domingo, 16 de dezembro de 2012

Quem não gosta de hip-hop é... - Barbara Gancia

Folha de São Paulo

Ocupo esta tribuna hoje para pedir perdão. Banhei o manto da culpa nas águas do rio Jordão e de suas profundezas emergi purificada para expurgar publicamente meus malfeitos.

Leitor meu, eu pequei. Quantas vezes não usei este espaço para enfiar a mão na orelha do hip-hop, para criticar a pobreza das letras do rap, seu teor machista, violento e materialista?

Da mesma forma, nos anos 70 e 80, precisei ser contida para não queimar discos de Donna Summer e Gloria Gaynor em praça pública e para não vomitar dentro de minha própria boca diante de quem ousasse surgir na minha frente rebolando as músicas de "Grease" e "Saturday Night Fever". Esses tipos quase puseram minha juventude a perder.

Mas tudo isso passou, eu continuei firme nos meus Pink Floyd, David Bowie etc. até que um dia... Bem, até que meus olhos começaram a querer revirar a cada vez que alguém colocava "Brown Sugar" ou "Smoke on the Water" para tocar pela enésima vez. "How I wish, how I wish you were..." Tira essa joça, que eu prefiro a "Hora do Brasil"!

Para completar minha crise nervosa em razão da falta de renovação no cenário musical, surgiu uma turma de embusteiros neorromânticos imitando a Françoise Hardy e tentando me convencer de que basta cantar em francês e vestir calça pula brejo para dizer que a inocência dos anos 60 está de volta. Pois sim. Arranco-lhes os botões abotoados de suas camisetas polo a dentadas e ainda mostro a eles a pureza dos anos dourados incrustada lá dentro da boca cheia de dentes da Hello Kitty, nerds falsificados, cantores de batizado. Pois é, a Hello Kitty não tem boca.

Eu vou lá querer, em 2012, ouvir música sem pulsão sexual, sem batida e sem eletrônicos? Olha, que eu chamo a Beth Ditto para arrancar e pisotear os óculos desses calminhos todos, hein? Tadinha da Beth, perdida...

Aí que entra meu pedido de desculpas. Na falta de tu, vai tu mesmo, cansada de repetir playlist e sem alternativas, a burguesinha que se chocava com a falação dos Tupacs, na linha de: "Sua cadela, enfio um tiro na cabeça do seu gangsta e roubo seus cartões de crédito pra andar de Ferrari e depois mato todo mundo", intercalada por trechos de sucessos chupados sem nenhum pudor de, digamos, Otis Redding, porque vale tudo, passou a prestar atenção.

Puxa vida, vivemos na era da apropriação amigável em que a internet empurrou direitos autorais contra a parede, o plágio foi jogado na latrina pela "menção" e a "homenagem" puxou a descarga, não é?

A questão não está resolvida e a resposta vale zilhões de dólares. Enquanto isso, hip-hop é a única linguagem musical cuja sintaxe e sotaque estão em sintonia com nosso tempo. Percebi 20 anos atrasado, fazer o quê?

De tanto treinar o ouvido (não ouço outro tipo de música já faz algum tempo -como comida japonesa, trata-se de um gosto adquirido), comecei a perceber nuances, humor, erotismo, romance, enfim, uma vida outra não tão vulgar e desesperançada, da qual eu não me dava conta quando só me preocupava com minha própria indignação.

A riqueza da junção musical entre o funk, o R&B e (admito) o new disco, a raiva nas letras, panquecas musicais sobrepostas e mixagens intrincadas convivem. São elementos que não se encontram em nenhum outro gênero. House, dance, lounge, fica tudo no chinelo.

Não pretendo explicar. Seria como enviar de Belém um texto falando sobre o nascimento do Redentor depois da crucificação e ressureição de Cristo.

O objetivo aqui é pedir sinceras desculpas por ter agido como uma troglodita e mostrar que existe como abrir a cabeça de matracas arrogantes como eu.

Quem sabe não seja possível fazer são-paulinos evitarem de torcer contra o Corinthians em torneios em que nem sequer estão inscritos?

Por que os juros caíram? - Samuel Pessôa


folha de são paulo
Desde 2004 a taxa de juros passou a responder aos fundamentos do mercado de bens e serviços
Desde agosto de 2011 a taxa básica de juros reduziu-se em 5,25 pontos percentuais. A queda para valores próximos aos praticados nas demais economias representa o último passo que falta para que a estabilização macroeconômica da economia, iniciada com o Plano Real, em 1994, se complete.
A questão que se apresenta é sabermos os motivos que motivaram essa queda e, a partir desse diagnóstico, investigar se a queda será perene ou se será revertida à frente. Minha avaliação é que a queda da taxa básica de juros desde agosto de 2011, apesar de ser fato auspicioso e longamente esperado por todos, é sintoma de perda de produtividade e dinamismo da economia.
Se as condições que produziram a perda de dinamismo persistirem, a queda terá sido perene. Caso contrário, poderá haver em algum momento forte ciclo de alta de juros.
Intuitivamente associamos juros básicos elevados às situações de risco e de desempenho ruim da economia. O motivo é que durante muitas décadas a taxa de juros era instrumento utilizado para estabilizar o setor externo da economia.
Explico-me: o país tinha uma grande dívida externa e apresentava dificuldade para financiar a rolagem dessa dívida. Os investidores previam que, por conta dessa dificuldade, haveria uma forte desvalorização do câmbio, que faria com que sua riqueza aplicada no Brasil, medida em dólar, se desvalorizasse muito. Respondiam, portanto, tentando retirar sua riqueza do país.
Para contrabalançar, os juros domésticos elevavam-se para compensar os investidores pelo risco percebido de desvalorização e, portanto, "convencê-los" a não transferir seus recursos para fora do país.
Ou seja, mesmo em momentos em que a inflação não estava em elevação, os juros podiam subir. Esse mecanismo foi claríssimo no primeiro mandato de FHC antes da alteração do regime cambial, em razão dos diversos choques externos experimentados pela economia. Minha avaliação é que, desde 2004, quando o regime de política econômica implantado no segundo mandato de FHC consolidou-se no primeiro mandato de Lula, a taxa de juros deixou de oscilar em razão dos riscos percebidos de perda patrimonial e passou a responder aos excessos de demanda sobre a oferta da economia.
Na linguagem da profissão, diz-se que desde 2004 a taxa de juros passou a responder aos fundamentos do mercado de bens e serviços.
Por que motivo o juro real foi tão elevado entre 2004 e 2010? Minha resposta é que esse foi um período em que a demanda agregada -a soma de consumo e investimento- cresceu a taxas superiores à taxa de crescimento do produto, gerando uma situação de permanente excesso de demanda que pressionava preços e mantinha a inflação permanentemente elevada, o que requeria a subida dos juros para esfriar a economia e combater a inflação.
Se é verdade que esse foi um período de forte avanço do consumo (de 2004 a 2010 o consumo cresceu 5,5% ao ano para uma expansão do produto de 4,3%), a alta do investimento no mesmo período, de 8,7%, foi ainda maior. No período mais recente, de 2010 até 2012, o avanço do consumo continuou sendo superior ao crescimento do produto, mas expansão do investimento ficou abaixo: 4,6% ante 4,4% anuais.
Assim o fraco crescimento do investimento, aquém do produto, contribuindo para reduzir a demanda, explica a redução dos juros domésticos desde agosto de 2011.
Esse processo de juros em baixa deve persistir por mais uns trimestres: a projeção no Ibre-FGV é que o investimento continue crescendo aquém da produção ao menos no quarto trimestre de 2014, quando deve registrar o sexto trimestre seguido com crescimento negativo.
A questão é: os juros subirão se e quando o investimento voltar a crescer fortemente? Há duas possibilidades para que não ocorra a subida dos juros.
A primeira é que, com o retorno do investimento, a poupança doméstica cresça na mesma medida, de forma a não ser necessário recorrer à elevação da poupança externa para financiar a elevação do investimento.
A segunda é que a política econômica aceite uma elevação da absorção de poupança externa e, consequentemente, uma valorização do câmbio, quando o investimento retornar. Isso terá consequências não triviais para a indústria.

    Vinicius Torres Freire

    Folha de São Paulo


    Transes e transição no Brasil
    Depois da sova por causa do Pibinho, o governo e os seus simpatizantes reagem aos críticos
    DILMA ROUSSEFF e seus economistas apanharam nas duas semanas seguintes à divulgação do Pibinho. Na semana que passou, o governo e seus simpatizantes reagiram. A crítica, diz-se agora, viria da finança e agregados, que perderam o maná dos juros altos, e de quem não entende que o país vive um "período de transição". É tudo verdade. E mentira também.
    É verdade que não dá para levar o humor da finança muito a sério. Os rapazes do mercado promovem países a "queridinhos" quando enchem a burra e os rebaixam a "bola da vez" quando se lascam ou veem o peru gordo fugir da gaiola.
    Basta lembrar o giro da roda da fortuna e da roda dos expostos da finança nos últimos 25 anos. México, Argentina, tigres asiáticos, tigrinhos vários, Brasil e tantos que entraram e saíram da lista mais de uma vez, por motivo fútil e injustificado.
    No caso do Brasil recente, não apenas os rapazes do mercado lá de fora se amuaram. Dilma Rousseff sapateou sobre a banca nacional. Além do mais, muita gente avessa ao petismo estava com o "desenvolvimentismo" entalado na garganta e desabafou quando viu a vaca atolar no brejo do Pibinho por dois anos, com típica Schadenfreude (alegria com a desgraça alheia).
    É verdade que há novidades não assimiladas pela economia, o que tem sido chamado de "transição". O país vai se rearranjar com taxas de juros baixas. O dinheiro que não rende nada vai procurar algum destino. Outra mudança, a no câmbio, demora a fazer efeito mesmo.
    Se o governo enfim conseguir passar a tarefa de investir em infraestrutura para a iniciativa privada, alguma coisa vai andar.
    Isto posto, vamos às mentiras e desconversas.
    Primeiro, o governo passou o ano dizendo que "quem apostar no baixo crescimento vai se estrepar". Passou o ano quase inteiro com essa conversa de crescimento de 4%. Era, como se viu, mistura de previsão errada com conversa fiada.
    Segundo, mesmo que o país "transite", há empecilhos inegáveis. O desemprego está baixo mesmo com o crescimento baixo. A mão de obra é escassa em quantidade e qualidade. Isso vai dar em problema se o país voltar a andar.
    Terceiro, seja qual for o motivo, o país não está investindo. Provavelmente, o desânimo do investimento é uma resultante de uma pilha de motivos.
    Porque: 1) Os lucros diminuíram, pois os custos estão altos; 2) Parte do consumo vaza (importamos demais) porque o país está caro; 3) O governo não investe, por inépcia e por causa dos rolos de corrupção que vêm desde 2011 (a tal "faxina"); 4) O governo não sabe conversar com as empresas e coordenar projetos; 5) Está difícil investir em projeto novo e sofisticado por falta de gente qualificada para tocar negócios novos e sofisticados; 6) Os estoques estavam altos devido ao exagero de expectativas otimistas de 2011; 7) A economia mundial é uma draga de ânimos.
    Mesmo que a situação melhore, e tende a melhorar em 2013, o Brasil causa exasperação pelo conservadorismo e pela ignorância. Não vamos muito longe com essa burocracia pesada e enorme, com essa falta de educação, com essa aversão a mudanças institucionais, com esse Estado enorme e no lugar errado, com essa falta de ambição, com essa imaginação tacanha.

