sábado, 31 de agosto de 2013

Brasil condena arma química, mas quer aval da ONU na Síria

folha de são paulo


DE SÃO PAULO
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Crise Síria
O Ministério das Relações Exteriores brasileiro informou neste sábado que deverá se pronunciar em breve quanto ao anúncio do presidente americano, Barack Obama, de que quer realizar uma operação militar na Síria.
Questionada, a pasta destacou, no entanto, que, embora o governo brasileiro condene o uso de armas químicas (seja por parte do regime sírio ou de seus opositores), uma ação unilateral sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU viola a carta da organização.
No pronunciamento feito hoje, Obama disse que o Conselho de Segurança está "completamente paralisado" quanto à questão. No órgão, Rússia e China, que são aliados do ditador sírio, Bashar al-Assad, têm poder de veto e têm sustentado que não aprovarão nenhuma intervenção.
Por outro lado, Obama anunciou que, antes de determinar o ataque, espera obter autorização do Congresso americano, que retornará do atual recesso no próximo dia 9.
Os EUA querem atacar a Síria em retaliação ao ataque químico que afirmam ter ocorrido no subúrbio de Damasco no último dia 21.
Os EUA consideram que as provas obtidas por seus serviços de inteligência são suficientes para justificar uma ação militar destinada apenas a coibir o uso de armas químicas. Conforme o governo americano, o regime sírio realizou um ataque com armas químicas no último dia 21 no subúrbio de Damasco que matou 1.429 pessoas, sendo 426 crianças. O regime nega.

