terça-feira, 10 de março de 2015

Chora, viola

Inezita Barroso, que morreu domingo, lutou bravamente pela valorização da cultura popular brasileira. Graças a ela, a música caipira de raiz conquistou o seu espaço na TV do país


Estado de Minas : 10/03/2015 



Cantora, atriz, apresentadora de TV e pesquisadora, Inezita Barroso lutou contra o preconceito para conquistar seu espaço como artista (ARQUIVO EM)
Cantora, atriz, apresentadora de TV e pesquisadora, Inezita Barroso lutou contra o preconceito para conquistar seu espaço como artista
A cantora e apresentadora de TV Inezita Barroso, que morreu domingo, aos 90 anos, deixou órfã a música de raiz brasileira. “Ela foi a maior defensora da cultura caipira que o país já teve. Dedicou a vida dela a divulgar essa cultura que ela aprendeu ao conviver com as pessoas do interior”, lamentou o cantor sertanejo Chitãozinho.

Internada desde 19 de fevereiro no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, a cantora não soube da morte de José Rico, outro ícone do universo caipira, frequentador assíduo do programa Viola, minha viola, apresentado por ela na TV Cultura desde os anos 1980. Já estava sedada quando o amigo faleceu, na terça-feira passada. A causa da morte de Inezita foi insuficiência respiratória aguda. Há três meses, ela caiu da cama na casa da filha, Marta, em Campos de Jordão, em São Paulo. Levada ao pronto-socorro municipal, chegou a ser liberada, mas a saúde frágil levou à internação na capital.

FAZENDA
Filha de família quatrocentona, quando ia passar férias em uma das fazendas da família a menina deixava as primas na casa-grande, pulava a janela e ia ver os colonos tocando viola. No dia em que um violão caiu em suas mãos, ela atacou de Boi amarelinho. Nunca mais deixou a música. Formada em biblioteconomia, tornou-se cantora e atriz, trabalhou no rádio e na TV. Foi a primeira a gravar Ronda, o clássico dor de cotovelo de Paulo Vanzolini, mas ficou conhecida por interpretar a Moda da pinga – a famosa Marvada pinga (“Com a marvada pinga/ É que eu me atrapaio...”).

Atuante na cena cultural de São Paulo a partir dos anos 1950, ela era cunhada do ator de teatro Maurício Barroso e conviveu com Tônia Carreiro e Cacilda Becker. Estrelou filmes na companhia Vera Cruz e sua experiência no vídeo resultou em suas primeiras aventuras na televisão, principalmente na Record.

Inezita enfrentou muito preconceito, mas nunca esmoreceu. O pai não a apoiou quando se tornou a primeira mulher a gravar música caipira. Pioneira, não foi bem recebida pela sociedade. “Era, inclusive, discriminada pelos caipiras”, disse ela em uma de suas várias entrevistas. Moça à frente de seu tempo, ela jamais se rendeu às convenções sociais. Não deixa de ser emblemático o fato de sua morte ocorrer no Dia Internacional da Mulher.

JIPE O surgimento da Jovem Guarda e da bossa nova pareciam minar a carreira de Inezita. Mas, na década de 1960, ela tomou uma decisão que marcaria a cultura do país: apostar na música caipira. E foi conhecer o Brasil profundo. Dirigiu um jipe de São Paulo à Paraíba, onde gravaria um filme sobre a Guerra do Paraguai. Foram dois meses de viagem, anotando literalmente tudo que encontrava pelo caminho.

Como não tinha gravador, Inezita escrevia uma a uma as notas que ouvia em folhas com pentagramas musicais. Sua aventura rendeu causos e mais causos. Quando chegou a Salvador, testou as trações nas quatro rodas subindo de jipe as escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim. Mais à frente, no interior da Bahia, ficou encantada por um cantador e passou a anotar rapidamente o que ele cantava. Em outra cidade, resolveu testar a mira. Apontou a espingarda que levava consigo para um objeto voador e atirou: “Caiu um urubu do meu lado, que horrível aquilo. Nunca mais dei um tiro”, revelou.

Tanto empenho acabou no fogo. Inezita lutou para que alguma emissora de rádio ou de TV exibisse sua pesquisa. Depois de levar o oitavo não, quebrou o violão, fez uma fogueira e jogou nas chamas todo o material recolhido pelo interior do Brasil. Mas não desistiu. Desde a década de 1980, ela comandou o Viola, minha viola, exibido na TV Cultura. Foram 1,5 mil programas – a atração musical mais antiga da TV brasileira.