domingo, 5 de abril de 2015

A vida, uma experiência - Martha Medeiros

Zero Hora 05/04/2015


A ideia é não acionar o piloto automático, mas assumir o manche
De uns tempos para cá, as agências de viagens mais antenadas deixaram de oferecer pacotes turísticos incluindo apenas estada, passagens e visitas guiadas às principais atrações. O turista exigente deseja mais do que um lugar para dormir e uma selfie junto à Torre Eiffel.
Ele não quer apenas viajar, ele quer viver uma experiência, e isso inclui passeios de balão, acampamentos no deserto, uma ceia ao luar sobre a areia da praia, mergulho nas águas secretas de uma caverna, uma excursão de bicicleta em meio a ruínas ancestrais, uma aula de surfe num paraíso indonésio, escalar um vulcão ativo, participar de uma cavalgada, fazer meditação no topo de uma montanha. Não apenas ver o Big Ben, a Torre de Pisa, a Estátua da Liberdade, click, click, click e voltar pra casa.
Às vezes fico pensando se não deveríamos viver o dia a dia com esse mesmo espírito de aventura. A rotina impõe suas limitações, é vero, mas não custa expandir a mente e tentar – ao menos tentar, dentro das nossas possibilidades – fazer diferente.
Qual a graça de sair apenas com quem é igual a você? Que sempre frequentou os mesmos locais, conhece as mesmas pessoas e não irá lhe contar nada palpitante, nada que faça você morrer de rir, ou ficar admirado, ou pensar com seus botões: como é que não imaginei isso antes? A experiência de conviver com alguém que habite outro universo pode ser excitante e prazerosa, pois abre novos portais (porém, se o projeto for casar na igreja e gerar meia dúzia de filhos, é mais seguro apostar na alma gêmea para ter menos sobressaltos, combinado).
Caso você já esteja bem casado e com a vida ganha, ainda assim, por que não se desacomodar um pouquinho? Em vez de cumprir tarefas, viver experiências.
Não tem passeio de balão em Porto Alegre? Podemos cruzar o Guaíba de catamarã. Não temos deserto onde acampar? Podemos fazer um piquenique com os amigos num parque. E assim sucessivamente, usando a criatividade, buscando alternativas.
Quando falei lá no primeiro parágrafo em ceia ao luar sobre a areia da praia, é bem verdade que em meus delírios imaginava uma praia de mar cristalino cercado por falésias, com um clima romântico e música suave, mas nada impede de você levar sua churrasqueira portátil e o isopor para a beira da praia do Cassino, com o porta-malas do carro aberto para curtir seu pagodão. Também é uma experiência, vou eu negar?
A ideia é não ficar na plateia, mas entrar em cena. Não repetir os dias, mas torná-los únicos. Não acionar o piloto automático, mas assumir o manche.


Não toda hora, nem todos os dias, pois banalizaria as extravagâncias e, além disso, a vida real costuma nos chamar de volta para dentro do escritório, mas, de vez em quando, que sejam bem-vindos os sobressaltos, para lembrar que o coração não parou.

Decolagem autorizada - Martha Medeiros

O Globo 05/04/2015


Três semanas atrás escrevi uma coluna que repercutiu. Eu falava do sentimento de ver uma filha levantando voo, saindo de casa para construir sua própria vida fora do país, sem data para regressar. Na ocasião, recebi e- mails de pais e mães relatando experiências semelhantes, contando como foi importante para o amadurecimento de seus filhos essa decolagem rumo à própria independência. Não foram três ou quatro, foram dezenas de mensagens, provando que essa debandada é mais comum do que se imagina e que só traz benefícios, tanto para quem vai quanto para quem fica.
Estava eu entretida com as histórias que cada um contava quando entrou um e-mail de um pai que assim iniciava seu relato: “Tua coluna me levou às lágrimas.” Pensei: mais um que acaba de voltar do aeroporto depois de se despedir do seu moleque. Mas não. Ele contou que tinha um filho de 38 anos que ainda morava em casa e não dava sinal de querer levantar a bunda do sofá (palavras dele). Imaginava que, a essa altura, o filho já teria vivido suas aventuras pelo mundo, aprendido um pouco sobre a vida, feito escolhas, mas que, ao contrário disso, criara raízes e não pretendia cortá-las. O garoto (garoto??) trabalhava, era um bom menino (menino??), mas nada de se movimentar.