Pequenas, mas atrevidas - Joselia Aguiar


Por Joselia Aguiar | Para o Valor, de São Paulo
Bruna Prado/Frame/Folhapress / Bruna Prado/Frame/Folhapress
A Bienal do Rio, no Riocentro, tem 950 expositores e espera 600 mil visitantes neste ano: presença das pequenas cria um curioso contraste da fase recente do mercado editorial
Evento-símbolo da indústria editorial brasileira no que tem de superlativo em volumes e cifras, a Bienal Internacional do Livro, neste ano realizada no Rio, chega às suas três décadas com orçamento de R$ 32 milhões, 950 expositores e área de 55 mil m2, onde são esperados 600 mil visitantes que vão até lá para encontrar autores de best-sellers, como James C. Hunter, de "O Monge e o Executivo", 3 milhões de exemplares vendidos só aqui.
Superlativo? Nem tudo. Como a aldeia gaulesa de Asterix que resiste aos romanos, uma diminuta área que não ultrapassa 120 metros quadrados, no mesmo pavilhão da bilheteria e entrada principal, está coberta por dez editoras independentes. É antes uma ocupação que resistência. Pois na edição passada, de 2011, eram apenas cinco. Para atender à procura, a solução foi dobrar o espaço, que existe desde 2003 com o nome de Calçada Literária e tem estandes menores, de 9 m2, ao custo médio de R$ 500 por m2 - os estandes adquiridos por editoras de grande porte alcançam 200 m2.
No instantâneo, o curioso contraste da fase recente do mercado editorial brasileiro. Quando passa pela sua maior consolidação - aquisições, com entrada de megagrupos estrangeiros -, as independentes proliferam. Nanicas, pequenas ou médias investem em formatos que vão do artesanal, com exemplares encadernados à mão e capa dura, ao ainda pouco difundido e-book. Algumas lançam revista própria gratuita ou mantêm simpáticas livrarias, outras funcionam como coletivos e adotam o crowdfunding. À medida que aumentam em número, parecem adquirir cada vez mais força.
"Força comercial, não sei se é possível dizer. Cultural, não tenho dúvida", afirma Haroldo Ceravolo, sócio da paulistana Alameda e à frente da Libre, associação que reúne iniciativas editoriais para além dos megagrupos. Organizadas a partir de catálogos coerentes e por vezes bastante focados, servem de contraponto às grandes, que, ao disputar títulos comerciais milionários, "têm construído sua força comercial no abandono de uma política editorial firme", avalia.
Cifras e volumes das independentes ainda são imprecisos. Medir o tamanho da bibliodiversidade é tarefa que a Libre tem à frente, já em discussão com a nova diretoria do Livro e da Leitura do MinC. Não é pela Calçada Literária ou pelos possíveis estandes pavilhões adentro no Riocentro que se pode avaliar o caminho das independentes. Território para grandes, as bienais não costumam ser lugar de preferência das pequenas. Uma medida pode ser a própria Libre, hoje com 117 associados, aumento de 20% em dois anos - em parte porque, segundo Ceravolo, se adotou um sistema mais ágil para avaliar os pedidos de adesão. Independentes não são novidade, expansão e retração se sucedem em ciclos, mas agora há condições técnicas mais favoráveis, com as novas tecnologias que baratearam os custos de produção e impressão e ampliaram os canais de divulgação e vendas.
A força cultural das independentes vem da disposição, e até ousadia, de investir em projetos que não disputam lugar em listas de mais vendidos. Como poesia, ensaio e humanidades, gêneros considerados pouco comerciais. Reedições de obras esgotadas, traduções de autores de idiomas pouco disseminados ou revelação de novas vozes - que, muito depois de se firmar, têm seu passe comprado pelas grandes.
Em São Paulo, a Demônio Negro lançou, por exemplo, as "greguerías" de Ramón Gómez de La Serna, da vanguarda espanhola do começo do século XX, e a primeira edição em mais de um século de "O Guesa", de Sousândrade. No catálogo da Ficções, há Augusto de Campos e Paul Valéry. A Grua traz diretamente do grego a obra de Nikos Kazantzákis, mais conhecido por seu clássico "Zorba". Estreias literárias são a principal aposta da Patuá, Lote 42, Dobra, Bateia e Edith. No Rio, A Bolha, que elege gêneros híbridos com desenho e quadrinhos, também leva a obra de Hilda Hilst para os Estados Unidos, em coedição com a Night Boat. Em Curitiba, a Arte & Letra garante para o leitor brasileiro títulos do argentino Cesar Aira, atração cult na Bienal do Rio, apinhada de "blockbusters".
Não é só por vontade de preencher espaço deixado pelas grandes, muitas das independentes pretendem criar outro, como contam ao Valor. Assim como há as que querem crescer, há as que querem continuar do mesmo tamanho, sem ter em vista acelerar a produção ou potencializar o lucro.
"O caminho das editoras independentes não pode ser o da imitação das grandes: devem buscar um modelo próprio e singular a cada uma, seja no catálogo, no processo produtivo, na relação com os autores e leitores, de preferência nos três eixos. Pelo menos é como tentamos fazer", defende Alexandre Nodari, um dos fundadores da Cultura e Barbárie, de Florianópolis. Como "linhas de fuga ao consenso", a Edições Chão da Feira escolhe títulos que "modificam a cartografia do que é pensável, nomeável, do que é perceptível e, também, do que é possível", define Maria Carolina Fenati, uma das editoras que constituem um núcleo que se estende por Belo Horizonte, São Paulo, Rio, Lisboa e Porto. Rachel Gontijo, uma das sócias da carioca A Bolha, lembra que "comprar um livro de uma editora independente é uma forma de ativismo, assim como escrever sobre produções independentes".
Longe das bienais, as independentes investem em site próprio e, com dificuldade, conseguem entrar até em grandes livrarias. Fazem surgir os próprios lugares de encontro e venda, para tentar resolver o velho entrave, a distribuição.
Divulgação / Divulgação
Apresentação da Big Band Villa Lobos durante a Primavera dos Livros, em novembro: editoras independentes têm essa feira anual, promovida pela Libre, em São Paulo e no Rio
Uma feira só para editoras com esse formato é realizada em três cidades brasileiras, a Primavera dos Livros. Neste ano, a de Osasco vendeu mais de 150 mil exemplares, com cerca de 40 mil visitantes, informa a Libre. A do Rio está marcada para 24 a 27 de outubro no Museu da República. Ainda em fase de captação de recursos, a de São Paulo deve ser realizada em novembro, no centro. As independentes têm em São Paulo uma festa literária, a Flap, com debates gratuitos, cuja sétima edição vai de 20 e 22 de setembro na Casa das Rosas, Bibliotecas Mário de Andrade e Alceu Amoroso Lima, e no Espaço Satyros.
O calendário prossegue. Inclui eventos como a Feira de Arte Impressa Tijuana, a Feira Plana, a Turnê, a Feira de Publicações Independentes do Sesc Pompeia. Os livros chegam à Cooperifa e ao Sarau do Binho, a espaços culturais na Vila Madalena e Baixo Augusta. "Creio que a tendência bonita é esta: a literatura estar misturada a outras causas e atividades, mais próxima do leitor, mais cheia de vida", prevê Ana Rüsche, poeta e idealizadora da Flap. "Arriscaria dizer que há uma vontade do público leitor em frequentar esses lançamentos, em 'estar por dentro'."
Uma loja exclusiva para as independentes foi aberta no bairro de Pinheiros há quatro meses: a Livraria de Microeditoras, parceria da Intermeios e Demônio Negro que se estende às demais. Não é comum, mas há editoras que possuem livraria própria, como a Arte & Letra, em dois andares de um mesmo prédio, em Curitiba. "Não é mais possível pensar editora e livraria como coisas separadas", diz Thiago Tizzot, fundador. "A livraria veio depois e ajuda bastante não só como ponto de venda. Alguns projetos da editora surgiram na mesa de café e subiram a escada."
As idas à gráfica exigem outra lógica, assim como se dá na escolha dos títulos e na distribuição. Se as altas tiragens caracterizam as grandes, que podem ganhar em escala e colocar como enxurrada candidatos a best-seller nas lojas - nas grandes, os poucos comerciais saem com tiragem de 3 mil, os vendedores, com dezenas de milhares -, as independentes têm de imprimir sob medida, para não comprometer muita verba de uma só vez nem correr o risco de ter o título esgotado, algo como o "tem, mas acabou".
A inteligência da tiragem, tal como se opera na Patuá, que começou faz dois anos e meio com investimento de R$ 5 mil, lançou mais de 120 títulos e está por ora no amarelo, segundo Eduardo Lacerda, um dos fundadores: cada livro sai com cem exemplares ao custo de R$ 12 por unidade, com reimpressões a partir de 20 exemplares. Se vender apenas 50, recupera o investimento - dependendo do autor, chega a esse número no dia do lançamento. Numa tiragem de 1.500 o custo baixa para R$ 4 por unidade, mas é um volume incompatível, diz. "É mais barato mesmo ter uma tiragem maior, mas é impossível vender essa quantidade de livros, então é melhor ter um custo unitário maior, mas facilmente recuperável."
Um novo cenário para a divulgação das independentes se configurou com a internet, sobretudo as redes sociais. Como relata Rachel Gontijo, da carioca A Bolha: "Usamos 'doodles', máscaras, brinquedos, animações, fotos e outras coisas a que não saberíamos nem dar nome. Essa coisa de sair um pouco do que se é esperado, daqueles métodos que já se tornaram até invisíveis por ser utilizados quase automaticamente no mercado editorial, pode funcionar. A brincadeira entre e com linguagens nos interessa bastante". Também faz coisas fora da internet: lançou uma livraria que se move, a Bolha Itinerante, e uma feira de arte impressa, a Pão de Forma, no espaço Comuna, em Botafogo.
"Sem o digital, a Lote 42 jamais teria existido", admite João Varella, um dos sócios da editora paulista. Desde a busca de novos projetos. "Já Matei por Menos", de Juliana Cunha, e "O Pintinho", de Alexandra Moraes, são casos bem-sucedidos na web que migraram para o impresso. "E, como damos valor à web, criamos 'hot sites' para cada um dos livros, com conteúdo extra e links para os leitores continuarem a leitura por lá. Até o fim do ano, a intenção é ter uma loja virtual própria para a venda de e-books e outros itens além de livros. Queremos explorar mais o vídeo."
Entre as independentes, surgem as que atuam exclusivamente no digital, como a KBR Digital, de Petrópolis, e a Descaminhos, de São Paulo, baseadas no modelo de "Kindle singles" da Amazon. "O processo de produção de um livro digital não é nem um pouco menos trabalhoso do que o físico", esclarece Gabriela Erbetta, da novata Alpendre, que usa a distribuidora Xeriph para levar títulos a todas as lojas virtuais. Lançou já o guia "50 endereços no Brooklyn". No prelo, um similar para San Diego e, em 2004, para o Porto. "O investimento para fazer livros digitais não é muito diferente do de uma editora de impressos, com exceção, claro, dos gastos com impressão e papel."
Ao contrário de evitar crescer, a Autêntica se tornou um grupo com três, mantendo-se filiada à Libre. Quando estreou, em 1997, publicava títulos acadêmicos, como a atual "Coleção Filô", de filosofia. As duas mais recentes são a Gutenberg, de interesse geral e entretenimento, e a Nemo, de quadrinhos. A quarta, Vertigo, de romances policiais, será lançada nesta edição da Bienal do Rio. "Para preservar as características de independente, cada editora tem uma vocação, sem que necessariamente se considere apenas o resultado nas vendas", afirma Rejane Dias, editora-executiva. "Sei de editoras que não publicam livros que não tenham tônus para vender pelo menos 10 mil exemplares. Publicamos livros que não vão vender mais que mil exemplares."
De acordo com Rejane, muitos desses livros para público mais específico são sustentados pelo sucesso de outros, tanto no varejo como nas vendas para o governo. O maior se chama Paula Pimenta, de infantojuvenis, mais de 200 mil exemplares em 2013. Por causa do seu desempenho, o relacionamento com as grandes livrarias se tornou mais próximo, com o que a Autêntica consegue colocar naquelas prateleiras outros livros de menor apelo.
Nem gaulesa nem romana, uma estreante vai avançar pelos corredores desta Bienal do Livro com ambição de gigante. De uma vez, a carioca Valentina faz quatro lançamentos, como "Fale!", de Laurie Halse Anderson, que trata de "bullying", e "Passarinha", de Kathryn Erskine, de autismo, ambos vencedores de prêmios de prestígio e ocupantes de listas de mais vendidos nos Estados Unidos. Em um ano e meio, será investido R$ 1 milhão, anuncia um dos sócios, Rafael Goldkorn, responsável pela escolha dos títulos e veterano no currículo - por duas décadas, esteve ao lado de Ênio Silveira (1925-1996), histórico editor brasileiro, depois passou pelo Grupo Record. Para construir um catálogo que, como define, reunirá "livros transformadores", ou "entretenimento com qualidade", "feitos para o grande público, mas com temas de relevância", está disputando em leilões internacionais, transação que costuma ser evitada pelas de menor porte dado o risco do comprometimento financeiro. "Vamos brigar com os grandes em pé de igualdade.