      Mulher faz mais sacrifício para ascender na carreira

      Folha de São Paulo

      Entre executivos, estudo indica mais mulheres separadas do que homens
      Segundo pesquisadora, há dificuldades de conciliar profissão e família, apesar de desejo das executivas
      MARIANNA ARAGÃODE SÃO PAULOApesar de estarem aumentado sua presença em cargos de comando em empresas no Brasil nos últimos anos, as mulheres ainda pagam um preço alto para ascender ao topo das corporações.
      O desafio de conciliar carreira e vida pessoal se reflete em um percentual maior de executivas separadas, sem filhos e com pouco tempo para hobbies, em comparação com o universo masculino, segundo estudo recente da consultora e pesquisadora da PUC-Minas Betania Tanure.
      De acordo com a pesquisa, o percentual de mulheres em cargos de presidência, diretoria ou gerência que não têm filhos é de 40% -o de homens, 19%. A proporção de executivas com apenas um herdeiro (44%) também é maior que entre seus pares masculinos (29%). Já a quantidade de executivas separadas ou solteiras nos altos escalões é de 35%, sendo que a carreira foi o principal motivo para a separação (64%). O percentual de executivos separados ou solteiros é de 14%.
      EQUILÍBRIO
      "Mesmo ascendendo na carreira, elas não querem abrir mão dos papéis que lhe são atribuídos, como cuidar da casa, da família e do relacionamento. E isso é extremamente custoso", diz Betania.
      A dificuldade de chegar ao balanço ideal entre essas missões é revelada por outro indicador: 74,7% das mulheres estão insatisfeitas com a distribuição do seu tempo. Só 18% conseguem se dedicar a atividades de lazer, ante 82% dos homens.
      Paradoxalmente, a maioria das profissionais que alcançaram o topo não abandonaria a carreira para se dedicar à família.
      "Elas se sentem apaixonadas pelo que fazem, apesar da 'culpa'", diz Betania.
      Hoje, as mulheres representam 5% do total de executivos na presidência de empresas no Brasil, ante 1% dez anos atrás. Na diretoria, já são 19% do total, ante 10% há uma década (veja quadro).
      NOVA AGENDA
      Diretora em um grupo de mídia digital, a executiva Luciana Ribeiro, 35, diz que adiou a maternidade para se dedicar à profissão.
      Com 28 anos, a advogada tornou-se diretora jurídica e, após um MBA no exterior, migrou da área técnica para a de negócios da empresa, o que exigiu mudar de cidade.
      "Tive muitas promoções quando jovem, o que me fez priorizar esse aspecto. Mas ainda pretendo ter filhos."
      A executiva Juliana Azevedo, 37, diretora de marketing de uma multinacional de bens de consumo, conta que aprendeu a "repensar" sua agenda a partir do nascimento de Rafael, 3.
      "Comecei a criar espaços no meio do dia para ficar com ele e a levá-lo a viagens de trabalho. Mas continuo trabalhando muito, inclusive em finais de semana", diz.
      Participaram do estudo 965 executivos, sendo 222 mulheres, no início deste ano.


        Para americanas, ter marido e filhos 'não é tudo'
        DE SÃO PAULOPara mais de um terço das executivas americanas, ter filhos e um casamento estável não significa realização total, revela uma pesquisa feita pelo banco Citi em parceria com a rede profissional LinkedIn nos Estados Unidos.
        O estudo mostrou que, para 36% das entrevistadas, o casamento não está na lista de realizações incluídas no "ter tudo". Para 27%, ter filhos também não.
        A definição de sucesso na carreira também varia entre elas -e não se resume a atingir cargos altos em grandes empresas.
        Apenas 17% das mulheres afirmaram que atingir o topo de uma organização era um fator em sua avaliação de "ter tudo".
        Para a maioria (68%), o sucesso foi definido como ter um emprego do qual goste e no qual seu trabalho é valorizado. Para outras 15%, ser bem-sucedida significa ser sua própria chefe.
        Outra aspecto da pesquisa mostra que mulheres jovens valorizam o sucesso profissional mais que outras.
        Entre as entrevistadas com menos de 35 anos, 26% relacionam "ter tudo" a atingir o topo da carreira. Para aquelas com mais de 35, esse percentual é de 11%.
        Para o estudo, foram entrevistadas 520 mulheres em agosto deste ano.
        DIFERENTE
        No Brasil, no entanto, mostrar-se bem-sucedida também no plano pessoal ainda faz parte dos desejos das mulheres -e da expectativa da sociedade, avalia a pesquisadora da PUC-Minas Carolina Maria Santos.
        "É um traço bastante forte da cultura latina. Espera-se que as mulheres tenham um marido e cuidem dos filhos e da família", afirma Carolina, que conduziu o estudo sobre as executivas brasileiras ao lado da consultora Betania Tanure.
        "São elas também que costumam assumir o cuidado com os pais quando ficam idosos ou adoecem."