À medida que o texto progredia, a frustração desse pai ficava mais evidente. No final, já estava insultando o guri ( guri??). E eu, que gosto de um humor negro, não contive o riso diante deste “pai às avessas’’, como ele próprio se definiu: inconformado por não ver seu filho também levantando voo.

Dei total razão a ele. Quando os filhos saem de casa, a gente se preocupa, sente saudades e tal, mas, no fundo, sabemos que esse rompimento está escrito e que é salutar na vida de todas as famílias. Por mais que dê um aperto no peito, o sentimento que realmente impera na hora da separação é orgulho. Criamos um filho que tem determinação, autonomia, equilíbrio emocional. Não é preciso que ele vá para Londres, Austrália ou qualquer outro lugar distante. Basta abrir mão de um amanhã previsível, nem que seja se mudando para o bairro vizinho. É um impulso natural: abrir- se para novas oportunidades, alargar o campo de visão, encontrar- se com um eu mais autêntico. Claro que grande parte da população não conta com esse privilégio: amontoam- se todos sob o mesmo teto por não terem como se sustentar de forma avulsa. Mas quem ganha seu próprio dinheiro, e ainda assim se recusa a migrar, será para sempre o apêndice de uma estrutura que não foi criação sua, e sim herdada sem esforço, impedindo a formação de uma identidade mais legítima.

Ô garoto, coragem. Bata as asas e permita que seu pai voe também.      

EM DIA COM A PSICANáLISE » Fundamentalismo

Estado de Minas: 05/04/2015 





De acordo com Adriana Küchler em artigo para a revista Superinteressante, o termo fundamentalismo se refere à crença na interpretação literal dos livros sagrados. Fundamentalistas são encontrados entre diversos religiosos e todos pregam os dogmas de seus livros sagrados para que sejam seguidos à risca.

O termo surgiu no começo do século 20, nos EUA, quando protestantes determinaram que uma das exigências da fé cristã é acreditar em tudo que está escrito na Bíblia. Mas o fundamentalismo só começou a preocupar o mundo em 1979, quando a Revolução Islâmica transformou o Irã em Estado teocrático e obrigou o país a um retrocesso, aos olhos do Ocidente. Mulheres foram obrigadas a cobrir o rosto, proibiram-se a exposição de imagens e as festas.

Os fundamentalistas não aceitam nenhuma ideia de modernização. Ignoram que preceitos religiosos precisam ser interpretados em concordância com a época e as circunstâncias atuais, guardando grande distância da época em que foram criados. Por exemplo, o mandamento “crescei-vos e multiplicai-vos” pode ter sido adequado para tempos imemoriais, mas não para hoje, quando o problema da superpopulação ameaça o planeta e a qualidade de vida nas cidades. Hoje em dia, precisaríamos do controle de natalidade nos grandes centros urbanos. Haja vista o problema da água: oriundo da má administração pública dos rios e também dos desmatamentos, ele afeta a todos. Há também a má distribuição de renda e várias outras injustiças.

Para os fundamentalistas, cada palavra, cada sentença do texto sagrado é verdadeira e imutável. Isso tem consequências graves, como, por exemplo, fomentar grandes intolerâncias, pois pensar assim torna o ponto de vista da pessoa absoluto e nenhuma outra verdade pode ser aceita. Nesse sentido, o dono da grande e única verdade, ao alcançar o poder, impõe seus dogmas a todos, execrando quem discorda deles.