Leia mais em:
http://www.valor.com.br/cultura/3252472/pequenas-mas-atrevidas#ixzz2dZlZE3yp

Laertevisão e Quadrinhos

folha de são paulo
CHICLETE COM BANANA      ANGELI
ANGELI
PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
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DAIQUIRI      CACO GALHARDO
CACO GALHARDO
NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
FERNANDO GONSALES
PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER
ALLAN SIEBER
QUASE NADA      FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
HAGAR      DIK BROWNE
DIK BROWNE

João Paulo-Política de gente pequena‏


João Paulo

Estado de Minas: 31/08/2013 


Médicos cubanos chegam ao Brasil: a primeira praga que enfrentaram foi o preconceito  (Viola Junior/Esp. CB/D.A Press)
Médicos cubanos chegam ao Brasil: a primeira praga que enfrentaram foi o preconceito

A divisão do mundo entre gente grande e gente pequena, quase sempre, parece se referir ao mundo dos adultos e das crianças. Os grandes cuidariam das coisas sérias, já que, infelizmente, não são mais dotados da graça da infância. No entanto, a política brasileira parece ter misturado as categorias e criado, entre os adultos, uma pequenez de alma e infantilidade de propósitos que faz com que se tornem todos miúdos. A política brasileira é de gente pequena.

Uma das características das crianças é a birra. Em vez de se concentrar nos fatos, ficam presos à emoção que cerca a realidade. Assim, perdem tempo com questões menores e são incapazes de mudar de opinião ou mesmo de sustentar uma que mereça respeito. No lugar de propostas, preocupam-se em falar do outro; em vez de apresentar projetos, ficam apontando o dedo para o defeito dos concorrentes; deixam de lado a função prospectiva da política para regredir a níveis de indigência intelectual.

São muitas as situações petizes da política nacional. A mais exemplar delas pode ser vista no jogo pouco sério entre as candidaturas postas à Presidência. Os candidatos e candidatas mais consistentes têm perdido tempo em executar um balé desgracioso para a plateia, deixando de ocupar a cena pública para o saudável debate de ideias e projetos.

A situação fica batendo na mesma tecla dos projetos de conhecimento geral – em vez de enfrentar os novos desafios – enquanto a oposição deixa de mostrar o que tem de diferente a propor para saúde, educação, segurança e desenvolvimento, se perdendo em apontar gafes e deslizes insignificantes. Entre a compulsão à repetição e a alienação dos verdadeiros temas, perde o cidadão.

A infantilidade não habita apenas a campanha eleitoral já disparada e o nível federal, mas vários momentos da vida institucional do Estado brasileiro em todos os níveis. Na nossa cidade, a incapacidade de diálogo gerou um comportamento pouco produtivo entre administração e cidadãos, dando origem a um ambiente de contínua conflagração e perda de substância política.

O estrangulamento das políticas sociais em Belo Horizonte são ainda visíveis na questão da moradia e das áreas ocupadas tratadas com violência e desprezo; na educação básica que não se universaliza para os menores de 6 anos; na concepção errática da política de mobilidade urbana, fato sentido por toda a população, que assiste agora o anúncio de um estudo de linha de metrô ligando Belvedere e Savassi, certamente a menos urgente das prioridades do setor.

No âmbito estadual, a concentração excessiva nas ações intermediárias parecem paralisar o impulso à ação, em nome de permanentes anúncios de cortes, acertos internos, contenção e reformas da máquina. Há um limite que precisa ser pensado entre o enxugamento e a provisão dos serviços. O apoio excessivo nos meios em detrimento dos fins gera uma comportamento neurótico, fixado em normas e regras obsessivamente perseguidas.