          Com vacas 'carinhosas', neozelandeses produzem leite de alta qualidade na Bahia


          Folha de São Paulo - Serafina

          ADRIANA KÜCHLER
          DE JABORANDI

          Quase todo mundo que conheço, quando quer tomar leite, vai até o supermercado, a padaria ou a geladeira, se ele já estiver lá. Mas, da última vez que tomei leite, o caminho foi mais complicado.
          Um voo de São Paulo até Brasília. Uma estrada esburacada até Mambaí, "o encanto do turismo em Goiás", segundo a placa. E outra estrada de terra e lama, 45 quilômetros longos e sacolejantes, desviando de caminhões atolados.
          Treze horas depois, chegamos ao município de Jaborandi, no sudoeste da Bahia, onde fica a fazenda. O jantar logo é servido: curry de salsicha.
          As coisas são diferentes nessa propriedade instalada no cerrado brasileiro. A língua falada é uma mistura aleatória de português e inglês. O traje típico não é camisa xadrez e chapéu de vaqueiro, mas camisa polo e chapéu australiano, ops, neozelandês. E, à noite, além de curry, come-se pizza ou queijos e vinhos.
          Assim funciona a fazenda Leitíssimo, espécie de comunidade que um grupo de neozelandeses fundou há dez anos. A Nova Zelândia, apesar de ser pequena, é o maior exportador mundial de leite.
          Seus nativos encontraram do outro lado do mundo boas condições de solo e clima para produzir um leite de qualidade a preço baixo. E, com o enorme mercado consumidor do Brasil, expandiram os negócios para cá e criaram o Leitíssimo, produto que frequenta as prateleiras de supermercados brasileiros há dois anos.
          O modo de produção dos gringos também é diferente. As vacas ficam soltas o tempo todo, só se alimentam de capim e são criadas perto de gente (no Brasil, em geral, as vacas de leite comem ração e vivem confinadas).
          A sensação é esquisita quando, às oito da manhã, ali no meio do pasto, uma vaca me lambe, cheira e empurra com o focinho. "É igual a um gato, a um cachorro...", diz Craig Bell, 48, um dos fundadores da fazenda. "Foram mal-acostumadas, criadas na mamadeira", explica Dave Broad, 40, outro dos sócios. "Acabam ficando assim, sem medo de gente. São tranquilas e carinhosas."
          As vacas são uma mistura bem neozelandesa das raças Jersey e Friesian, que eles chamam de "kiwicross" --kiwi é o apelido carinhoso dado a tudo que vem da Nova Zelândia.
          O leite produzido ali "compartilha princípios" com o orgânico (como causar o mínimo de impacto ambiental), mas não tem esse rótulo porque os fazendeiros questionam alguns procedimentos necessários para ganhar o selo.
          Vaca de leite orgânico não pode tomar remédios, por exemplo. "E aí, o que fazer quando uma delas fica doente?", questiona Roger Douglas, 25. "Ou muda de fazenda ou vira Big Mac", responde ele mesmo.
          O resultado das técnicas neozelandesas implantadas por aqui é um longa vida elogiado em fóruns de bebedores de leite na internet ("muito cremoso", "leite de verdade" e "gostinho da fazenda" são as expressões mais usadas) e por quem usa a bebida profissionalmente.
          Isabela Raposeiras, a melhor barista do Brasil em nove de dez eleições do tipo, usa o Leitíssimo para fazer seus cafés com leite. A premiada sorveteria Bacio di Latte também.
          MORTE E VIDA BOVINA
          Em breve, a Leitíssimo dará cria em São Paulo. Um dos sócios vai abrir em janeiro a leiteria Delicari com parceiros locais. Além do leite kiwi-baiano, vão vender iogurtes e sorvetes.
          Mas o charme é como as compras vão chegar à casa do cliente: quase à moda antiga, de bicicleta, numa caixa com isolamento térmico. A loja será na Vila Nova Conceição, escolhida por ser um bairro plano, dizem os leiteiros (e provavelmente também pelo alto poder aquisitivo dos seus moradores).
          No meio dos bichos, Juliano e Tatá, dois funcionários da fazenda, conversam sobre a morte da bezerra. Uma vaca morreu à noite ("Coisa muito rara", diz Juliano) e perdeu junto a bezerrinha de que estava prenha. Foi no meio da madrugada, lamentam. Se não, dava tempo de ter salvado.
          Mas não perdem muito tempo no luto. Juliano põe uma luva e vai fazer inseminação artificial em três vacas no cio. Enfia a mão no reto, deposita o sêmen no útero. Com uma seringa de uns 30 cm. Três vezes. Uma atrás da outra. Sem parar para descansar. Romance é artigo em falta na fazenda moderna, dizem. Três inseminações depois, tira a luva, lava bem a mão e acende um cigarrinho.
          Além do convívio íntimo com as vacas, Juliano e Tatá têm outra coisa em comum. Ambos frequentaram a escolinha da fazenda. Tatá, que começou como peão e agora é chefe, aprendeu a ler e a escrever em português. Juliano, gerente da fazenda, estuda inglês.
          Mas a escola é mais usada pelas crianças, filhas de fazendeiros, funcionários e vizinhos. Ali, as 11 alunas são meninas. "Somos muito sexistas", brinca Ana Tonon, 42, mulher de Dave e mãe de três Marias.
          Entre os humanos, a unanimidade feminina é pura coincidência. Já as vacas são inseminadas artificialmente com uma técnica que produz só fêmeas.
          Na escola, as meninas se apresentam para os visitantes. Como o Natal vem aí, cantam "Noite Feliz" seguida de "Silent Night" e emendam "Bate o Sino" em "Jingle Bells". Ensaiam uma música que acabaram de inventar e fala em "Two pães de queijo, five goiabadas, six veadinhos..." Uma professora brasileira e outra neozelandesa dividem as atividades nas duas línguas e, nas prateleiras, "Aurélio" e "Thesaurus" convivem em harmonia.
          A neozelandesa Liz Argue, vinda de um povoado "que tem mais cavalos que gente", ensina as garotas a jogar softball (uma variação de baseball) e diz que a diferença de dar aulas aqui e lá é que as crianças kiwis não dão abraço nem beijo.
          Chama uma das alunas mais beijoqueiras, Danieli Inacio, 9, para me contar, orgulhosa, que está dando aulas de inglês para o pai e outros quatro adultos em casa.
          MASOQUISTAS RURAIS
          No alto da "gin tower" (torre do gim), uma espécie de "lounge" em cima de uma caixa d'água, os neozelandeses partilham o queijo e o vinho conosco, os forasteiros, e curtem a lua cheia do cerrado.
          No violão, Paul Schuler, 47, toca Bob Marley e U2. Grande admirador da dupla sertaneja César Menotti e Fabiano ("César é o Andrea Bocelli brasileiro"), diz que nunca aprendeu a tocar uma música em português porque os brasileiros riam muito toda vez que ele tentava.
          Nas rodinhas de conversa, neozelandeses falam sobre o caráter desbravador de seus nativos e se orgulham de suas mulheres --o país foi o primeiro a permitir o voto feminino. Mas, com tantas mulheres admiráveis por lá, por que acabam se casando com as brasileiras? "Somos masoquistas", brinca Craig. Além dele e de Dave, outro gringo, chamado Gregory, casou com uma local, Cleuza. E até trocou de nome: virou Geraldo.
          É na casa de Gregory/Geraldo e Cleuza que me hospedo. Despensa de fazenda neozelandesa moderna também é diferente. No armário de porta de vidro, tem mistura para fazer iogurtes nos sabores "greek" e "apricot", pó para fazer curry e refresco em pó de laranja. Tudo da Nova Zelândia.
          É de lá, também, que chegam amigos para montar fazendas de leite ali ao lado. Para eles, não é concorrência. "Vamos trocar experiências e desenvolver juntos a tecnologia para produzir um leite cada dia melhor", diz Craig. E, por falar em tecnologia, ali não pega telefone, mas a internet funciona bem quase o tempo todo (apesar de o GPS do meu celular não localizar onde estamos no mapa).
          Simon Wallace, 41, formado em filosofia, diz que eles se sentem "muito bem-vindos na baiano family". "Aqui, achamos pessoas trabalhadoras e inteligentes, ao contrário do que se diz por aí."
          Com o objetivo de produzir o "futuro do leite de alta qualidade no Brasil", ele vive solto como as vacas: passa 300 dias por ano na fazenda e há dez anos não sabe o que é ter que trancar a casa ou o carro. Nem o que é ter que ir ao supermercado, à padaria ou sacolejar numa estrada de terra para tomar um bom leite.

          "Programas educativos buscam massificação", diz Daniel Azulay

          Folha de São Paulo - Serafina


          DE SÃO PAULO

          1976
          1. Fazer programa artesanal era uma pedreira
          2. Programas educativos buscavam excelência
          3. A turma do Lambe-Lame era presente
          4. Ter pincel mágico significava sonhar sem limites
          5. Audiência traço causava indiferença: todo mundo assistia!
          6. Criança que não desenhava passava a infância em branco
          7. Construir brinquedo com sucata me dava inspiração
          8. Viver como um personagem era estar no coração das crianças
          9. Ser artista plástico me despertava sempre novas idéias
          10. Brincar em serviço era tão bom e eu ainda recebia por isso
          11. Flashbacks conseguiam viajar no tempo
          *
          2012
          1. Fazer programa artesanal é boa tecnologia ao alcance
          2. Programas educativos buscam massificação
          3. A turma do Lambe-Lambe é um presente para os pais
          4. Ter pincel mágico significa... um pincel e um mágico
          5. Audiência traço causa cancelamento do programa
          6. Criança que não desenha passa o dia no videogame
          7. Construir brinquedo com sucata me dá saudade
          8. Viver como um personagem é fazer parte de uma segunda geração
          9. Ser artista plástico me desperta para o uso de novas tecnologias
          10. Brincar em serviço é tão bom que eu continuo recebendo
          11. Flashbacks conseguem dar saudade

          'Caribe brasileiro' no coração da Amazônia tem povo amigável e praias de água doce

          Folha de São Paulo - Serafina


          KARLA MONTEIRO
          DE ALTER DO CHÃO

          Alter do Chão é o portal. O vilarejo pitoresco, suarento, sem pressa, com pouco mais de 5.000 habitantes, a 33 quilômetros de Santarém, no Pará, despeja os visitantes num enrosco de três rios: o Tapajós, o Arapiuns e o Amazonas.
          O primeiro é verde-mar. O segundo, cor de Coca-Cola. E o terceiro, café com leite. Todos tão volumosos que dão a impressão de nunca acabar. Até um acabar no outro.
          Foram três dias e três noites serpenteando águas num barco-gaiola, embarcação típica da Amazônia: uma casinha de madeira flutuante, com quartos, cozinha, sala e varanda com redes.
          Navegar é a única maneira de desfrutar a região. E há duas alternativas: alugar um barco e torná-lo a sua pousada ou fazer de Alter do Chão a base, indo e voltando para lá diariamente.
          O vilarejo não tem muitas opções. Dois hotéis confortáveis, mas sem estrelas: Belo Alter e Mirante da Ilha. E um restaurante com pratos elaborados: o Arco-Íris, na praça principal.
          A melhor pedida é mesmo arrendar uma embarcação com cozinheira a bordo. E zarpar.
          SEM MOSQUITO
          Os dias nas redondezas de Alter descortinam uma paisagem tão deslumbrante que dispensa luxos: pontas de areia branca invadindo as águas muito mornas, igarapés de águas geladas, gaivotas pescadoras, botos saltitantes.
          Os mergulhos nos rios são redentores, embora tenha que se prestar atenção nas arraias, que apavoram até os nativos. Mais seguros --e refrescantes-- são os igarapés.
          A grande bênção desse canto da floresta é não ter mosquitos. Segundo os locais, isso acontece por causa do nível de acidez das águas do Tapajós. Mas o motivo pouco importa.
          De noite, depois de um jantar a bordo --um tambaqui, um pirarucu ou um tucunaré assado, regado ao molho de tucupi, iguaria feita de mandioca, acompanhado de farinha-d'água--, a imbatível opção é se estender na rede sob o céu inchado de estrelas e ouvir o matraquear da floresta.
          Não foi à toa que essa parte da Amazônia ganhou o apelido de "Caribe brasileiro" e foi eleita pelo jornal inglês "The Guardian" a praia de água doce mais bonita do mundo.
          Alter do Chão é um paraíso que começa a entrar no radar dos turistas mais aventureiros.
          E não é apenas a natureza exuberante que carrega para lá cada vez mais gente. Estima-se que o número de visitantes tenha aumentado cerca de 80% nos últimos três anos. Alter entrou para o rol de um novo tipo de turismo, que surgiu na esteira do ecoturismo.
          "A ideia é trazer renda para as comunidades ribeirinhas, para que não precisem mais explorar a floresta de modo predatório, e proporcionar ao turista uma outra experiência", explica Maria Teresa Junqueira, 35, da Turismo Consciente, a primeira agência brasileira especializada no turismo de base comunitária.
          E ela, que capitaneou o Projeto Vaga-Lume, responsável pela instalação de mais de cem bibliotecas na região amazônica, garante: "Não existe nada melhor do que o contato real com as pessoas daqui".
          No meio do caminho, numa beira de rio, no povoado de Jamaraquá, encravado na Floresta Nacional do Tapajós, encontramos duas pessoas de lá: Pedro da Gama Pantoja, 63, o seu Pedrinho, e dona Conceição, 59. Eles nasceram e se criaram por ali, são avós de 11 netos e estão aprendendo um novo ofício: hotelaria rústica.
          "Com a criação da reserva, em 1974, nós ficamos sem meio de vida. Só podia agricultura de subsistência", conta seu Pedrinho. "Aí, chegou uma ONG e falou pra gente que a opção era se preparar para o turismo."
          Seu Pedrinho e dona Conceição fizeram exatamente isso. Transformaram sua cozinha num restaurante e construíram uma grande cabana de dois andares no quintal, para abrigar os visitantes que topam dormir em redes.
          PÓS LUXO
          Três casais de alemães, dois casais de suíços, um casal de franceses, um casal do Rio de Janeiro e três garotos de Berlim dividem a maloca do seu Pedrinho, com teto de palha, sem paredes.
          "Luxo nós temos em Genebra. Aqui, queremos simplicidade. Talvez um ventilador, mas só isso", diz a suíça Rebecca Dal Riou, 34, usando um vestido Balenciaga para comer peixe com farinha no almoço.
          Enquanto limpa o tambaqui do jantar, dona Conceição conta que os turistas começaram a chegar em 2000, depois que os moradores dos vários povoados espalhados pela floresta e pelo baixo Tapajós haviam passado por treinamentos oferecidos pela ONG Saúde e Alegria, uma das primeiras a atuar na região, e pelo Ibama.
          "Fizemos cursos de como receber, como transportar, como guiar pela floresta, como mostrar o artesanato, como transformar a nossa cultura em atrativo", ela diz.
          Subindo e descendo rios, os rostos e mãos revelam uma riqueza cultural do tamanho da floresta: o preparo da farinha, a extração do óleo da andiroba e da copaíba, a extração do látex, a manipulação do couro vegetal e da borracha, o trabalho de marchetaria, a feitura do artesanato. Cada povoado, uma história.
          Numa encosta do rio Arapiuns, no povoado de Urucureá, um grupo de 23 mulheres criou a TucumArt, cooperativa para produzir e vender o artesanato feito da palha de tucumã.
          "Já chegamos a vender R$ 5.000 num mês. Toda semana vêm turistas. Melhorou muito. O dinheiro ajuda na alimentação, no remédio. Antes, a gente vendia o produto baratinho nas feiras de Santarém", diz Rosângela Castro, 44.
          Sua colega de associação, Eunice de Oliveira, 36, completa: "Aprendi com a minha mãe que aprendeu com a minha avó. Minha filha de dez anos já tece a palha. Nossa realidade é diferente da de vocês. A gente vive com o rio, com a floresta, com os bichos. Vocês têm um saber, nós temos outro. A troca é boa para todo mundo, não?" Ô, se é.

