a angústia; sem minhas infelicidades, sou o infeliz. Descobri isso finalmente. A felicidade, madame, é horrível. Sem sofrer, sofro demais. Assim, tudo, Senhor, menos ser feliz. Minha libertação não é essa, essa eu não aguento. Tudo, menos achar que a vida é boa. Deus me abandonou à felicidade, e me dei mal”.

      Crônica de ideias As duas coletâneas de crônicas chegam em edição esmerada, com textos de Flávio Pinheiro, Sérgio Augusto, Otto Lara Resende e Ivan Marques, que elucidam e lançam nova luz sobre a escrita requintada do escriba-jornalista mineiro. Com os amigos Fernando Sabino e Otto Lara Resende, Paulo brilhou nas melhores revistas e jornais do país. Sérgio Augusto afirma que, dos três craques da crônica, PMC foi o mais injustiçado, em vida e na posteridade. O que explicaria esse claro enigma?

      Sérgio formula a hipótese de que isso ocorreu em razão da timidez e do fato de Paulo Mendes Campos ter sempre evitado “os refletores e o picadeiro literário”.

      No entanto, suspeito que a razão esteja em outro lugar. Rubem Braga era ainda mais avesso à badalação e parecia ostentar na testa um cartaz com os dizeres: “Cuidado, cronista feroz! Ele morde!”. Mesmo assim, alcançou larga fama. Sem ser pedante ou esotérico, Paulo Mendes Campos escreve, não raras vezes, em um registro culto, o que restringe o alcance de sua recepção. É preciso um repertório mínimo para navegar por boa parte de seus textos.

      Em entrevista concedida ao Pasquim, na década de 1970, alguém perguntou a Paulo: “O que é a crônica?” E ele respondeu: “É tudo o que eu escrever embaixo retranca crônica, com a minha assinatura”. Essa é, simultaneamente, sua força e sua vulnerabilidade. Ampliou os limites da crônica para as fronteiras do ensaio. No entanto, com isso fala, algumas vezes, mais à nossa inteligência do que à nossa alma ou ao nosso coração, embora não seja racional nem cerebral.

      Raramente ele abraça a experiência cotidiana. É, principalmente, um cronista de ideias. Paulo Mendes Campos é o nosso Montaigne tropical, um Montaigne com veia poética, sensualidade e senso de humor. O melhor acontece quando os seus ensaios enveredam pela divagação lírica caprichosa.

      A impressão final da leitura das duas coletâneas é de um conjunto desigual, mas muito rico. Paulo Mendes Campos acumulou produção de alta qualidade nas páginas efêmeras de jornais e revistas, diariamente ou semanalmente, em dramática contagem regressiva contra os ponteiros dos relógios marcando a hora fatídica do fechamento da edição: “Uma jovem se deslocava para a praia, tão esbelta, tão serena, tão irresistível, tão harmonizada aos acordes da paisagem, tão bem estruturada no espaço, tão matinal e marinha, tão suave, tão intangível e hierática, tão feérica na sua beleza castanha, que só não voou e virou gaivota porque não quis”.


      O MAIS ESTRANHO DOS PAÍSES
      De Paulo Mendes Campos
      Companhia
      das Letras, 345 páginas, R$ 45

      O AMOR ACABA
      De Paulo Mendes Campos
      Companhia
      das Letras, 280 páginas, R$ 39

      O poeta trifásico(Armando Freitas Filho)-Walter Sebastião‏

      O livro Dever, que será lançado este mês, marca os 50 anos de militância poética do carioca Armando Freitas Filho. A bordo de sua Olivetti, ele tenta entender a vida 


      Walter Sebastião

      Estado de Minas: 10/08/2013 

      Meio século dedicado à poesia, devidamente comemorado com um novo livro. O carioca Armando Freitas Filho, de 73 anos, vai lançar Dever (Companhia das Letras) este mês. A estreia foi em 1963, com Palavra, e o trabalho mais recente é Lar, (2009). Quinze títulos depois, o escritor coleciona prêmios – três Jabutis, o Alphonsus Guimaraens, o Portugal Telecom de Literatura e o Moacyr Scliar – e respeito.

      Armando é considerado um dos poetas contemporâneos mais importantes do Brasil. “Prêmios, consagrações e respeito são duvidosos por natureza”, afirma ele. “Há sempre aqueles que não me premiam, não me consagram, não me respeitam. Portanto, o sentimento que tenho, ao sentar para escrever, é tentar fazer com que eles me respeitem, somente”, acrescenta.