Um exemplo claro desse descaminho é a dificuldade de se resolver problemas que saem da alçada de um nível de governo, em razão de competência estabelecida por outro, ainda que fira de morte a saúde da sociedade. É o caso da duplicação da BR-381, obra mais que viável e desejada pelos cidadãos mineiros, que não é assumida pelo estado menos pela inexistência de recursos que pela incapacidade de se guiar por outros valores políticos que superem marcos que se mostram ineficientes.

Besteiras em série Não bastasse a infantilidade da política, convivemos esta semana com a imbecilidade em vários setores da sociedade. A chegada dos médicos cubanos foi um dos momentos mais vergonhosos da história recente. A enxurrada de preconceitos, que vieram de todos os lados, foi capaz de passar por cima da ciência, do bom senso e até da educação.

As entidades de classe, com os conselhos à frente, chegaram a divulgar um chamamento ao descumprimento ético das funções dos profissionais de saúde, convocados a não dar seguimento a atendimentos feitos pelos colegas cubanos. Ato de irresponsabilidade, foi secundado por manifestações preconceituosas e racistas de estupidez inacreditável.

O corporativismo, que numa sociedade complexa é um instrumento entre outros de defesa de interesses a serem negociados na arena pública, ganhou de parte dos médicos brasileiros (nem de todos, é bom frisar) uma tradução que deixou de lado a defesa de mercado para atentar contra o interesse maior, que é a saúde humana.

Numa atitude que radicaliza a biopolítica decifrada por Foucault como um dos instrumentos de poder da sociedade contemporânea, as entidades médicas assumiram a ponta de lança do conservadorismo, que é a perpetuação das injustiças. Pode-se ser de direita ou de esquerda, mas é desumano ser a favor da violência (que é a falta de assistência, negada assertivamente pelos profissionais brasileiros) e da injustiça contra parte significativa da sociedade.

E a burrice não ficou apenas com as entidades de classe. Parte da sociedade, com a mídia dando apoio, tratou de nomear os contratos com os médicos cubanos como casos de trabalho escravo. É compreensível que haja oposição ao projeto (e onde estão as propostas alternativas viáveis e imediatas para a falta de médicos nas periferias e grotões?), mas não que se torça uma categoria de análise sociológica, como a de trabalho escravo, sob o risco de esvaziar o duro combate a essa modalidade que ainda é vigente no país.

A acusação de trabalho escravo, além de desconhecimento, deixa entrever a relação materialista que a classe média brasileira mantém com o trabalho. Talvez por isso tenha soado tão estranho o depoimento de médicos estrangeiros, muitos com experiência de sobra, que afirmam o desejo de fazer o bem. No âmbito das relações materiais e de consumo, o que não é quantificável não existe. Menos ainda solidariedade e internacionalismo.

Por que é tão comum nos médicos cubanos o empenho em se especializar em medicina social e da família? Trata-se apenas de uma resposta à falta de tecnologia ou uma opção feita em razão das condições sociais da população? É exatamente o caráter social que custa tanto a ser compreendido pelos médicos brasileiros, dependentes de tecnologia intensiva e formados no mais liberal dos mercados profissionais. O medo, pelo que se vê, não é da concorrência, mas da irrelevância.

Por isso o ódio da filósofa Marilena Chauí contra a classe média, recentemente publicada na internet, se mostrou tão expressivo: a classe média não é nosso outro, mas o mesmo que nos persegue o tempo todo, com sua alienação, com sua violência e sua ignorância. Para esses males não há filosofia ou médico que dê conta.

O futuro foi ontem - João Paulo

Livro de ensaios sobre a literatura brasileira contemporânea aponta impasses e caminhos possíveis para a prosa de ficção e para a crítica literária no país. Para novos autores, a tradição deve ser revista 


João Paulo

Publicação: 31/08/2013 04:00


Daniel Galera (Renato Parada/Divulgação  )
Daniel Galera

O contemporâneo é sempre um risco. É mais fácil falar do passado, das obras consagradas. O novo é um perigo. Sobretudo quando se trata de literatura, num momento em que os valores do passado estão sendo questionados e não se pode afirmar com clareza a composição de um novo cânone. A situação é ainda mais desafiadora quando a própria relação com o passado muda de figura. As promessas do modernismo não valem mais como única porta possível para o futuro. Nossa relação com o passado se tornou muito mais complexa. Nossas expectativas com o porvir muito mais diluídas.

Por essas e outras razões – como o impasse da crítica frente ao novo panorama –, o livro O futuro pelo retrovisor – Inquietudes da literatura brasileira contemporânea é tão importante. Ele marca uma aposta corajosa em relação à prosa de ficção que vem sendo feita no Brasil no século 21, a partir da constatação de um certo esgotamento das vertentes tradicionais e da invenção de novos modelos de relação com o passado. Em 17 ensaios são analisadas obras de autores contemporâneos, de Valêncio Xavier (1933-2008, o único que já morreu entre os selecionados) a Daniel Galera (nascido em 1979).
Michel Laub      Adriana Lunardi    Marcia Foletto/Divulgação    Luiz Ruffato    Adriana Vichi/Divulgação (Renato Parada/Divulgação)
Michel Laub Adriana Lunardi Marcia Foletto/Divulgação Luiz Ruffato Adriana Vichi/Divulgação
A maioria dos autores estudados nasceu nos anos 1960 e 1970, têm obras significativas, publicadas por grandes editoras, e repercussão nos meios críticos e em estudos acadêmicos. De certa forma compõem um novo cânone. Não faltam ao grupo escritores de gerações anteriores, como Chico Buarque, Rubens Figueiredo, Sérgio Sant’Anna e João Gilberto Noll, cujas obras se inscrevem no mesmo registro de transição. Os autores dos ensaios são todos professores universitários no Brasil e na Argentina, o que dá certa unidade aos textos críticos em termos de referências intelectuais, próprias dos departamentos de letras cada vez mais marcados pela influência da filosofia (que parece substituir o antes hegemônico referencial psicanalítico).

