segunda-feira, 27 de abril de 2015

Mama África

Mama África 

 Em seu primeiro disco desde Recomeço (2008), a baiana Virgínia Rodrigues interpreta nos idiomas kikongo e kimbundo. "Estou sempre cantando as coisas do meu povo e, desta vez, quis ir mais fundo na questão", diz


Ailton Magioli
Estado de Minas: 27/04/2015




A cantora Virginia Rodrigues, que lança o álbum Mama kalunga, em que conta com participações como a da peruana Susana Baca (Sora Maia/Divulgação (Virginia))
A cantora Virginia Rodrigues, que lança o álbum Mama kalunga, em que conta com participações como a da peruana Susana Baca

Sete anos depois de Recomeço (2008), Virginia Rodrigues volta ao disco, com aquele que é o mais conceitual de seus trabalhos. Por mais erudito que possa soar, Mama kalunga, da Casa de Fulô, não resiste ao apelo popular do refrão da canção do paulistano Geraldo Filme. “Vá cuidar da sua vida/Diz o dito popular/Quem cuida da vida alheia/Da sua não pode cuidar”, canta Virginia.

Ela, por sua vez, está cada vez mais centrada em sua própria criação, e diz que buscou, com Mama kalunga, fugir de tudo que soasse como folclore ou coisas do gênero. “Estou sempre cantando as coisas do meu povo e, desta vez, quis ir mais fundo na questão”, afirma a cantora. O trabalho voltado à temática afrobrasileira acabou contribuindo para fazer Virginia Rodrigues e sua música serem mais conhecidas na Europa e nos Estados Unidos do que no Brasil.

Voz firme, possante, é à capela que Virginia Rodrigues abre Mama kalunga, cantando Ao senhor do fogo azul, de Gilson Nascimento. A seguir, é a vez da música que dá título ao disco, cuja autoria pertence ao baiano Tiganá Santana, não por acaso o produtor do disco, ao lado de Sebastian Notini, percussionista sueco radicado na Bahia.

As participações especiais em Mama kalunga incluem a da veterana atriz Ruth de Souza, na leitura introdutória de um texto em homenagem à divindade Mameto Zumba, também conhecida entre os adeptos de religiões de matrizes africanas como Nanã – senhora da morte, da sabedoria e da lama como matéria-prima. A lendária cantora afroperuana Susana Baca canta com Virginia um antigo cântico afrocubano. E há ainda Ricardo Pereira.


 (REPRODUÇÃO
)


LÍNGUAS AFRICANAS No disco, pela primeira vez a cantora baiana canta em línguas africanas, mais especificamente kikongo e kimbundo, ao estudo das quais se dedicou nos últimos anos. Dois violões, duas percussões e um violoncelo estão na formação que acompanha Virginia. Ela levou todas ao palco, na estreia do show, que ocorreu na semana passada, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Além do repertório integral do novo disco, o show traz a Bachiana nº 5 e Melodia sentimental, ambas de Heitor Villa-Lobos.

Melodia sentimental, como lembra a cantora, faz parte de todos os seus shows. “É a primeira vez que canto as duas juntas”, diz, admitindo ser uma ousadia da parte dela cantar a Bachiana nº 5.

Apesar de haver frequentado durante cinco anos cursos livre de música erudita, Virginia teve sua formação em coros de igrejas católicas e protestantes. Oriunda do Bando Teatro Olodum, Virginia Rodrigues atribui ao diretor do grupo baiano, Márcio Meirelles, sua estreia no palco. “Hoje sou apenas cantora, o que sempre quis ser. Mas o cantor também tem um pouco do ator, já que ele tem de interpretar.”

Do mineiro Abigail Moura (Babalaô/Amor de escravo) ao já citado paulistano Geraldo Filme (Vá cuidar de sua vida), passando pelo pernambucano Moacir Santos (Sou eu, com Nei Lopes) o carioca Paulinho da Viola (Nos horizontes do mundo) e os baianos Roberto Mendes (Teus olhos em mim), Ederaldo Gentil (Luandê), Gilson Nascimento (Ao senhor do fogo azul) e Tiganá Santana (Mama kalunga/Mukongo/Monami/Saluba), a cantora gravou, ainda, de domínio público, o cântico tradicional afrocubano Belen cochambre, em adaptação de Susana Baca.