          Restaurador do 'art déco' de Miami cria novo polo da moda na cidade

          Folha de São Paulo - Serafina


          SILAS MARTÍ

          DE MIAMI

          No meio de um coquetel, Craig Robins sobe na mesa. Seus convidados se calam, taças de champanhe tinindo na luz baixa de seu escritório em Miami. De terno creme, ele dá as boas-vindas a amigos do bairro e começa a mostrar imagens do que será sua mais nova aventura comercial na cidade onde nasceu --o projeto de transformar quadras do centro um tanto letárgicas em uma meca da moda e do design.
          Craig, 49, tem uma semelhança estranha com o ator John Malkovich: magro, careca de cabeça raspada e olhar magnético. E também não são poucos os que gostariam de ser Craig Robins. Ele é o empresário responsável pelo que chamam de "renascimento do estilo" no balneário americano, o homem que transformou o antes combalido trecho de South Beach em brilhantes joias arquitetônicas art déco.
          Depois de estudar em Barcelona nos anos 1980, Craig tentou aplicar a lógica de transformação que observou na cidade espanhola à terra natal. Formado em belas artes e direito, ele pôs mãos à obra para restaurar as construções tradicionais de Miami Beach e revender para hotéis de luxo. "Gosto de construir bairros", contou à Serafina. "Nunca penso num projeto como sendo só um prédio, sempre penso no bairro inteiro, no que vai fazer aquilo valer mais."
          Luciano Schmitz sob foto de Martien Mulder
          Craig Robins, que fez de South Beach bairro Art Déco de Miami, quer transformar pedaço abandonado da cidade em reduto da moda
          Craig Robins, que restaurou art dèco de Miami, quer criar novo reduto da moda em pedaço abandonado da cidade
          Terminado o projeto em South Beach, cruzou a ponte para a Miami continental e comprou 13 das 18 quadras do bairro ao norte do centro da cidade. Um lugar antes ocupado por fabricantes de móveis, a área virou um deserto imobiliário depois que as marcas migraram para shoppings. Ele decidiu trazer todas de volta, dando descontos generosos nos aluguéis, e lançou ali há sete anos uma feira dedicada ao design, prima da gigante Art Basel Miami Beach. Seu mais novo projeto é uma parceria com um grupo imobiliário que tem entre os sócios a LVMH, holding das marcas Louis Vuitton, Givenchy, Marc Jacobs e Fendi, entre outras.
          "Pensei que, se houvesse arte, comida e design no mesmo lugar, a moda poderia tornar isso mais interessante ainda", diz Craig. "O mercado local estava faminto por novas locações, e Miami é também a porta de entrada para a América do Sul e o Caribe. Fizemos um projeto que preserva o caráter histórico do bairro e ao mesmo tempo deixa espaço para uma expansão."
          No rastro de marcas como Maison Margiela, Marni e Christian Louboutin, já estão migrando para o bairro Prada, Louis Vuitton, Céline, Cartier e Dior Homme. O empresário também trouxe guindastes imensos para plantar pés de mirtilo já adultos ao longo das vias comerciais e no topo dos prédios, estabelecendo a flora para a fauna de endinheirados que quer atrair.
          "Miami é o futuro", exalta. "É uma cidade jovem, que está se desenvolvendo e crescendo com rapidez. Ainda é um lugar divertido, mas também serve para fazer coisas sérias."

          Roupas de fim de ano seguem apenas uma tendência; ficar bonita

          Folha de São Paulo - Serafina


          VIVIAN WHITEMAN

          DE SÃO PAULO

          Dezembro é mês de festa. Natal, Ano-Novo, formaturas, baladinha "da firma" etc. A indústria da moda comemora: a roupa festiva é, ao lado dos vestidos de noiva, um dos nichos que mais cresce no mercado.
          Coquetel, "black tie" ou traje passeio, não importa o "dress code". A palavra-chave das moças em busca de um modelo de festa é só uma: bonita.
          Conceito não tem vez nessa hora. Para o inferno com as tendências: o que elas querem é arrasar com a tacinha na mão e sair belas nas fotos.
          A expressão para definir esse "look", calculado para atrair olhares, é "roupa de bonita". Também vale para maquiagem, que vira "make de bonita".
          Mas de que beleza estamos falando? É possível admirar uma roupa cheia de estranhezas, como as criações da Comme des Garçons, para dar um exemplo óbvio. Porém, quando o assunto é roupa de bonita, os exercícios de construção dos maiores estilistas do mundo não valem nada.
          A regra da roupa de bonita é clara. Nada de volumes esquisitos. Nem ornamentos bizarros. Muito menos comprimentos que achatam. São bem-vindos vestidos que alongam e emagrecem, estilo diva do "red carpet", belos decotes, cinturas marcadas, saltos altos.
          Algumas grifes que não estão nas semanas de moda entenderam essa demanda e estão se dando bem. Patrícia Bonaldi, Lethicia Bronstein e Barbara Bela estão entre as preferidas das festeiras que podem desembolsar algo em torno de R$ 3.000 por um modelito bordado, ajustado e feito para arrasar.
          As clientes dessas marcas são atrizes globais de primeiro time e socialites. Gente que também consome importados, mas que encontrou nessas grifes um tipo de produto nacional adequado às necessidades das... "bonitistas"!
          Interessante notar que nenhuma delas é de São Paulo. Lethicia é carioca. Patricia e as meninas da Barbara Bela, mineiras. Minas, aliás, tem um caso de amor com a roupa das bonitas. O segredo, ao que parece, está na capacidade de enfeitar os modelos segundo a expectativas das clientes.
          Sim, porque, em geral, a roupa que uma "linda" procura não é minimalista. A não ser que ela tenha um set de joias de rainha na manga. Do contrário, paetês, perolazinhas, renda e outros babadinhos são bem-vindos. Os minivestidos com ornamentos que misturam brilho e romance são hits absolutos. Os longos esvoaçantes e com efeito moça esbelta, idem.
          A roupa de bonita, assim descrita, pode parecer careta. Talvez seja, para quem acha que o espírito "fashion" só se manifesta em termos de Lady Gaga ou da editora de moda italiana Anna Dello Russo, da "Vogue".
          O fato é que se trata de um tipo de "look" que funciona para quase todo tipo de festa. Mas, acima disso, a roupa de bonita é um imã de olhares de cobiça, luxúria e inveja, elementos tão essenciais no jogo da moda quanto agulha e linha.
          Ilustração: Caco Neves
          Para o inferno com conceitos e tendências; as ropuas do fim do ano seguem apenas uma regra: deixar as moças lindas
          Para o inferno com tendências; ropuas do fim do ano seguem apenas uma regra: deixar as moças lindas