      Para quem ainda não conhece seus versos, o autor sugere Máquina de escrever, poesia reunida e revista (Nova Fronteira). O título remete a objeto pelo qual o poeta tem particular afeto – e usa até hoje.

      Armando Freitas Filho se define como escritor trifásico: “O encanto começa com o lápis de ponta fina ou rombuda ou com a caneta de qualquer marca, com minha máquina de escrever Olivetti Lettera 22, de teclas pretas, e com qualquer computador. Este é o caminho cronológico que percorro hoje para o poema ou o texto ficarem prontos. Mas não posso negar que tenho uma queda pela Olivetti, talvez por ter sido presente do meu pai quando fiz 20 anos. Posso dizer, então, que ela é o meu animal de estimação”.

      Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, Armando foi secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro, pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional e assessor no gabinete da Presidência da Funarte, cargo no qual se aposentou.

      O poeta organizou a obra da colega e amiga Ana Cristina César (1952 –1983). Nasceu e mora no Rio de Janeiro, cidade presente em seus versos.

      Entrevista

      Armando Freitas Filho
      poeta

      Meio caminho andado

      O que se aprende, ou se entende, sobre o mundo e as palavras depois de tanto tempo dedicado ao ofício da poesia?

      No meu caso, o aprendizado e o entendimento foram sobre mim mesmo. Se estes tiverem chegado ao mundo e ao mundo das palavras, depois de 50 anos de prática, de uma maneira pelo menos razoável, meio caminho foi andado.

       Como a poesia entrou na sua vida? Em que momento sentiu que se dedicaria a ela?

      A poesia entrou na minha vida pelo ouvido ao ganhar do meu pai, em 1956, o disco com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade dizendo seus poemas, e imediatamente depois, os livros Poesias completas e Fazendeiro do ar & poesia até agora, com toda a poesia que tinham escrito, até então. Devo ter feito por merecer esses presentes, mas não me lembro de tê-los pedido. O que eu sei é que nunca mais recebi presentes tão valiosos.

      Que tema é recorrente em seus textos?

      De uma maneira geral, o corpo, a cidade, a memória e o fazer poético. Não são exatamente temas, mas problemas que vou procurando resolver de diferentes maneiras, conforme a época e a circunstância. Entendo a poesia como entendo as outras coisas da vida, que mesclam solidão e vida mundana.

      A que autores concederia o título de mestre? Quem são os seus mestres?

      Meus três mosqueteiros são, como já disse algumas vezes, por ordem de entrada: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar D’Artagnan.

      O que é mais fascinante em ser um autor que escreve em português?

      Fascinante, por ser a língua de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo; decepcionante por ser uma língua de cultura tão pouco lida.

      O que o Rio de Janeiro representa para você?

      Tenho um punhado de poemas sobre o Rio. Daria para fazer um livro alentado sobre as muitas cidades que o compõem. O crítico Luiz Costa Lima chegou a escrever que minha poesia celebra bem a cidade. Também, com mestres padrão ouro à mão como Tom, Vinicius e Rubem Braga, como não aprender alguma coisa pelo menos? O que me incomoda no Rio é a sua beleza implacável, que consegue chegar ao terrível num piscar de olhos. O jeito carioca de ser se assemelha com o jeito mineiro de ser, a meu ver, por incrível que pareça: somos manhosos, dribladores, nos ocultamos falando. Só que o primeiro não usa reticências nas frases, prefere se disfarçar atrás das exclamações. Nascer, viver, trabalhar, morar na cidade e, se Deus quiser, morrer nela é um destino como outro qualquer, mas que tem uma trilha, mais ao sul, que conjuga montanha e mar ao mesmo tempo, inesquecível.