No plano político, muitas vezes vimos fanáticos como Hitler imporem seu pensamento como palavra de ordem, até mesmo instaurando, por meio do estado de exceção, uma guerra civil que abole regras constitucionais referentes às liberdades individuais. No caso do führer, houve eliminação física de adversários políticos e de categorias inteiras de cidadãos.

O fundamentalismo político é uma temeridade, porque vale tudo para garantir o poder – os fins justificam os meios, até o ilegal. Tivemos a ditadura brasileira de 1964, quando praticaram tortura e assassinato. Isso é uma vergonha. Em contrapartida, para os radicais que se opunham à ditadura, como é o caso de nossa presidente, nosso governador, José Dirceu e de outros companheiros, valiam luta armada, assalto a banco, sequestro, etc. Foram considerados, por alguns e naquelas circunstâncias, atos heroicos.

Uma cena que não se apagará é a prisão de José Genoíno e José Dirceu na ocasião do mensalão. Eles foram detidos dando socos no ar como se tivessem vencido olimpíada ou coisa parecida. Como se fossem heróis! Numa reunião do PT na cidade, João Vaccari, tesoureiro suspeito de corrupção na operação Lava-Jato, foi muito aplaudido.

Ainda outro dia, escutava no rádio reportagem sobre a CPI da Petrobras em que se questionava o senhor Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados. O parlamentar se declarou absolutamente indiferente aos protestos (o que dizer de um político que declara isso?!). Em vez de prestar esclarecimentos sobre sua possível participação na operação Lava-Jato investigada pela Polícia Federal, ele foi homenageado pelo corporativismo daquela casa. Sinceramente, creio que o fundamentalismo corporativista e partidário no Brasil é caso grave e precisa urgentemente ser banido. Seja em que partido for praticado.

Uma colega me dizia que os candidatos mais votados no Brasil sempre apresentaram um traço perverso. Achava-a radical. Está aí, mais claro como nunca, o desvelamento desta verdade. Precisamos repensar essas escolhas. Que parte perversa de nós próprios nos faz eleger e permitir a manutenção de tão indigna representação?

Nanini inventa o cais

Ator fala sobre o centro cultural que fundou na zona portuária do Rio de Janeiro e, irônico, diz que foi bem acolhido pelos marginais


Carolina Braga

Estado de Minas: 05/04/2015



Marco Nanini em cena de Beije minha lápide. Apresentada no Festival de Curitiba, peça entra em cartaz em BH neste mês
 (HUMBERTO ARAUJO/DIVULGAÇÃO)
Marco Nanini em cena de Beije minha lápide. Apresentada no Festival de Curitiba, peça entra em cartaz em BH neste mês


Curitiba –
O engenheiro de segurança mandou subir o muro que cerca a residência de Marco Nanini no Rio de Janeiro. O ator obedeceu. Veio outra recomendação para aumentar ainda mais. Depois outra. Nanini deu um basta. “Mas vai subir esse muro até onde? É a Torre de Babel? Quero ir para um lugar onde eu abra a porta e tenha o problema para resolver”, conta. Foi assim que nasceu o Instituto Galpão Gamboa, endereço na zona portuária do Rio que se transformou em uma espécie de laboratório para Nanini.

“Fomos bem acolhidos pelos marginais. Não tive nenhum contato direto com eles”, brinca, sempre com ironia peculiar. É no Galpão Gamboa que nascem as montagens teatrais do intérprete do saudoso Lineu, da Grande Família. “Buscava uma sala de ensaio e descobri essa pequena fábrica. Era pequena para fábrica e muito grande para uma sala de ensaio. Resolvi ocupar”, conta.

De lá, saíram montagens como a recente Beije minha lápide. A peça foi um dos destaques do Festival de Teatro de Curitiba que termina hoje e tem apresentações marcadas para Belo Horizonte nos próximos dias 18 e 19, no Teatro Sesiminas.