          O juízo Final! - André Sant'Anna

          Folha de São Paulo

          IMAGINAÇÃO
          PROSA, POESIA E TRADUÇÃO
          O Juízo Final!
          ANDRÉ SANT'ANNA

          EU NÃO DISSE que ia voltar para o Juízo Final? Então cá estou, homenzinhos! Sei até que aquilo foi uma maluquice que deu na minha cabeça, quando comecei a falar em amor, em perdão, em um deus de amor e de perdão, que é o Deus! O Deus único! O Deus pai! O Deus meu pai! O Deus eu! Uma maluquice que me deu! Um amor imenso por todas as coisas que há!
          Aquela maluquice que me deu de insistir com aqueles primitivos dos tempos em que eu, filho de Deus, passei pela Terra, que eles, os primitivos que apedrejavam adúlteras, que torturavam e crucificavam filhos de Deus com incrível naturalidade, não deveriam ficar, lá, julgando os outros, apedrejando os outros, crucificando os outros, fazendo de tudo para que todas as pessoas que há sejam sempre infelizes, inclusive eles próprios, os primitivos apedrejadores de adúlteras!
          Com tanta infelicidade em seus coraçõezinhos, tanto ressentimento recalcado, os infelizes não só me torturaram muito, não só me botaram na cruz, como também, logo a seguir, foram deturpando as minhas ideias, até transformarem o Filho de Deus, o próprio Deus, eu, numa espécie de inspetor de alunos, de bedel de colégio de padres, de freiras, essas parada!
          Sim! Os selvagens primitivos apedrejadores de adúlteras abandonaram o amor! Abandonaram o perdão! Abandonaram o desapego material! Os mendigos! Os leprosos! As adúlteras! Os lírios do campo! As criancinhas! Sim! O Bem! Tudo! Deixaram tudo de lado: aquela maluquice toda, aquela parada meio hippie, meio comunista, meio maluca, aquela parada de sermos todos irmãos, iguais em importância! E o coitado do Deus, o pobre de mim, Jesus, fui transformado em mero guardião da masturbação alheia, em vil controlador do comprimento da saia das moças! O pobre maluco de mim, Cristo, acabei pintado pelos detratores como um caretinha falso moralista que proíbe tudo! Que proíbe inclusive o amor! Que proíbe principalmente a felicidade!
          Mas esse Jesus de vocês, ainda muito primitivos, selvagens, recalcados, esse caretinha, bedel, controlador, inspetor, proibidor, não sou eu, Jesus de verdade! Não sou eu, Jesus do amor! Esse Jesus caretinha, na verdade, sim, meus amigos, é o próprio Capeta, o Deus do Dinheiro, o Deus da Caretice! Por mil demônios!
          Então, a brutalidade de vocês, selvagens primitivos caretas adoradores do dinheiro, sem nenhum amor ao próximo, sem nenhuma capacidade de perdoar, predominou sobre a Terra!
          Ficou tudo invertido!
          Os criadores do Jesus Capeta Careta, selvagens descendentes daqueles primitivos que apedrejavam mulheres e torturavam filhos de Deus na cruz, venceram e convenceram toda a humanidade, que é formada em sua esmagadora maioria por indivíduos primários, violentos, possuídos por toda espécie de recalques e ressentimentos profundos inconscientes, de que o importante não é olhar os lírios do campo, que são cobertos de beleza e glória mesmo não se preocupando em acumular riquezas, roupas douradas, bens materiais, enfim! Não! Para os capetas caretas acumuladores de ouro, o importante é justamente o contrário! Os brutos convenceram os imbecis, vocês, de que o importante é ter muito dinheiro, é dirigir aqueles automóveis com vidro preto para que os mendigos, os leprosos, as adúlteras, os filhos de Deus, não possam olhar vocês nos olhos, a cara bem barbeada de vocês, adoradores do Bezerro de Ouro!
          Convenceram os energúmenos de que o importante, o respeitável, é usar gravatas! Sim! Gravatas!
          Que contradição paradoxal insolúvel! O Homem de Bem, construído pelos primitivos sem amor, esses que estão sempre usando o meu nome em vão, é justamente aquele cara caretinha, com aquele cabelo arrumadinho e... gravata! Enquanto que os considerados inimigos do bem e da respeitabilidade são esses humanos meio esquisitos, malucos, meio mal vestidos, meio cabeludões que não se preocupam muito com a própria aparência, igual aos lírios do campo, sem carro, sem cartão de crédito!
          Os considerados pecadores, desde a ressurreição do deus que ama e perdoa, no caso eu, modéstia à parte, acabaram sendo exatamente esses caras meio parecidos comigo, Jesus do amor, cabeludo meio hippie, meio mendigo, meio comunista, com esta mania meio hippie, meio comunista, meio maluca, de repartir o pão e compartilhar o amor!
          Vocês, primitivos selvagens idiotas tapados, não têm mesmo salvação. Vocês usaram muito mal o livre arbítrio que Deus, no caso eu, modéstia à parte, lhes deu! Vocês optaram pela moral hipócrita, pela autoimportância, pela perseguição cruel aos diferentes, os maluco! Vocês realmente acham que são os favoritos de Deus, se acham melhores do que um macaco, um cão, uma barata, um verme! Vaidade! Arrogância! Vocês vão todos para o Inferno, canalhas!
          Hoje, apenas uma meia-dúzia vai subir ao Reino dos Céus! Justamente esses que foram perseguidos, humilhados, proibidos! Os diferentes! Os mendigos! Os leprosos! As prostitutas! As criancinhas pobres maltratadas! Os que não sabem dar o nó na gravata! Os que andam a pé! Ah! Eu sou maluco! Viva os maluco!
          Bye bye, baby, bye bye!
          Bum.

            Memórias que viram histórias

            Folha de São Paulo


            ARQUIVO ABERTO

            O mistério de Burroughs
            Lawrence, Kansas (EUA), 1991
            RODRIGO GARCIA LOPES

            EU COLHIA ENTREVISTAS para meu livro "Vozes e Visões" (Iluminuras, 1996). Estava morando no Arizona, fazendo mestrado sobre William Burroughs (1914-97). Cheguei a Lawrence, Estado do Kansas, no Meio-Oeste americano, onde o legendário escritor morava desde 1981. James Grauerholz, seu amigo e agente literário, foi me pegar na estação de trem. Senti um frio na barriga. Afinal, iria entrevistar o profeta da contracultura, o genial fora da lei da literatura, que fez a cabeça de Jack Kerouac e Allen Ginsberg e detonou uma revolução nas letras americanas.
            James percebeu minha ansiedade e disse que tudo daria certo. Quando chegamos, Burroughs já nos esperava na varanda de sua casa. Magérrimo, usando um elegante chapéu Fedora, nos acenou com sua bengala e sorriu.
            Extremamente educado, bem-humorado, paciente e atencioso, em poucos minutos ele desmontou a imagem que eu fazia dele. Relaxei. Comentou que acabara de voltar do Canadá, onde fora acompanhar as filmagens de "Mistérios e Paixões" (baseado em "Almoço Nu", seu livro mais conhecido), dirigido por David Cronenberg.
            Impossível ficar indiferente à voz de Burroughs: metálica, arrastada e que ainda carregava o sotaque sulista de Saint Louis. De olhos azuis, o neto do inventor da máquina de calcular tinha um tique nervoso: repuxava um canto da boca enquanto falava. Ainda escrevia todos os dias. Disse que a casa estava sempre cheia de amigos e que saía cada vez menos, a não ser para dar alguma palestra ou para praticar tiro e pintar na propriedade de um amigo (as famosas "pinturas a tiro" que ele inventou; veja vídeo em bit.ly/shotgunpaint).
            Sentamos na sala. Liguei o gravador. Começamos pela literatura. Falou de seus escritores favoritos (Conrad, Eliot, Proust, Rimbaud). Discutimos "o fim do romance", as vanguardas do começo do século 20 e os "cut-ups", técnica de "recortagem textual" que ele usou, sobretudo nos anos 60, para desconstruir o romance tradicional. "Hoje nós já vemos em 'cut-up'! A vida é um 'cut-up'. Toda vez que você olha pela janela ou caminha pela rua, sua consciência esta sendo editada por fatores do acaso."
            Durante a entrevista, que durou cerca de duas horas, ele fumou um cigarro atrás do outro (Player's Navy Cut, sem filtro). Levantava-se a cada 15 minutos, ia até um balcão que havia na cozinha. Erguia uma garrafa de dois litros de Coca-Cola, se servia e voltava. "Burroughs bebendo Coca-Cola?", pensei.
            Com seu raciocínio rápido e certeiro ele ia falando sobre os temas que eu colocava: linguagem, manipulação da mídia, conservadorismo, Aids ("uma invenção de laboratório"). Falou sobre o valor do acaso na criação artística, drogas, sonhos. Ao falarmos sobre as diferenças entre prosa e poesia, disse algo que se encaixa à perfeição na poesia brasileira atual. "Eu costumo dizer que a maioria dos poetas é essencialmente de prosadores preguiçosos". Pergunto sobre extraterrestres. "É bem possível que existam alienígenas vivendo entre nós. Tenho um amigo que tem contato com essas gangues".
            Uma coisa me intrigava: durante a entrevista, em vez de ficar cansado, Burroughs ia estava cada vez mais animado e falante. Quando ele foi a seu escritório pegar algumas pinturas para me mostrar, aproveitei e fui até a cozinha. Embaixo do balcão, ao lado da Coca-Cola, havia uma garrafa de vodca quase vazia. Mistério explicado.
            Burroughs voltou com várias de suas pinturas abstratas e me presenteou com uma delas. Colocou-as sobre uma cadeira, acendeu um cigarro e me perguntou sobre o que eu conseguia ver. Então fizemos algumas fotos. Uma delas, em parceria. Fomos até o quintal, onde ele me mostrou com orgulho sua horta de tomates. Havia vários gatos (uma de suas paixões). Quando fui embora, eu ainda me beliscava. A sensação era a de que acabara de entrevistar um extraterrestre. E talvez tenha mesmo.

              Suzana Singer [Folha Ombudsman]

              Folha de São Paulo


              Espalhar o medo

              Noticiário exagerado de tragédias com crianças alimenta, sem necessidade, os temores dos pais

              Bernardo, 3, se afogou em uma aula de natação. Luiz, 4, ficou paraplégico em um acidente de carro porque não estava na cadeirinha. Os gêmeos Pedro e Lucas, de um ano e meio, morreram na piscina de casa.


              As tragédias acima, publicadas com grande destaque na Folha nas últimas duas semanas, parecem uma série de terror para pais de crianças pequenas, seres já naturalmente assustados.


              Os relatos dos dramas foram acompanhados por números fortes como "seis crianças morrem em piscinas por mês" ou "só 57% usam o equipamento de segurança para transportar menores". Faltava apenas um aviso piscando: "Cuidado! Pode acontecer com você".
              Reportagens que servem de alerta raramente são criticadas, porque são consideradas de "utilidade pública", são lembretes sobre os cuidados que devem ser tomados no cotidiano ("Faça cerca ao redor da piscina", "Use a cadeirinha mesmo se for até a esquina", "Não deixe crianças desassistidas na água").