Os organizadores, Stefania Chiarelli, Giovannna Dealtry e Paloma Vidal, dividem os artigos em cinco grupos que, de certa maneira, propõem núcleos de interesse, cada um deles portador de uma proposta literária para enfrentar a questão central do livro: como relacionar a nova literatura com as referências que vêm do passado? Em outras palavras, de que maneira os novos autores – e os nem tão novos assim – inscrevem seu trabalho na história literária brasileira, num tempo que se caracteriza mais pela ruptura do que pela continuidade? Que elementos permitem pensar um caminho comum aos projetos de nossos escritores?
Adriana Lunardi     (Marcia Foletto/Divulgação)
Adriana Lunardi


A primeira seção se chama “Experiência, transmissão, alteridade” e reúne quatro ensaios. No primeiro, Stefania Chiarelli analisa a obra de Michel Laub (Diário da queda, quinto romance do autor) destacando a proximidade com a ficção de Samuel Rawet, no que toca à relação com as raízes judaicas de ambos. Mais que uma referência, o passado se constitui como uma questão, uma experiência crítica. Se a literatura de Laub chama atenção pela experiência, a de Bernardo Carvalho se caracteriza pela alteridade, como analisa Claudete Daflon ao estudar Nove noites. Num misto de romance e narrativa etnográfica, o autor colocaria em xeque a possibilidade de verdade nos dois universos, da arte e da ciência. O terceiro termo que faz parte o título da seção, transmissão, é o aspecto destacado na trilogia de romances de Carola Saavedra sobre a separação, em estudo de Diana Klinger, e em Leite derramado, de Chico Buarque, a partir de leitura de Alexandra Faria. Nos dois casos, a questão que se coloca diz respeito às possibilidades narrativas ou, mais ainda, às dificuldades de narrar, o que leva à exploração de elementos que evidenciam a falha, os cortes, os lapsos.
Luiz Ruffato     (Adriana Vichi/Divulgação)
Luiz Ruffato
A segunda parte de O futuro no retrovisor é composta de três textos que se debruçam sobre a obra de Ricardo Lísias, Adriana Lunardi e João Gilberto Noll, agrupados sob a chancela de “Literatura, vida, cena literária”. Os três autores, por diferentes registros, trazem para o texto a difícil separação entre arte e vida, em contos e romances que problematizam a presença do eu e do narrador. No caso de Ricardo Lísias, como aponta Luciene Azevedo, os fatos da vida pessoal do autor se mesclam com a ficção, com personagens que por vezes assumem o nome do próprio autor, criando uma assinatura literária que desliza entre dois mundos, com uma incômoda, mas astuta exposição da intimidade, que capta o leitor numa “brincadeira perversa”. Em Divórcio, mais recente romance do autor (posterior ao ensaio de Luciene Azevedo), a estratégia ainda se mostra operante. A escrita da intimidade, no entanto, é ainda mais intensa na obra de João Gilberto Noll que, como explica Gabriel Giorgi, radicaliza a interseção entre literatura e vida, até alcançar a dimensão da animalidade do corpo. O romancista dá uma resposta carnal à docilidade do poder que emana de um contexto social marcado pelo domínio da biopolítica. O bios é sede de revolta e não apenas endereço certo das manhas do poder.

Releituras

No terceiro conjunto de ensaios, “Releituras da tradição, reescrituras do moderno”, está em questão a maneira como a literatura contemporânea dá conta de propor novos modelos expressivos em função de seu desligamento com a tradição. Ou seja, para um novo modo de encarar o passado, uma nova forma estética. Sérgio Sá, ao analisar a obra de Rodrigo Lacerda, aproveita a dica do autor sobre a literatura de Eça de Queirós para propor certa ética da generosidade, que inunda a literatura de uma promessa de felicidade, de história bem contada, de encontro e comunicação, mas sem perder a ironia que daria o quê de contemporaneidade. Nos demais ensaios que integram a seção, Graça Ramos e Leila Lehnen destacam o diálogo com a literatura de formação (bildunsgroman) em João Almino e Daniel Galera, integrados contudo aos temas e elementos estilísticos do século 21 (daí o aspecto de reescritura da tradição). Na análise do romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, Cátia Valério chama atenção para a visualidade e os recursos cinematográficos do romance-mosaico do autor, além de identificar a releitura crítica de estratégias utilizadas por autores como Graciliano Ramos, Autran Dourado, Oswald de Andrade e Osman Lins.
Chico Buarque     (IMS/Divulgação)
Chico Buarque


A seção seguinte, “Profanação, citação, encenação” começa com o ensaio de Giovanna Dealtry sobre a obra de Sérgio Sant’Anna. A autora arrisca uma homologia entre os textos ficcionais do escritor e as transformações que se observaram nas artes plásticas ao longo do século 20. Assim como as artes visuais deixaram de lado os suportes tradicionais e se reinventaram, a literatura de Sant’Anna foi além dos códigos convencionais, desafiando nosso renitente realismo. Mais que uma mudança de técnica, trata-se de uma aposta em novo modelo de conhecimento, que passa pelos sentidos, pela defesa da performance, pelo jogo entre as possibilidades da representação. Além de Sérgio Sant’Anna, a quarta seção reúne ensaio de Pascoal Farinaccio sobre o procedimento de citação em Lourenço Mutarelli (a citação como fermento para a criatividade pessoal em O cheiro do ralo); e estudo de Jorge Wolf acerca da estratégia de profanação na obra de Valêncio Xavier (que, mesmo profanado pelos proprietários das convenções literárias, foi capaz de profanar a arte, a cidade, o narrador e até a morte).

“Redefinições do cânone, dobras do nacional” é o título da última parte de O futuro pelo retrovisor. Como o nome indica, trata-se de problematizar o lugar da crítica no atual contexto da literatura brasileira. Se a prosa de ficção mudou para atender às provocações de uma nova relação entre a arte e seu tempo, a forma de se acercar das produções literárias também indica uma chacoalhada no território da crítica. Se o estatuto do narrador é um problema, o lugar crítico talvez seja uma questão ainda mais difícil de ser respondida. No primeiro ensaio, Paulo Roberto Tonani do Patrocínio parte dos trabalhos de Nelson Werneck Sodré e Flora Sussekind sobre o naturalismo brasileiro (chegando aos neonaturalistas) para se aproximar de Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo. Para o ensaísta, o romance propicia um diálogo com o naturalismo cientificista do século 19, mas a partir de bases postas pelo presente. Completam a seção textos de Susana Scramin e Paloma Vidal sobre obras de Milton Hatoum e Adriana Lisboa, em que são questionados os parâmetros convencionais da crítica, inclusive os gêneros literários e a busca de uma identidade nacional.