O local, que surgiu com o objetivo de atender demanda específica do ator consagrado, oferece hoje atividades esportivas e de saúde, além das culturais. Quando começa a falar sobre o projeto, em andamento desde 2008, Nanini não segura a empolgação. “Todos os dias, há senhoras de 80 anos subindo escadas enormes para fazer aulas de teatro, de ioga. Achei que ninguém iria lá”, afirma. O Galpão Gamboa virou ponto de encontro de pessoas de distintas gerações. Se os mais velhos fazem de lá um espaço de convivência artística e social, jovens atores dão vazão às suas novas criações. De olho nisso, Nanini se contaminou.

“Falei: não posso ficar afastado dessa gente. Se for assim, vou ficar ilhado em uma torre, sem conviver com pessoas mais jovens, criativas, boas”, conta. Com essa disposição, juntou-se à Cia. dos Atores para fazer a adaptação de O bem amado. Também foi assim na premiada Pterodátilos (2010), com direção de Felipe Hirsh. Em Beije minha lápide, dirigida por Bel Garcia, divide a cena com a Cia. de Teatro Independente, do jovem dramaturgo Jô Bilac.

O próximo trabalho será montagem do texto francês Ubu rei, com a Cia Atores de Laura, do diretor Daniel Herz. Com exceção da Cia. dos Atores, já mais veteranos, os outros dois grupos são representantes da nova geração do teatro carioca.

“Cada um tem seu frescor à sua medida, seja em que idade esteja. Essa gente me traz muita informação de todos os tipos – dos trabalhos que fizeram, a disciplina que têm, o carinho, o amor pelo oficio, tudo isso fico observando com prazer.” No caso de Beije minha lápide, há também surpresas de conteúdo a partir da obra de Oscar Wilde.

Nanini, que está com 66 anos, nutre interesse por Oscar Wilde desde que conheceu sua obra, na escola de teatro. Em 1968, chegou a fazer Salomé, publicado pelo irlandês em 1894, sob a direção de Martim Gonçalves. Ainda assim, apesar da admiração e dessa aproximação no início de sua carreira, nunca quis interpretar o escritor e poeta irlandês, nem encenar alguma de suas obras. Até que Jô Bilac apresentou-lhe o argumento de Beije minha lápide: Nanini viveria Bala, um escritor preso em Paris por violar o túmulo de Wilde.

Para proteger a lápide do autor no famoso – e turístico – cemitério Père Lachaise, em Paris, dos beijos dos fãs, a sepultura foi coberta por um vidro. Foco da ira de Bala. Criou-se então toda uma camada de ficção para que Nanini compartilhasse com o público algumas ideias de Wilde, mas também reproduzisse posturas do escritor consideradas absurdas na época em que viveu. Tudo com um texto ágil, debochado e engraçado.

Para artista, país vive ‘tragédia’


“Acho que é uma tragédia o que está acontecendo”, afirma Marco Nanini. O ator não esconde sua descrença em relação ao Brasil de hoje. “Essa desfaçatez, essa falta de respeito com a população, com o Brasil, esse jogo de interesses cada vez mais evidente, mais claro, mais sem pudor. Tudo isso traz uma certa depressão. Um país tão rico, em todas as áreas, estar atolado nesse buraco é muito triste”, dispara.

Marco Nanini nasceu no Recife, em 1948. Foi na Escola de Teatro do Conservatório Nacional, entre 1966 e 1968, que formou-se ator. Era justo a época em que o Brasil vivia a dura fase da ditadura. Ainda que sejam tempos incomparáveis, para o ator o que sucede hoje o faz lembrar do passado. “Esse momento, à parte do golpe, que foi outra coisa pavorosa que eu vivi, tem sido muito difícil de atravessar”, diz.

Com sua sempre aguda dose de ironia, afirma que, atualmente, antes de abrir um jornal para ler as notícias do dia, é preciso tomar calmante. “Você perde a confiabilidade nas pessoas, sempre duvida de qualquer política. É esse o ponto a que nós chegamos.”

. A repórter viajou a convite do Festival de Teatro de Curitiba