      O primeiro arranha-céu
      foi a pedra
      do Pão de Açúcar:
      monumento onde o mar
      se amarra
       o mato cresce no pedestal
      e o abraço da baía
      completa o cenário
      – o lugar-comum –
      o que já estava escrito
      pelos cronistas lapidares
      e por mim
      quase com as mesmas palavras

      De Armando Freitas Filho

      Cassiano Elek Machado - Filósofo debate 'revoluções morais' atuais

      folha de são paulo
      Britânico Kwame Anthony Appiah fala em São Paulo sobre grandes transformações recentes de condutas sociais
      Morte por honra no Paquistão e casamento gay nos EUA são temas de palestra do 'Fronteiras do Pensamento'
      CASSIANO ELEK MACHADODE SÃO PAULOAo final de uma resenha do "New York Times" sobre um livro de Kwame Anthony Appiah, o autor do texto afirmava "o detetive Appiah está trabalhando no caso mais difícil de todos: quem somos, moralmente falando, e como chegamos até o ponto atual?".
      É esta complexa pergunta que o teórico cultural inglês, de origem ganesa, vai tentar responder no palco de um teatro de São Paulo, na noite da próxima quarta-feira.
      Referência mundial em estudos sobre a moral, o professor da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, virá ao país para participar do ciclo de conferências "Fronteiras do Pensamento".
      "Pretendo tratar das revoluções morais que estão acontecendo neste momento, enquanto nós conversamos", adianta Appiah, 59, em entrevista à Folha por telefone, de Nova York, onde vive.
      A palestra "As Revoluções Morais do Século 21" retomará conceitos apresentados no livro mais recente de Appiah, tema da resenha citada, que o qualificou como "um dos filósofos mais relevantes da atualidade".
      "O Código de Honra" (Companhia das Letras, 2012, tradução de Denise Bottmann) trata de grandes mudanças de padrões morais, ou "revoluções morais", e de como questões relacionadas à honra são decisivas para tal.
      No livro, Appiah discute sobretudo revoluções do passado longínquo: o fim do costume chinês de amarrar os pés das meninas, para que não crescessem, ou a abolição da prática do duelo na Inglaterra, ambas no século 19.
      Na palestra, ele direciona o mesmo tipo de interpretação para fenômenos mais recentes, como a mudança de aceitação do casamento gay nos Estados Unidos.
      "Há 20 anos a maioria das pessoas no país diria que a ideia do casamento gay é totalmente ridícula. Hoje se você falar com jovens americanos, 70% deles vão defender sua aprovação."
      Para Appiah, as revoluções morais são mais locais do que globais. "Elas têm um padrão que faz com que as tendências globais caminhem numa direção, mas os ganhos das revoluções sejam colhidos localmente."
      Assim, em muitos países não se pode falar em "ganhos". Ele cita como exemplos países da África, como Uganda, Gana e Nigéria, e a "profusão de casos de homofobia" na Rússia.
      Questões ligadas a sexualidade e a gênero são predominantes nas análises de Appiah sobre o presente porque, nelas, diz ele, as pessoas tendem "a defender atitudes inconsistentes com suas posturas em geral".
      Outras áreas nas quais o "detetive" Appiah identifica mudanças de conduta de grandes proporções nas últimas décadas foram o sistema prisional dos Estados Unidos ("abaixo de qualquer padrão de direitos humanos"), a defesa dos direitos dos animais e o assassinato por honra em países como o Paquistão.
      "Muito recentemente grupos da sociedade civil começaram a obter avanços importantes e mudar a atitude das pessoas com relação a isso. Mais de 5000 mulheres vinham sendo mortas por ano."
      KWAME ANTHONY APPIAH - FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
      QUANDO quarta-feira, às 20h30
      ONDE Teatro Geo - Complexo Cultural Ohtake (r. dos Coropés, 88, Pinheiros, São Paulo)
      QUANTO ingressos esgotados

        Chega às livrarias A irmandade da uva, escrito por John Fante há 36 anos.‏

        Do vinho ao pó 

        Chega às livrarias A irmandade da uva, escrito por John Fante há 36 anos. Ficção se entrelaça com elementos confessionais do autor para revelar a saga de Henry Molise
         



        Diego Ponce de Leon

        Estado de Minas: 10/08/2013 

        Começar a falar de John Fante (1909 – 1983) citando Charles Bukowski é um clichê literário na mesma medida que omiti-lo seria um crime. Assim, é melhor apelar para a licença poética do clichê, que, embora previsível, revela-se esclarecedor. Eis que o cultuado Bukowski se comprometeu a entregar uma encomenda literária desde que, e somente se, a editora em questão se comprometesse a relançar o clássico Pergunte ao pó, de John Fante. Eles sucumbiram de tal forma que cumpriram o combinado e estenderam a ação para os demais títulos de Fante. Era o escritor favorito de Bukowski. Sem dúvida aparente.