Em seu conjunto e na seleção dos autores estudados, O futuro no retrovisor se insere com coragem no terreno de disputas que hoje movem a literatura brasileira, presa ao conforto do mercado e das igrejinhas, por um lado, e nas aporias por vezes arriscadas do experimentalismo puro, por outro. Se no terreno da criação o cenário é instigante e se abre a várias perspectivas éticas e estéticas, no campo da crítica, seja ela universitária ou ensaística, o desafio é igualmente irrecusável. Foi-se, de vez, o tempo da delicadeza, e nem mesmo o passado é certeza de nada.

O FUTURO PELO RETROVISOR – INQUIETUDES DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA. Organizado por Stefania Chiarelli, Giovannna Dealtry e Paloma  Vidal
. Editora Rocco, 328 páginas

Xico Sá

folha de são paulo
Túlio 999, respeito
Feliz gol mil, Túlio. És uma figura. Se não sair hoje, juro que estarei contigo na próxima tentativa
Amigo torcedor, amigo secador, o cara é tratado como folclórico, como se o folclore fosse uma coisa ruim e depreciativa, tudo bem, "folk" e "lore", do inglês, costumes de um povo, conhecimento de uma gente, fala sério, desculpa, mas uma das coisas que aprecio nos seres humanos, boleiros ou não, é a obsessão, e hoje, desculpa mídia inteligente de elite, só quero saber do Vilavelhense X Desportiva Ferroviária.
No tal embate, Túlio Maravilha pode chegar ao milésimo gol. Quem busca o milésimo, seja quem for, mesmo a gente dando um desconto de cem gols como margem de erro, merece respeito. Seja o Túlio seja o bravo Romário, seja o amigo flamenguista Leo Jaime, que diz ter feito dois mil e tantos. É sério.
Preste atenção, meu velho, são gols, não são crimes, e, quase sempre, vemos a austera imprensa caçoando de tal feito. O 999 do Túlio ganhou o apelido de "gol moqueca", justa homenagem ao Estado que o recebeu, aos 44 anos. Trabalha e confia, Espírito Santo.
Tem gente que invoca com o singelo trocadinho que o artilheiro fatura nesse projeto louco. Que mal há nisso. Gente hipócrita que ama tanto o dinheiro que não admite que alguém o ganhe fazendo gol e graça. Deixa o cara, pô, se hoje ele faz diante de meia dúzia de torcedores, já fez para o Goiás e para o gigante Botafogo com o Maraca lotado.
Eu mesmo odeio o que ele fez com o Santos em 95. Mas basta lembrar o que o meu amor na época, Daniela Rocha, dizia: "Que cara boa tem esse teu novo inimigo". De acordo. Ia ao Pacaembu com a Dani no tempo em que podíamos atirar radinho de pilha no bandeirinha. Não chegava a tanto. Quebrava o radinho na arquibancada mesmo.
Tomara que saia hoje o milésimo. De tanto a imprensa caçoar, estou na torcida. O brasileiro despreza o épico. Só gosta do goleador chato. Como o Túlio tira onda, está condenado. O brasileiro é um paulistano de nascença. Já nasceu desconfiado da nossa possibilidade do épico.
Gols, verdadeiros ou fictícios, não são crimes. São sonhos. Lindos sonhos de criança. Senhores comentaristas, sejam menos sérios, por favor, acreditem no futebol como fantasia, não como se fosse uma estupidez da política. De tanto levar a sério essa coisa, a gente acaba ajudando a provocar a violência.
Volto ao meu amor safra 95: "Eles discutem tão sério que parece que é uma assembleia da ONU", dizia Dani, musa linda de Sorocaba e do mundo, sobre as mesas redondas.
Feliz gol mil, Túlio. És uma figura. Se não sair hoje, juro que estarei contigo na próxima tentativa. Persegues a alegria, a prova dos nove, moqueca é capixaba, o resto é peixada. Aquele abraço.
@xicosa

    ENTREVISTA/NOEMI JAFFE » Em nome da memória‏

    Escritora fala sobre livro baseado no diário escrito pela mãe durante período em que ficou presa em Auschwitz


    Carlos Herculano Lopes

    Estado de Minas: 31/08/2013 


    Noemi Jaffe, crítica literária e professora (Cia das Letras/Divulgação)
    Noemi Jaffe, crítica literária e professora

    Depois de ouvir desde a adolescência, num misto de encantamento e temor, que a sua mãe, a sérvia judia Lili Jaffe, havia escrito um diário contando o que havia ocorrido com ela durante os 11 meses, de 1944 a 1945, quando esteve presa no campo de concentração nazista de Auschwitz, a escritora e crítica literária Noemi Jaffe acabou transformando-o no livro O que os cegos estão sonhando?. Para “sentir o que não sabia”, em 2009, enquanto começava o processo de montagem do texto, esteve no campo de extermínio. Em paralelo, Noemi escrevia também a coletânea de contos A verdadeira história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário, que está entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom. Já O que os cegos estão sonhando?, por sua vez, é finalista de outro prêmio importante, o Zaffari & Bourbon, do Rio Grande do Sul. Nascida em 1962, em São Paulo, onde vive, Noemi Jaffe, que anda às voltas com um novo livro – um romance que se passa na Hungria, em 1957, durante a revolução – conversou com o Pensar sobre literatura, guerra, memória e universidade.

    No ano passado, 67 anos depois de os fatos terem ocorrido, finalmente o diário escrito por sua mãe foi publicado no Brasil. Como se deu o processo?

