segunda-feira, 10 de junho de 2013

250 anos de José Bonifácio - Rubens Ricupero

folha de são paulo
250 anos de José Bonifácio
Ao fazer a independência possível e sonhar o Brasil moderno, Bonifácio tornou-se 'o primeiro brasileiro'
O melhor do que o Brasil é hoje e boa parte do que ele ainda não conseguiu ser se deve à herança ou ao sonho de um homem nascido no dia de Santo Antonio, 250 anos atrás, na vila de Santos. José Bonifácio não foi apenas um dos primeiros a perceber que a independência se tornara inevitável. No momento decisivo, os 18 meses entre janeiro de 1822 e julho de 1823, foi quem a fez possível, criando o Estado brasileiro sob a forma da monarquia constitucional moderada e centralizada.
Sabia que só o comando de um príncipe garantiria ao novo poder a legitimidade capaz de desarmar resistências e evitar a tragédia de guerras atrozes como as que esfacelaram a unidade da América espanhola. No imenso território então chamado de "os Brasis" em razão da diversidade e da falta de comunicação, não tardariam a surgir os caudilhos que retalhariam entre si o patrimônio nacional.
Não se fiando apenas na autoridade de Pedro 1º, organizou o Exército e criou a Marinha com os quais foram submetidas tropas portuguesas na Bahia, no Maranhão e no Pará. Em estudo sobre sua atuação como primeiro chanceler, o diplomata e historiador João Alfredo dos Anjos demonstrou que Bonifácio antecipou a união latino-americana ao propor aliança defensiva do continente contra o colonialismo europeu. Não aceitou pagar concessões humilhantes pelo reconhecimento, como depois o fez o imperador.
Na última conferência que proferiu, em Paris, pouco antes de morrer, José Guilherme Merquior lembrou que Bonifácio sonhou o primeiro projeto de Brasil moderno. Propunha extinção do tráfico de escravos e abolição da escravidão, tratamento humano e integrador para com os índios, divisão dos latifúndios em pequenas e médias propriedades. Original como cientista num continente de militares e advogados, dedicava espaço prioritário no projeto à abertura de minas, à promoção da siderurgia e da metalurgia, ao fomento da indústria por meio de financiamento do Banco do Brasil.
Seus escritos de advertência contra a destruição das matas e os métodos predatórios da agricultura conservam atualidade e poderiam ser usados no debate sobre o Código Florestal. Antevia, no futuro, um povo unificado pela miscigenação e civilizado pelo acesso à educação. Como observou sua biógrafa Miriam Dolhnikoff, traçou o retrato do que o Brasil ainda não deixou de ser ao afirmar que "A maior corrupção se acha onde a maior pobreza está ao lado da maior riqueza".
Com tais ideias, comentou Joaquim Nabuco em "O Abolicionismo", não poderia mesmo durar no poder. Os setores ligados à propriedade escravocrata que dominariam o país nas décadas seguintes abominavam a coerência do homem que se orgulhava em carta de construir sua casa só com trabalho livre e alugado.
Merece ser chamado de "o primeiro brasileiro", até no temperamento, nos gostos e na capacidade, conforme testemunhou Eschwege, de "dançar magistralmente o lundu africano"...
Ao iniciar-se a contagem regressiva para os 200 anos da independência, oxalá o Brasil faça finalmente jus ao sonho de José Bonifácio, completando o projeto que teve de deixar inacabado.

    Daniel Pellizzari

    folha de são paulo
    Armagedom pelo teclado
    Quando meu irmão derramou a primeira lágrima, senti um pouco de culpa. Mas só um pouco
    Quando eu dava uma espiada para o lado, conseguia enxergar por trás do reflexo da tela nos óculos do meu irmão um par de olhos arregalados, piscando muito rápido.
    Ele tinha nove anos, um corte de cabelo em formato de capacete e farelos achocolatados de bolacha recheada nos cantos da boca.
    Estava ofegando, a cabeça dizendo "não" mesmo sem se mexer, e no nosso quarto não se ouvia nada além do zumbido discreto da televisão ligada. Bem na nossa frente, em letras pretas sobre fundo branco, a pergunta tornada ainda mais sinistra pela ausência de cedilha: "LANCAR MISSEIS? (S/N)"
    Tudo começou quando assisti a "Jogos de Guerra" no cinema. No filme, hoje clássico, Matthew Broderick interpreta um adolescente apaixonado por computadores que começa a invadir redes privadas e, por acaso, quase acaba dando início à Terceira Guerra Mundial. Foi então que decidi que precisava de um PC.
    Aprendi a programar em BASIC, ganhei um TK 85 da Microdigital e ali estávamos nós naquela tarde de 1985, diante de um programa feito por mim que simulava a invasão de redes de computadores até chegarmos (sem querer, como no filme) ao sistema de mísseis nucleares dos EUA. Para meu irmão, tudo aquilo estava acontecendo de verdade.
    Quando ele derramou a primeira lágrima ao me ver apertar S no teclado macio para confirmar o lançamento de 15 mísseis em direção à União Soviética, senti um pouco de culpa. Mas só um pouco.
    Meu irmão cresceu e comecei a usar computadores para outras coisas. Só reencontrei prazer semelhante em 2001, quando saiu "Uplink" para PC (R$ 12 na GOG.com; há versões para Mac e Linux e em 2012 o game foi lançado para iPad e Android). É um título da Introversion, pequena desenvolvedora que em 2006 lançou também "Defcon" (R$ 17 no Steam), game de estratégia dedicado ao gerenciamento de uma guerra termonuclear global, acabando com qualquer dúvida de que "Jogos de Guerra" inspirou toda uma geração de moleques oitentistas apavorados com a possibilidade de uma catástrofe atômica e fascinados por tecnologia.
    Em "Uplink", uma cruza de simulação com RPG, o jogador assume o papel de um hacker contratado para desvendar um enredo de tons conspiratórios, em que uma grande corporação quer implodir a internet e dominar o mundo.
    A interface está mais para a simulação hollywoodiana de filmes como "Hackers" (1995) que para o cotidiano dos invasores de redes do mundo real, mas isso não diminui em nada o envolvimento. É possível passar noites em claro tentando descobrir uma brecha em um novo sistema. Só mais um. Só mais um.
    Mesmo lançado há 11 anos, "Uplink" conta até hoje com uma comunidade muito ativa de jogadores, que produzem incessantes modificações e expansões.
    Confiro os novos cenários sempre que são anunciados, mas, enquanto vou me intrometendo nos sistemas, obtendo dinheiro para comprar novos programas e flertando com o armagedom ao alcance do teclado, sempre sinto falta da tensão ingênua do meu irmão, que hoje nem usa mais óculos.
    Talvez esteja na hora de apresentar o conceito de guerra nuclear ao meu filho de cinco anos.