        O pó de Fante inaugurou a escola literária que seria consolidada nos livros seguintes (e um anterior) por meio do alterego e personagem recorrente Arturo Bandini. Entre méritos menores, Fante precedeu o movimento beatnik, que se consagraria nas estradas de Jack Kerouac. A escola literária referida não leva nome, se não a de seu criador. Uma escrita ágil e objetiva. Uma porrada literária sóbria. Assim se deu com o pó, e assim se dá com o vinho Angelo Musso, que provoca a analogia velada em A irmandade da uva, finalmente lançado no país.

        Boêmios


        A espera é tardia, mas, no que concerne a A irmandade da uva, tudo parece seguir um compasso mais letárgico. Escrita em 1977, a obra apareceu depois do jejum de 25 anos sem incursões no mercado editorial (o anterior Full of life data de 1952). Se a metáfora cabe (já que a verve passeia por entre vinhos e uvas), melhor pensar que o livro precisou envelhecer em barris de carvalho até ficar devidamente encorpado e pronto para a degustação. O buquê é convidativo.

        Como todas as empreitadas de Fante, A irmandade da uva apresenta elementos confessionais e brinca com o leitor, que passa a questionar o autobiográfico e a ficção. Na história, Henry Molise descreve a relação perturbada com o pai, Nick (“deplorável, miserável, embaraçoso, revoltante, desavergonhado, estúpido, grosseiro, feio e bêbado – o pior pai que um homem podia ter”). Apesar dos adjetivos pouco elogiosos, Nick permanece casado. A esposa sofre com os abusos hiperbólicos do marido alcoólatra e frio, mas não se separa. Uma perturbação esmiuçada por Fante. Além de Henry, os demais filhos carregam o fardo do pai problemático.

        A jornada que o livro propõe jaz no retorno de Henry para a cidade natal, em uma tentativa de lidar com a notícia de que finalmente os pais vão encarar o divórcio. Embora episódios anteriores tenham sido registrados, leva-se a crer que o fim da relação não tardará, exigindo uma descomunal doação por parte dos envolvidos para dissolver todas as amarras que aquele casamento carrega há tantos anos. E não são poucas.

        O velho Nick, indiferente às circunstâncias familiares, exige apenas ser reconhecido como o bom pedreiro da cidade (que sempre foi) e pretende encarar um último serviço, cujo término depende do auxílio do filho. Pede ainda poder desfrutar da companhia dos outros boêmios da pequena cidade de San Elmo (“velhos canalhas maldosos, amargos e intensos que rosnavam, mas se deleitavam no humor cruel, na profanação e no companheirismo”), que se reúnem em torno de garrafas do vinho Angelo Musso (daí a irmandade da uva). Henry encontra, então, caminhos que o levam ao passado e que podem, eventualmente, conduzir a uma compreensão íntima do pai, jamais imaginada.

        Entre o ponto de partida e o destino, Fante desmembra a classe média, aborda mazelas domiciliares, repensa a família, as amizades. Quebra paradigmas. Perturba. O resultado para um leitor desavisado pode ser devastador. Para os assíduos, outra latente lição. Seja qual for a intimidade com o submundo de Fante, o caminho a trilhar parece único: embebede-se.

        A IRMANDADE DA UVA
        . De John Fante
        . José Olympio, 224 páginas, R$ 35

        TRECHO

        “Meu pai teria sido um homem mais feliz sem uma família. Não fossem seus quatro filhos, teria se divorciado e partido havia muito tempo para outras cidades. Adorava Stockton, que era cheia de italianos, e Marysville, onde a gente podia jogar na loteria chinesa dia e noite. Seus filhos eram os cravos que o crucificavam à minha mãe. Sem filhos, estaria livre como um passarinho.

        Não gostava de nós em particular e com toda a certeza não nos amava nem um pouco. Éramos apenas crianças comuns, simples e indistintas, e ele esperava mais. Éramos tarefas a serem cumpridas. (…)

        Ninguém cruzava com ele sem uma batalha. Desgostava de quase tudo, particularmente da mulher, dos filhos, dos vizinhos, da sua igreja, do padre, da sua cidade, do seu estado, do seu país e do país do qual havia emigrado. Não dava a menor importância ao mundo também, ou ao sol e às estrelas, ou ao universo, ao céu ou ao inferno. Mas gostava das mulheres.”