              O problema é que esse noticiário, que hipervaloriza o improvável, provoca o desagradável efeito colateral de disseminar o pânico.
              É possível diminuir essa sensação dando a cada ocorrência sua devida dimensão. No Brasil, houve 76 mortes de crianças por afogamento em piscina em 2010 (último dado disponível). Só para comparar: por sufocamento provocado pelo próprio vômito, houve praticamente o triplo de mortes (226).


              Considerando o número total de crianças de até 14 anos, o risco de um afogamento em piscina acontecer é de 0,00016% -ou menos de 2 em 1 milhão, segundo cálculo feito por Marcelo Soares, do blog "Afinal de Contas".


              Não significa que essas histórias devam ser menosprezadas, já que a meta deveria ser que nenhuma criança morresse em um ambiente controlado como uma piscina -ou que sofresse sequelas evitáveis de um acidente de trânsito.


              Mas o jornal poderia publicar dados que relativizassem os riscos, uma espécie de "botão antipânico". Reynaldo Gianecchini, jovem e atlético, recebeu um diagnóstico de linfoma não Hodgkin? O jornal conta a sua saga, mas informa que a incidência desse tipo de câncer é de 1 em cada 10 mil homens na faixa etária do ator (de 35 a 39 anos).
              Uma garota foi morta com um tiro na nuca em Higienópolis? Tem que noticiar, mas não custa citar a incidência de assassinatos por morador no bairro.


              Um franco atirador abriu fogo em uma escola primária nos EUA? Aconteceu anteontem, foi terrível, mas não será por isso que as crianças americanas estarão mais seguras em casa ou na rua.


              No livro "Risco: a Ciência e a Política do Medo" (Odisséia Editorial, R$ 39,90), o jornalista canadense Dan Gardner calculava que a probabilidade de um estudante americano ser assassinado na escola era de menos de 1 em 1,5 milhão, um risco "quase zero".
              Ele alerta para as consequências de um noticiário exagerado dessas tragédias. A sensação de que as escolas viviam em estado de guerra, especialmente depois do massacre de Columbine (1999), levou muitas instituições de ensino a gastar mais com segurança (detectores de metais, câmeras e guardas), em vez de, por exemplo, investir em livros ou na reforma de prédios.


              "É um círculo vicioso. A mídia reflete o medo da sociedade, mas, ao fazer isso, ela gera mais medo, e isso se reflete de volta na sociedade", escreve Gardner.


              Contrapondo alguns números às emoções das tragédias, o jornal poderia amenizar o efeito das más notícias na ansiedade coletiva. 
              -
              Na contramão do medo, a Folha ajudou, na terça-feira passada, a incutir esperanças indevidamente em pais de crianças doentes. O título principal de "Saúde" anunciava que "Leucemia tem nova opção de tratamento". Abaixo, uma foto bonita de uma menina de sete anos curada nos EUA.
              A reportagem, traduzida do "New York Times", mostrava corretamente que se trata de uma terapia que começa a ser testada em humanos. Apenas 12 pacientes, em estágios avançados da doença, foram submetidos à nova técnica que usa um retrovírus desativado.
              "Ainda não é uma opção de tratamento. É um estudo em fase 1, experimental", explica o oncologista pediátrico Antonio Sérgio Petrilli, do Graacc. Ele diz que pacientes o procuraram para perguntar sobre o tratamento depois de ver a notícia. 

              Passagens para o século 21 [a arte e a critica no Brasil]

              Folha de São Paulo

              CRÍTICA
              A arte e a crítica no Brasil
              RESUMO As trajetórias paralelas do crítico Lorenzo Mammì e do pintor Paulo Pasta flagram o amadurecimento tardio da arte contemporânea brasileira e do país. Em livros de ensaios e de textos de cunho pessoal, ambos discutem esse processo em face dos legados artísticos americano e europeu e do mercado de arte globalizado.
              MILTON OHATA
              LORENZO MAMMÌ desembarcou no Brasil em 1987, com uma bagagem a que não estamos acostumados. Eram muitas malas, cheias de arte, literatura, filosofia e música.
              O olhar especialmente dotado de Mammì -nascido em Roma, em 1957, e formado em Florença- vem da linhagem de críticos italianos como Lionello Venturi (1885-1961), Roberto Longhi (1890-1970) e
              Giulio Carlo Argan (1909-92), num ambiente onde há séculos a beleza da arquitetura e das obras de arte está à vista das pessoas.
              Meio estrangeiro, meio brasileiro, como Sérgio Milliet (1898-1966), paulistano formado na Europa, e Theon Spanudis (1915-86), turco de origem grega radicado em São Paulo, ele em breve se tornou uma presença decisiva no ambiente artístico da cidade. Como Milliet e Spanudis, não só escreveu sobre cultura mas teve papel fundamental na consolidação de instituições, como o Centro Universitário Maria Antonia, da USP, onde se aglutinou toda uma nova geração de artistas e críticos.
              "O que Resta - Arte e Crítica de Arte" [Companhia das Letras, 416 págs., R$ 59,50] reúne ensaios e textos de intervenção que cobrem toda essa trajetória. Antes de tudo, a prosa do autor é de se tirar o chapéu, a erudição fica à vontade no contato íntimo com as obras e é vertida em frases de elegância e clareza modelares.
              Como o de seus colegas de ofício Ronaldo Brito e Rodrigo Naves, trata-se de um ensaísmo de alto valor literário. Creio que muito de sua têmpera vem da atuação em um momento único de adensamento e desprovincianização da arte brasileira, presente nos vários textos da seção "Ocasiões", não por acaso a mais extensa do livro.
              Quando Mammì começou a publicar, Volpi, Lygia Clark, Willys de Castro e Mira Schendel acabavam de morrer, Sérgio Camargo partiria pouco depois, Franz Weissmann, Iberê Camargo, Amílcar de Castro e Eduardo Sued estavam em plena maturidade e novas gerações se afirmavam (com Waltercio Caldas, Cildo Meirelles, José Resende e Tunga) ou despontavam (com Paulo Pasta, Nuno Ramos, Laura Vinci e Elisa Bracher), em rica interação com as anteriores.
              A análise de cada um desses artistas é feita em triangulação com o domínio amplo da arte europeia e da americana, mas as remissões nunca têm mão única e ressaltam, quando existe, a originalidade das soluções brasileiras para questões surgidas nos grandes centros.
              GRANDE EFEITO Ainda que o conjunto não tenha seguido um plano predeterminado e muito menos possua a intenção de delinear uma história, é possível divisar nele a coesão de uma matéria específica. O esquema geral busca identificar uma dinâmica interna na arte brasileira e, nesse sentido, é semelhante ao que Lucio Costa, Antonio Candido, Decio de Almeida Prado e Paulo Emilio Salles Gomes formularam para a arquitetura, a literatura, o teatro e o cinema (a palavra-chave aqui é formação).
              Como diz o autor, em texto sobre Jac Leirner para a Bienal de Veneza de 1997, "a arte brasileira parece refratária a qualquer sedimentação de valores formais, qualquer ordenação do mundo mediante generalizações. Tudo nela se torna fluido e instável. [...] Esse caráter oscilante e contraditório, pelo qual o ato formador não se fixa nos objetos, mas desliza neles como um líquido sobre uma superfície impermeável, remete a outras linhas fundamentais da cultura brasileira: a ideia de uma civilização que não progride, não acumula, mas apenas estratifica[...]. O grande feito dos principais artistas das décadas de 1950 e 1960 é ter conseguido construir uma poética dentro dessas questões, e não apesar delas, numa época em que as utopias do modernismo e a concepção linear da história estavam entrando em crise. Isso fez com que a arte brasileira daqueles anos participasse do debate artístico internacional com uma contribuição original, que ainda não foi plenamente avaliada".
              Esse período e seus desdobramentos no presente são o tema de um dos melhores ensaios do livro, "Encalhes e Desmanches: Ruínas do Modernismo na Arte Contemporânea Brasileira", em que se percebe claramente que as soluções originais do neoconcretismo foram retrabalhados em outra chave pelas gerações seguintes.
              "A Educação pela Pintura" [WMF Martins Fontes, 184 págs., R$ 45], do artista plástico Paulo Pasta, mostra esse processo coletivo a partir de dentro -não é gratuita a imagem de seu ateliê na capa do livro. Pasta é o pintor dos tempos longos da memória. Em suas telas, associando tinta e cera, a intensidade da cor mais aparece do que é ("Uma cor 'passa' assim como uma fruta 'passa'", escreve Pasta).
              A própria ideia de "educação" pressupõe a de acúmulo lento e progressivo ("O que busco é justamente evitar que o desejo se precipite de imediato em projeto").
              O título parece se referir também a Friedrich Schiller e seu "A Educação Estética do Homem" (1795), tentativa de integrar razão e emoção, ética e felicidade. Mas "educação", aqui, é sobretudo "relação produtiva com o passado".
              Assim, faz todo o sentido que Pasta abra seu livro com ensaios sobre dois mestres, um brasileiro e um francês, na aparência tão diferentes dele mesmo. Para Iberê Camargo, o passado "seria uma condenação, mas, ao mesmo tempo, a única forma de poder existir".
              Na pintura de Matisse, Pasta encontra um ideal de harmonia que decorre no entanto de um trabalho árduo, a partir da tradição. "Ele não queria diminuir o poder de nenhum dos elementos da pintura."
              Em bonitos depoimentos pessoais e textos sobre os pintores e escritores de sua predileção, Pasta toca discretamente em todas as questões do livro de Mammì: como e por que continuar pintando em um contexto em que a arte não resiste mais a um mundo acelerado, saturado de imagens e dominado pela lógica da mercadoria?
              MAL-ESTAR Nos últimos anos, a globalização e a abertura da economia brasileira pegaram no contrapé a dinâmica interna pressuposta nos livros de Mammì e Pasta.
              A arte brasileira passa a ser valorizada de fora, por outros critérios. Nosso ambiente tem hoje mais artistas, mais mostras, mais público, mais livros, mais mídia, mais circulação internacional e mais dinheiro. "A arte é um abre-alas, e a gente vem atrás fazendo negócios", como resumiu o ex-banqueiro e colecionador Edemar Cid Ferreira.
              Um certo mal-estar tomou conta de uma geração brilhante de críticos, formados na sinergia com os artistas que havia valorizado -o grupo do Rio, com Paulo Sérgio Duarte e Ronaldo Brito à frente; o de São Paulo, com Rodrigo Naves, Alberto Tassinari e Sônia Salz-
              stein. Em "O Vento e o Moinho" (2007), livro que possui muitas afinidades com "O que Resta", Naves assume explicitamente o mal-estar diante do encontro da arte brasileira com o mercado internacional.
              Mas a interrupção de uma dinâmica local não faz de Mammì um catastrofista diante do liquidificador da mercadoria. Essa nova situação, em que arte e crítica de arte se dissociam, recoloca as perguntas de Argan ao constatar que a passagem de bastão da arte europeia para a americana, especialmente o pop, significava o fim de um processo histórico. Em suma, a arte perdia uma autonomia que tinha raízes no Renascimento e se misturava ao mundo. Se arte e mundo são a mesma coisa, qual a razão de ser da crítica?
              Na mesma época, com formulações e respostas diferentes, Arthur C. Danto e Hans Belting também faziam essa pergunta. Essa é, no fundo, a questão da primeira parte do livro de Mammì, "Narrativas".
              O que resta para a arte é bem pouco, mas seria necessário afiar a crítica e olhar com curiosidade para novas tendências. Mammì tem uma visão original a respeito, que não faz tábula rasa do passado e, muito ao contrário, mobiliza-o novamente.
              A prova está no ensaio mais longo e denso do livro, "As Bordas", complementado por "Isto, Aquilo e o Valor Disso", em que o autor estabelece um novo paradigma crítico a partir da relação da obra de arte com o espaço em que se coloca.
              A ideia de "fim da arte" (ou de sua autonomia) é relativizada numa análise rigorosa e aberta que, sem deixar de pressupor a história e a geografia da arte como as conhecemos, é a um só tempo linear e circular, agregando conhecimentos de natureza técnica, histórica e cultural, num impressionante arco de tempo que vai das grutas de Lascaux à atual proliferação das imagens na internet.
              A análise de cada um desses artistas é feita em triangulação com o domínio amplo da arte europeia e da americana, mas as remissões nunca têm mão única
              O que resta para a arte é bem pouco, mas seria necessário afiar a crítica e olhar com curiosidade para novas tendências. Mammì tem uma visão original, que não faz tábula rasa do passado