    Depois de minha mãe ter voltado para a Sérvia em busca de parentes sobreviventes, ainda em 1945, e não ter encontrado ninguém, ela acabou conhecendo meu pai, que se apaixonou por ela. Como ela tentava ir para os Estados Unidos, atrás de seu irmão que tinha sobrevivido, aliando-se ao Exército americano, ela foi para a Hungria em busca de documentação e deixou o diário como lembrança para meu pai. Ele foi atrás dela, em Budapeste, e, como ele tinha uma família grande aqui no Brasil, ofereceu casar-se com ela somente para fins civis. Assim, ela chegaria ao Brasil com a documentação necessária para poder ir para os Estados Unidos. Mas, no meio do caminho, eles se apaixonaram, chegaram aqui e se casaram também no religioso. Quando nasci, em 1962, meus pais já estavam bem estabelecidos e dominavam a língua. Desde pequena, portanto, ouço as histórias de minha mãe e de meu pai, já falecido, sobre a guerra e sei da existência do diário. Na minha adolescência, já planejava fazer algo em relação a ele e, ao longo de minha pesquisa, encontrei anotações daquela época sobre planos para um livro. Nos anos 1990, minha mãe, minha irmã e eu traduzimos o diário para o português e o entregamos ao Museu do Holocausto, em Jerusalém, onde mora minha irmã. A Fundação Spielberg ficou sabendo da existência do diário e entrevistou minha mãe. Naquela época, tentei montar um livro com o diário, mas a ideia não deu certo. Finalmente, em 2009, ganhei um edital da Petrobras com esse projeto e no mesmo ano fui para Auschwitz com minha filha, já com a intenção de escrever o livro. Basicamente, foi isso o que aconteceu.

    Você escreve na introdução que, embora soubesse da existência do diário, este se constituía “como um mistério e um tesouro que, com certa inconsciência, não queria desvendar”. Por quê?

    De alguma forma, era como se não quisesse e temesse violá-lo, conhecendo seu conteúdo ou traduzindo-o para o português. Talvez temesse que o seu conteúdo fosse diferente daquilo que minha mãe contava ou quisesse mantê-lo numa atmosfera quase sagrada, imune a uma ideia de profanação pelo português e por mim. Mas, como constatei, não foi esse o caso. Foi muito bom tê-lo traduzido. Para todos, mas sobretudo para minha mãe, o que é o mais importante.

    E a sua mãe, como lidava com o diário? Era também um tabu para ela?

    Não, o diário nunca foi um tabu para minha mãe nem para meu pai. Nunca esconderam nada de mim. Ao contrário, fizeram questão, sobretudo meu pai, de me contar as histórias, os perigos, as aventuras. Como minha mãe é uma pessoa alegre e generosa, suas histórias não me faziam sofrer e eu tampouco a sentia como uma vítima. Sempre a considerei uma mulher forte e que consegue superar qualquer problema que a vida oferece.

    Como surgiu a ideia de realizar o livro em parceria com sua filha, Leda Cartum? E qual foi sua reação ao chegar a Auschwitz?

    Como minha filha Leda é escritora, formada em letras, no decorrer do processo surgiu também a possibilidade de ela participar do projeto, sob outro ponto de vista, da terceira geração pós-sobrevivência. Ela aceitou e fomos à Alemanha em 2009. Minha reação, ao chegar a Auschwitz, foi tentar assumir algum ponto de vista que não fosse pasteurizado, massificado. Decidimos ir durante o inverno – 20 graus abaixo de zero! – e sem guia. Só nós duas mesmo. Diante do horror evidente, procurava informações menos visíveis: os olhos nos retratos, os nomes nas malas, as datas, anotações nas paredes, nos banheiros, nos documentos, números nas listas dos oficiais nazistas, marcas nas paredes, inscrições, falhas na madeira, nas paredes, coisas assim. Penso que encontrei várias informações que me permitiram ver, no campo, não somente o lado terrível das mortes, mas também o aspecto heróoico dos sobreviventes e dos que morreram. Mas, de qualquer maneira, é uma experiência que só o corpo consegue (se tanto) viver. As palavras são realmente insuficientes, pois nada ali é do domínio do verbal, embora seja um dever transformar tudo em palavras. Mas uma coisa muito irritante é o lado comercial que é explorado pelas agências turísticas de Cracóvia e pelos próprios turistas. É muito incômodo.

    Como que se deu sua iniciação como ficcionista? 

    Escrevo desde que aprendi a ler e a escrever. Desde pequena invento alfabetos. Creio que o fato de ter sido depositária dessas histórias favoreceu muito meu pendor por narrativas e por um tipo de confinamento. Sempre me senti à margem de meus colegas e minha forma de me consolar dessa solidão era, quase sempre, lendo e escrevendo, além de me dedicar ao estudo de outras línguas. Tinha um tio que sempre me presenteava com livros muito bonitos e creio que a leitura desses livros foi o que me iniciou na ficção. Meus primeiros textos ficcionais foram escritos na escola mesmo e também num movimento juvenil judaico que eu frequentava.

    Como se deu o processo de criação dos contos de A verdadeira história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário?

    Enquanto escrevia o livro O que os cegos estão sonhando?, tinha recebido um convite para escrever um livro de contos pela Companhia das Letras, e não quis perder a oportunidade. De alguma forma, creio que um era uma espécie de contraponto do outro. Ambos falam de origens. Um de minha origem familiar, judaica e histórica; o outro, da origem ficcional das letras do alfabeto. Fui descobrindo, enquanto escrevia os dois, que há muita ficção em qualquer história assim chamada real e isso aparece também no diário. Estava lendo um livro do David Grossman, um autor que admiro muito, em que as personagens falam sobre hospitalizar palavras doentes, que são aquelas palavras muito desgastadas pelo uso banalizado. Isso me fez pensar em um uso inaugural das palavras e das letras, que é exatamente o que faz a poesia. Assim, fui pensando em palavras para cada letra e uma pequena narrativa em que algum personagem teria precisado daquela palavra e daquela letra para alguma circunstância, o que o teria feito inventá-la. Também criei um dicionário com palavras já existentes no português, mas com acepções diferentes daquelas encontradas nos dicionários comuns.

    Além de ficcionista, você também é professora. Qual o papel que a academia tem desempenhado hoje em relação à literatura brasileira?

    A literatura brasileira contemporânea não é muito ensinada nas universidades brasileiras. Já se chegou às décadas de 1960, 70 e 80, o que é um grande avanço, ao menos em relação à época em que eu estudei, quando só se chegava até os anos 1940. Em algumas pós-graduações também se ensina a literatura contemporânea, mas são poucas. No geral, a atenção que se dá é pouca e insuficiente, embora seja compreensível que a academia brigue por conservar a tradição – é o seu papel – e que ela esteja sempre atrás da produção. Mas deveria, certamente, haver um esforço maior no sentido de estudar e de incentivar a produção contemporânea, com mais revistas, seminários, ensaios e, principalmente, disciplinas.