CRÍTICA » Álbum não procura ser fácil e exige curiosidade
Kiko Ferreira

A cantora baiana Virginia Rodrigues costuma ser tratada com os mesmos gestos e apupos dedicados a nobrezas como Nina Simone, Miriam Makeba e Bessie Smith. O Le Monde, o New York Times, o ex-presidente Clinton e o talking head David Byrne foram alguns canais que ajudaram a dar a ela fama internacional.

Caso clássico de artista mais conhecida lá fora do que em sua própria terra, Virginia está de volta com seu quinto álbum, Mama kalunga, sequência de um disco de pegada erudita, feito para o selo clássico Deutsche Gramophon, com os afro-sambas de Baden e Vinícius, e um álbum de canções brasileiras com o piano de Cristóvão Bastos.

Descoberta por Caetano, no final dos anos 1990, durante um ensaio do grupo de teatro do Olodum,Virginia virou imediatamente uma artista cult, com a voz de meio soprano burilada em corais de igrejas católicas e repertório adquirido ouvindo rádio, enquanto desempenhava funções de manicure, cabeleireira, empregada doméstica, lavadeira e passadeira de roupas. Antes de ser intérprete, personagem.

Nascida numa família de raízes banto, angolanas, ela se declara “filha de Ogum de Ronda com Nanã e Iemanjá Ogunté. Ou seja Nkosi, Ganga Zumba e Kaiála – como é chamado na minha nação, que é Angola”. E é partindo dessas raízes que ela concebeu Mama kalunga , produzido por Sebastian Notini e pelo cantor Tiganá Santana, celebrizado por gravar  em línguas africanas.

Daí que três das treze composições foram criadas e cantadas nos idiomas kicongo e kimbungo. E uma quarta é um tema tradicional da santeria cubana. Aliados à voz de pegada lírica, carregada de dramaticidade e uma certa solenidade, são motivos de estranheza aos ouvidos comuns, exigindo boa vontade e curiosidade de quem se aventura no tom quase ritualístico do álbum.

Mesmo quando o objeto do canto é a canção popular brasileira típica, Virginia não facilita, não busca soar “popular”. O célebre samba Nos horizontes do mundo, de Paulinho da Viola, chega lento, com um acompanhamento de violão e cello que ressalta os desenganos e sofrimentos da belíssima letra.

E Vá cuidar de sua vida, de Geraldo Filme, com palmas , tambores e pandeiro fazendo cozinha de samba de roda, parece ter um quê de câmera lenta. Daí que o melhor do disco é quando a cantora soa como um mix afro de Mônica Salmaso e Nana Caymmi na belíssima  Teus olhos em mim (Roberto Mendes e Nizaldo Costa) e seus versos antológicos: “tira seus olhos de mim/ teus olhos não podem me ver/ meus olhos chorando assim/ com medo de te perder”.

E a épica Luandê (Ederaldo Gentil) forma um daqueles retratos certeiros de Salvador: “não preciso de alforria/ antes da abolição/ a lição eu já sabia/ na Bahia, todo branco/ tem um negro na família”. Aí ela canta como se lavasse roupa, rodasse a saia, nadasse num rio de águas límpidas.

A porção mais “MPB” se fecha bem com Sou eu,de Moacir Lopes e Nei Lopes, com a suavidade da voz de Tiganá Lopes criando um belo contraste com o bronze de Virginia, numa letra que trata de luz, paz e bondade sem soar piegas ou falsamente inocente. Pra fechar a casa e ir dormir, a bela Dembwa (10 de agosto) soa como síntese do disco, com mais uma bela imagem: “Dembwa é o ofício de abrir os braços/ quando não há quem se abraçar”.

Com direção musical de Iura Ranevsky, que assume o violoncelo, o CD tem como base musical os violões de Bernardo Bosisio e Webster Santos e as percussões de Sebastian Notini e Marco Lobo.

Nas cores extras, participação da cantora afroperuana Susana Baca no Canto tradicional Afrocubano Belen cochambre e da atriz Ruth Souza, um mito das artes dramáticas brasileiras que, aos 94 anos, faz uma leitura introdutória, na abertura de Yaya zumba, de um texto em homenagem à divindade Mameto Zumba. Cereja de um bolo consistente e saboroso.