                Diálogos de além-mar - Isabel Coutinho

                Folha de São Paulo

                DIÁRIO DE LISBOA
                O MAPA DA CULTURA
                Diálogos além-mar
                Valter Hugo Mãe "concebeu" Nino Cais
                ISABEL COUTINHO
                A CULPA É DAS mulheres-a-dias. Esta é a história de um encontro transatlântico, que juntou o escritor Valter Hugo Mãe e o artista plástico brasileiro Nino Cais, que parece ter nascido de um dos romances do português, aquele que conta a história de Maria da Graça e Quitéria, duas mulheres-a-dias (ou domésticas) do norte de Portugal. Foi isso que Hugo Mãe sentiu quando visitou a 30ª Bienal de São Paulo e viu a arte de Nino Cais.
                "Além da empatia imediata, tive a noção de que era a cara perfeita de 'O Apocalipse dos Trabalhadores'. Era um artista que parecia ter nascido dentro do meu livro", conta. "Com o seu universo íntimo e, ao mesmo tempo, doméstico, é uma versão plástica do meu livro."
                O escritor convidou o artista a desenhar a capa da edição brasileira de "O Apocalipse dos Trabalhadores", seu único romance ainda não publicado no Brasil, que a Cosac Naify pretende lançar em março. Quis também que o brasileiro concebesse um retrato seu.
                No dia seguinte a ter recebido o Grande Prémio Portugal Telecom de Literatura 2012, em São Paulo, Valter Hugo Mãe foi ao ateliê de Nino Cais ver o projecto que o brasileiro concebeu como "um padrão que acaba sendo quase uma colcha de retalho e remete ao lugar do aconchego da memória". Naquela manhã, Nino Cais e o seu assistente Marcelo Amorim fizeram retratos de Valter Hugo Mãe segurando livros encontrados em sebos, um deles com uma guarda que lembra os azulejos portugueses.
                Assista a vídeo sobre Nino Cais em bit.ly/ninocais.
                CAMILO BRASILEIRO
                Nos anos 1990, a académica brasileira Beatriz Berrini contou ao seu amigo português A. Campos Matos que fizera uma "descoberta sensacional" em São Paulo: um espólio com mais de cem cartas de Camilo Castelo Branco (1825-90) para o seu melhor amigo de infância, o visconde de Ouguela, Carlos Ramiro Coutinho.
                As cartas pertenciam a um descendente do visconde que vivia em São Paulo. Estavam dadas como desaparecidas e eram as únicas que faltavam ao espólio da correspondência entre os dois amigos, doado à Universidade de Coimbra, em 1955, e guardadas pela família por as considerarem mais íntimas.
                Ao longo de vários anos Beatriz tentou publicar as cartas em livro, mas não conseguiu. Só agora esta correspondência é publicada pela editora portuguesa Clube do Autor. O livro "Camilo Íntimo - Cartas Inéditas de Camilo Castelo Branco ao Visconde de Ouguela" reúne 250 cartas: 112 do espólio paulistano e 140 do coimbrão.
                Numa delas, de 26 de maio de 1873, Camilo conta ao amigo: "Meu caro Carlos, cá estou na oficina a martelar. Os rapazes chegaram mais polidos de Lisboa. Dizem apenas duas asneiras em cada palavra. Agradavam-me mais quando diziam três. Quando disserem só uma, considero-os perdidos. Eu estou com a coluna vertebral torta, e a alma do mesmo feitio."
                ESPAÇO BRASIL
                Lisboa está mais brasileira. Mês passado a ministra da Cultura, Marta Suplicy, inaugurou o espaço dedicado às artes brasileiras. É um dos pontos altos dos eventos do Ano do Brasil em Portugal, com uma programação que sai do eixo Rio-São Paulo, o Brasil que os portugueses conhecem pelas novelas.
                Concertos, exposições, palestras e workshops acontecerão até junho nos 1.200 m2 do armazém, com cenografia de Aby Cohen e decoração do jovem artista plástico Derlon, ambos brasileiros. O Espaço Brasil tem uma sala de espectáculos, uma galeria de arte, bar, terraço e até um cineclube.
                Já há programação até meados de 2013, mas o comissariado vai estudar qual a melhor forma de dar continuidade para que passe a ser um novo espaço para apresentações artísticas em Lisboa, já que tem uma dimensão média, com características diferentes das salas que já existem na capital.
                LOBO ANTUNES E E. L. JAMES
                A britânica E. L. James esteve em Lisboa a lançar o último volume da sua trilogia erótica. Ao que se sabe não se cruzou na cidade com António Lobo Antunes, que em outubro, no festival literário Escritaria, em Penafiel, confessou ter lido mais do que um volume deste best-seller que em Portugal se chama "As Cinquenta Sombras".
                E o escritor, que é médico, descreveu-o assim: "Fala de partes do corpo humano que eu não sabia que existiam. A quantidade de coisas que eu também não sabia que existiam e que se podem meter em várias partes do corpo... É completamente obsceno, achei aquilo ofensivo para as mulheres. Se eu vos contasse aqui o que lá se passa vocês nem dormiam!". Gargalhadas na sala.

                  O gene e o ativismo - Kenneth P. Serbin

                  Folha de São Paulo

                  CIÊNCIA
                  A corrida contra o relógio genético
                  RESUMO Por mais de uma década, historiador dividiu-se entre a academia e, sob pseudônimo, o ativismo em prol das vítimas de Huntington, doença degenerativa e incurável que atinge o cérebro. Aqui, ele narra sua "saída do armário", processo em que assumiu ser portador do gene causador do mal que matou sua mãe.
                  KENNETH P. SERBIN
                  tradução CLARA ALLAIN