    O que os cegos estão sonhando? – Com o Diário de Lili Jaffe (1944-1945)

    •  De Noemi Jaffe
    •  Editora 34, 236 páginas


    A verdadeira história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário
    •l  De Noemi Jaffe
    •  Editora Companhia das Letras, 128 páginas

    Deriva e retorno em Mistura fina Patrícia Carmello‏


    Deriva e retorno em Mistura fina 

    Patrícia Carmello

    Estado de Minas: 31/08/2013 


     (manim/mostra arte favela nos becos)

    O estupro no táxi, a surra da polícia, a tortura na ditadura de 1968, os sem-teto da periferia e outras tantas situações da nossa barbárie cotidiana, mas também a conversa no botequim e outros casos tragicômicos constituem o material com que Vera Casa Nova tece seus contos, no livro Mistura fina, e vai erguendo suas barricadas. De um desejo não todo submetido à ordem fálica, mas lançado pela palavra que libera o riso e a festa, onde se dança mesmo “desfilando de amarelo”, e onde se goza mesmo sob as preces dos pastores, como dançam e gozam suas protagonistas.

    Porém, as histórias não são tratadas como fatos objetivos, como lembra a autora na espécie de introdução que dá título ao livro. Pois em meio às distintas vozes “passantes e passadas” recolhidas para compor seu texto, uma parece predominar e, curiosamente, apontar o método que ela julga inexistente: a voz do jornal, a crônica da vida nacional, que despeja o volume de crimes individuais in natura diariamente diante dos espectadores-ouvintes, e que aparece em diversos contextos ao longo do livro.

    Desde sua pesquisa de doutorado sobre almanaques antigos de farmácia, na qual explorou a relação entre texto e imagem, Vera parece tomar este material, as notícias, exatamente como quem coleciona inscrições, ou como são apresentados os grafites dos muros de 1968 no livro de Olgária Matos, que não por acaso dá nome a um dos contos, “Paris 1968: As barricadas do desejo”, como legendas significantes dos movimentos estudantis e operários em ebulição na época.

     A frase epígrafe desta resenha poderia ser lida como revivescência do surrealismo retomado pelos situacionistas, que figuravam entre os principais responsáveis pelos escritos de rua do maio francês. Movimento artístico e político dissolvido em 1972, o situacionismo teve entre suas figuras centrais Guy Debord, cineasta e teórico proveniente do Movimento Letrista, grupo que, nos anos 1950, pretendia restaurar a força primordial da linguagem, atribuindo à letra um sentido independente da palavra, ligado a seu caráter de som. Portanto, é na qualidade de inscrições diagnósticas do nosso tempo que as notícias são recortadas e coladas sob outras configurações, sendo desnaturalizadas num processo de remontagem, que, se em outros autores limita-se ao simples jogo ou pastiche, aqui é permeado por uma decisão crítica e ética por parte da autora.

    Assim, em Mistura fina, operam-se inversões pouco comuns na cena literária contemporânea, e são traçadas verdadeiras vinganças contra as restrições do tempo: da espera criam-se espelhos e deleites, da miséria sai uma casa em construção, e até do estupro ouvem-se gritos de prazer. Tudo isso se escreve com humor muito distante do cinismo ou da hipocrisia, da recusa em ver saídas ou do ver saídas demasiado fáceis para os conflitos apresentados.

    Mas, antes que se acendam fogueiras, não é demais pontuar: a literatura, compreendida como lugar de criação da realidade, não se confunde com ela. Apesar de aquele gozo surgir na letra do texto como justificativa para a sobrevivência, logo se vê que ele advém do absurdo e provoca o riso (“os bandidos horrorizaram”) – um riso que vem abalar a estrutura da notícia-clichê, que aparece enquanto tal em outro conto: “outra curra seguida de morte”. Trata-se, pois, da interrupção de sentido, ou da afirmação simbólica de que a notícia pode ser outra. Nas palavras de Debord, a passagem marcaria o momento em que a montagem se apropria das imagens reificadas e, ao revelar seu caráter cênico, toma de volta seu lugar ao espetáculo, desviando-as de seu sentido estabelecido pela irrupção de uma abertura a novos sentidos possíveis.

    Os personagens de Mistura... são desvalidos, “gente de rua e de morro”, restos que emperram o bom funcionamento da máquina de criar desigualdades. São principalmente mulheres, que, desde crianças, apanham da polícia, são presas e assassinadas pela repressão, estupradas em táxis; ou, ainda, achando-se “peitudas e gordinhas”, tomam chá-de-cadeira nos bailes da juventude. Lembram, em singeleza, Macabéas e Miguilins em cenários próximos da selvageria da urbe e do campo. Rio de Janeiro e Minas Gerais. Indo além, como não mencionar a poética de François Truffaut em A pequena ladra ou em 400 golpes?

    E justamente por serem talhadas como imagens poéticas, imagem e escrita cumprem sua função de desrealização dessa realidade, bem como sua realização em novas bases, em outro nível, tocando o real, no aqui e agora: apesar de morrerem por overdose de merda (que merda? Escolha o leitor, a este é dado o direito de escolha). Apesar de tudo, os personagens dessa mistura escolhem correr atrás do sonho, tecendo e bordando inusitadas realidades.

    Já o narrador, em diversos momentos, confirmando a fineza do título, levanta-se com elegância, esbraveja e vibra, conversando com o leitor sobre o narrado, sobre o tempo e o amor. Conferindo alguma unidade aos contos, marcados por sua manifestação discreta, mas visível, o narrador, seguindo as palavras da autora, “conta e desconta” apenas para poder “contar o imprevisto”, realizando, com isso, o que toda boa literatura é capaz: tornar possível outra cena, outro modo, outras palavras...

    Pura deriva, como quer a autora. Mas também puro retorno, pois, ao criar suas idas e vindas da vida que se vinga brincando, seu texto faz voltar e pensar, ou recriar outras formas de vida. Capaz de inscrever em nossos muros, em nosso tempo, uma vez ainda: “A imaginação toma o poder”. E o sexo da noite sorri, agradecido.

    Patrícia Carmello é professora e pesquisadora de literatura pela UFMG


    Mistura Fina
    • Vera Casa Nova
    • Editora 7Letras
    • 76 páginas, R$ 34