                  ACADÊMICOS VOLTA E MEIA mudam de foco ao longo da carreira e se entregam a uma nova descoberta, um novo emprego ou à mera necessidade de mudar de assunto. Comigo, isso aconteceu ao descobrir que, em algum momento, vou desenvolver uma doença cerebral apavorante, intratável e fatal.
                  A descoberta de que carrego o gene da doença de Huntington me forçou a reavaliar minha vida e carreira, me impôs um novo papel de ativista (embora, de início, exercido sob pseudônimo) e me lançou numa luta que pode afetar minha própria sobrevivência.
                  Minha especialidade de longa data como pesquisador é a história brasileira moderna. Mas, sem alarde e com convicção crescente, comecei a me envolver num segundo campo -uma área que engloba ciência, tecnologia e medicina-, em busca de avanços que possam salvar a mim, a outros 30 mil americanos afetados por essa doença medonha e a estimados 150 mil a 250 mil outros que podem desenvolvê-la. No Brasil, calcula-se que os portadores do gene sejam algo entre 13 mil e 19 mil, e que outros mais, de 65 mil a 95 mil pessoas, correm o risco de ter o gene.
                  A doença de Huntington carrega um estigma, não por ser contagiosa ou indicativa de comportamento dissoluto -não é uma coisa nem outra-, mas porque seus sintomas assustadores são os de uma doença herdada. Os nazistas teriam esterilizado à força até 3.500 pessoas afetadas pelo mal e, nos EUA, onde a esterilização involuntária continuou a ser praticada até a década de 1960, os defensores da eugenia preconizaram o procedimento também para os portadores de Huntington.
                  Filhos de pai ou mãe com doença de Huntington têm 50% de chances de herdar o gene mutante que causa o mal. Qualquer pessoa que tenha o gene vai desenvolver a doença em algum ponto, geralmente entre os 35 e 55 anos de idade. Não há cura ou tratamento.
                  Por anos, preocupado com os riscos profissionais e sociais que poderia correr se revelasse minha condição de portador do gene, fui um ativista de bastidores, assinando como Gene Veritas, "nom de plume" sob o qual sou bastante conhecido na comunidade ligada à doença de Huntington, graças a meu blog (curehd.blogspot.com).
                  Hoje, culminando um processo longo e doloroso de "sair do armário", quero assumir em público minha história, para combater o estigma e o medo que cercam a doença de Huntington e outros distúrbios neurológicos. Com isso, espero ainda ajudar a obter mais apoio a pesquisas sobre o cérebro.
                  DIABO Essa jornada começou no dia seguinte ao Natal de 1995, quando soube que minha mãe, Carol, tinha Huntington. Com a notícia, veio a compreensão deprimente de que ela estava fadada a morrer do mal já descrito como "o diabo de todas as doenças".
                  A doença produz uma tríade pavorosa de anomalias motoras, cognitivas e comportamentais que se assemelham aos males de Parkinson, Alzheimer e a distúrbios psiquiátricos. Fiquei sabendo que, quanto mais pronunciada a mutação, mais cedo a doença se manifesta. E que um homem pode transmitir uma mutação muito mais grave que uma mulher, levando a doença a se manifestar precocemente em seus filhos, até mesmo na primeira infância.
                  Na época, ainda faltavam quatro anos para eu ter uma cadeira estável na Universidade de San Diego. Com medo de perder o plano de saúde e o emprego de professor assistente, não contei a quase ninguém sobre a minha situação. Temia a reação dos meus colegas ao saber que um intelectual como eles pudesse ter o cérebro geneticamente comprometido. E adiei os exames genéticos de previsão.
                  Durante vários anos refleti sobre o assunto, só com minha mulher, Regina, itabirana que foi criada no Rio, e com um grupo de apoio da seção de San Diego da Sociedade Americana da Doença de Huntington. Em meados de 1999, com Regina querendo muito que tivéssemos filhos, decidi me submeter aos exames.
                  Ficamos atordoados ao descobrir que eu tinha a mutação.
                  Quase sem saber como reagir, e cientes de que, assim como foi com minha mãe, eu, perto dos 40 anos, estava correndo contra meu relógio genético, seguimos estoicamente adiante com nosso plano de procriar. Regina não demorou a engravidar. Durante quatro meses lancinantes, até termos o resultado do exame genético, aguardamos para saber o destino da vida nova que crescia em seu ventre.
                  Na medida do possível, concentrei-me em concluir o meu primeiro livro e em me preparar para a obtenção da cadeira estável. Ficamos especialmente preocupados ao pensar que Regina, longe de sua família, talvez tivesse que cuidar tanto do marido quanto de um filho com a doença de Huntington.
                  Nossa angústia enfim deu lugar a alegria quando soubemos que nosso "bebê-milagre" estava livre do gene da doença. Bianca nasceu saudável em 26 de junho de 2000.
                  À noite e nos fins de semana, mergulhei no trabalho voluntário no conselho da seção de San Diego da Sociedade da Doença de Huntington. Defendendo um maior ativismo, ajudei a escrever um "colóquio" bipartidário sobre a doença, que apareceu no "Congressional Record". Em viagens de pesquisa ao Brasil, tive contatos com a então nascente Associação Brasil Huntington, fundada em 1997.
                  Como editor do "Conquest", o boletim da seção de San Diego, e valendo-me da perspectiva humana conquistada em meus estudos sobre o Brasil, explorei por sete anos as profundezas assustadoras e os anseios esperançosos da comunidade de Huntington. Escrevi editoriais contra a discriminação genética e a favor das pesquisas com células-tronco embrionárias.
                  Para conhecer melhor os aspectos científicos e lidar melhor com meu medo, redigia atualizações regulares sobre as pesquisas no campo. O "Conquest" começou a alcançar doadores de destaque justamente quando inauguramos um evento de gala em apoio ao novo centro de serviços familiares da sociedade em San Diego. Mas meu nome não aparecia no boletim.
                  Refletindo sobre como divulgar a doença sem divulgar meu nome, decidi lançar um blog sob um pseudônimo que significa "a verdade em meus genes".
                  "Meu nome é Gene Veritas e corro o risco de desenvolver a doença de Huntington", escrevi em 10 de janeiro de 2005. Nos últimos oito anos, em mais de 140 artigos, abri o meu coração, falando das dificuldades enfrentadas por minha família e entrevistando cientistas. Documentei a dolorosa experiência de viver na zona cinzenta entre o resultado de um exame genético e a chegada da doença que o exame previu -ao mesmo tempo que se aguarda com ansiedade a descoberta de um tratamento eficaz.
                  DESVIOS A doença de Huntington acabou desviando minha vida do rumo desejado em inúmeras ocasiões. Em meados de 2005, minha mãe foi internada numa clínica para doentes terminais. "À medida que ela perde a capacidade de engolir, a morte se aproxima", escrevi para uma médica amiga, falando de minha preocupação crescente com o futuro de minha mãe e o meu.
                  "Será que vou ver minha filha se apaixonar e fazer faculdade? O suicídio pouparia minha família de um peso exaustivo e financeiramente ruinoso. Eu não sofreria como os pacientes de Huntington que vi numa clínica, contorcendo-se sem controle, usando fraldas, amarrados com cintos a cadeiras especiais ou confinados em quartos com paredes acolchoadas. Mas, se me suicidasse, minha filha ficaria arrasada."
                  Minha mãe morreu dormindo em 13 de fevereiro de 2006. Tinha 68 anos. Profundamente abatido, achando que eu seria o próximo a apresentar a doença, levei quase um ano para reconquistar meu equilíbrio emocional, enquanto conseguia presidir a Associação de Estudos Brasileiros.
                  Em 2007, numa decisão dolorosa que transformou minha carreira, recusei um trabalho em que eu ajudaria a comandar o excelente Centro para a América Latina na Universidade Internacional da Flórida para ficar em San Diego, um centro de biotecnologia.
                  Prevendo meu deslocamento em direção à história da ciência, valorizei a flexibilidade intelectual de minha universidade, uma instituição privada de ciências humanas. O mais importante de tudo foi que ficar na Califórnia permitia que Regina mantivesse seu cargo de professora, relativamente bem pago, que seria nosso esteio financeiro se eu ficasse incapacitado.
                  Naquele ano, quando a agência de pesquisas com células-tronco aprovada pelos eleitores da Califórnia, com verba de US$ 3 bilhões, se preparava para emitir dotações para pesquisas, iniciei um trabalho estadual em favor da causa, planejando iniciar apresentações sobre a doença diante do conselho de supervisão da agência.
                  Desde então, eu e outros ativistas ajudamos a garantir quase US$ 29 milhões para projetos de células-tronco sobre a doença de Huntington. Enquanto isso, uma importante e nova "iniciativa de cura da doença de Huntington", um grupo biomédico sem fins lucrativos chamado CHDI Foundation Inc., revolucionou as pesquisas sobre medicamentos contra o mal e, pela primeira vez, envolveu laboratórios farmacêuticos importantes. Finalmente a comunidade de Huntington tem motivos para esperanças reais.
                  A aprovação da lei federal de saúde e de medidas para proteger da discriminação de empregadores e seguradoras pessoas que detectem distúrbios genéticos me deu coragem para começar a vir a público sobre minha condição.
                  Em 2011, fiz um discurso de abertura, o mais importante de minha vida, da sexta conferência anual de pesquisas do CHDI, em que expliquei que Gene Veritas era
                  Kenneth P. Serbin e exortei os cientistas a redobrar seus esforços. (O discurso pode ser visto em vimeo.com/19906160)
                  Com este ensaio, meu primeiro na grande imprensa, dou meu passo decisivo para sair do armário da doença. Agora quero integrar minha atividade em favor da causa e minha paixão recém-descoberta pela história da ciência com minha carreira de brasilianista.
                  Entrei para a Sociedade de História da Ciência, vou desenvolver um curso sobre a história do cérebro e vou buscar ligações com os novos projetos de minha universidade na área de neurociências e de trabalho social para promover a saúde cerebral como prioridade internacional.
                  A história da doença de Huntington é a história de nossos tempos. A doença foi uma das primeiras para as quais foi desenvolvido um exame genético. À medida que aumenta o conhecimento sobre outros males, a ética médica precisa ser submetida a uma revisão profunda, e é preciso que surja um movimento pelos direitos genéticos. Tomando emprestada a frase de outro acadêmico, os portadores de genes causadores de doenças são, para mim, os "pioneiros morais" na fronteira genética.
                  Com outros grupos latino-americanos, a Associação Brasil Huntington vem tendo papel cada vez mais importante na busca por um tratamento. Em setembro de 2013 o Brasil vai estar sob os holofotes científicos globais, quando o Congresso Mundial sobre a Doença de Huntington for realizado no Rio.
                  As pesquisas sobre Huntington podem abrir os segredos de milhares de distúrbios genéticos, neurológicos e condições "órfãs" raras que, juntas, arrasam milhões de pessoas, começando pelas doenças de Alzheimer e Parkinson. Como ilustra especialmente o Alzheimer, é possível ter vida física mais longa, mas será que poderemos viver por mais tempo mentalmente? Esses distúrbios todos impõem uma carga esmagadora às pessoas que cuidam dos doentes.
                  Estou com 52 anos, a idade em que minha mãe começou a apresentar a doença. Valorizo cada momento de saúde. Ao contemplar meu legado intelectual, incentivo outros a entrarem na corrida para proteger nosso principal recurso natural -nossos cérebros- e lutar por um mundo em que a ciência conquiste as doenças.
                  Com a notícia, em 1995, de que minha mãe tinha Huntington, veio a compreensão deprimente de que ela morreria do mal já descrito como "o diabo de todas as doenças"
                  À medida que aumenta o conhecimento sobre outros males, a ética médica precisa ser revisada, e é preciso que surja um movimento pelos direitos genéticos