    Índios reivindicam terras sob disputa em MS desde 1930

    folha de são paulo
    Grupo de terenas de Sidrolândia foi ao Rio, capital do país à época, para pedir ampliação de área demarcada
    Etnia, que se aliou ao Exército na Guerra do Paraguai, esteve entre os pracinhas na Segunda Guerra
    FABIANO MAISONNAVEENVIADO ESPECIAL A SIDROLÂNDIA (MS)Uma comitiva de índios terenas da região de Sidrolândia (70 km de Campo Grande) viajou à capital federal para exigir ampliação de terras. A notícia parece de agora, mas apareceu na imprensa carioca em 1930.
    Um dos três integrantes da viagem ao Rio de Janeiro foi André Patrocínio, pai do professor aposentado Noel Patrocínio, 81. Ele é morador da aldeia Buriti, a maior comunidade da área indígena de 2.090 hectares demarcada nos anos 1920, hoje com cerca de 5.000 pessoas.
    "O cacique disse ao meu pai: O governo mediu uma terra muito pequena, não dá para nós'", conta Patrocínio.
    A aventura não foi bem-sucedida. "Não conseguiram falar com o chefão. A vida política tem hoje seus momentos de turbulência. Imagina naquela época."
    Segundo o coautor da perícia judicial sobre a área em disputa, o antropólogo Jorge de Oliveira, a capital estava em plena Revolução de 1930. "A viagem saiu em um jornal da época, porém em um tom um pouco jocoso."
    Essa perícia, assinada também pelo antropólogo Levi Pereira, foi iniciada em 2003 a pedido da Justiça e concluiu que os 17 mil hectares reivindicados pelos terenas são terra indígena. A decisão em primeira instância foi favorável aos fazendeiros, mas o caso continua na Justiça.
    Os terenas têm presença antiga na região e, historicamente, buscaram se aproximar do homem branco. É o grupo com maior população fora de aldeias --9,6 mil, segundo o IBGE. Corresponde à quinta maior etnia do país, com 29 mil integrantes.
    Só em Campo Grande, há sete "aldeias urbanas", áreas com maior concentração da etnia. Ali, é comum vê-los trabalhando em frigoríficos.
    "O que diferencia o terena é o intenso contato com o mundo não indígena e a aliança com outros povos. Apesar disso, consegue manter seus elementos culturais mais fortes, como a língua, a dança e a atividade agrícola", explica o doutor em história Wanderley Cardoso, que hoje ensina na sua aldeia natal, em Aquidauana (MS).
    GUERRAS
    O historiador da Guerra do Paraguai (1864-1870) Francisco Doratioto diz que os terenas foram um dos grupos que se aliaram ao Exército brasileiro. Ele cita o escritor Visconde de Taunay (1843-1899), que os descreveu como "índios mansos, amigos, aliados".
    O envolvimento dos terenas com os militares se estendeu até a Segunda Guerra Mundial, quando vários deles lutaram na Europa como pracinhas da Força Expedicionária Brasileira.
    Apesar dos vários registros, os fazendeiros da região dizem que os terenas não são do território brasileiro.
    "São paraguaios. Uns alegam que lutaram a favor do Brasil, mas eu não acredito", afirma Marcos Correa, 33, dono de 3.480 hectares dentro da área reivindicada.
      Terenas criaram rede de igrejas evangélicas
      DO ENVIADO A CAMPO GRANDEOs terenas são os fundadores e principais coordenadores da Uniedas (União das Igrejas Evangélicas da América do Sul). A denominação conta apenas com pastores indígenas, está presente em várias comunidades da etnia e vem se expandindo para outros Estados.
      A Uniedas foi criada em 1972 com a ajuda de missionários alemães. De linha batista tradicional, atualmente tem 25 igrejas e 8 congregações, das quais 22 estão em Mato Grosso do Sul. As outras estão em comunidades indígenas de Mato Grosso e de Rondônia, todas fundadas por pastores terenas.
      "Os terenas têm um projeto civilizatório e uma cultura voltada ao relacionamento com os outros povos. No caso da igreja, eles se apropriaram da sua cultura", afirma o antropólogo Levi Pereira, da Universidade Federal da Grande Dourados (MS).
      Em Campo Grande, três igrejas são mantidas em áreas de maior concentração terena. "Dez, vinte anos atrás, o índio era muito discriminado. Às vezes, quando ia a uma igreja, não se sentia bem, daí a necessidade", diz o pastor Ricardo Poquiviqui. Seus cultos na capital costumam reunir 60 pessoas nos fins de semana, a maioria terenas.
      A celebração é feita em português, principalmente pela perda da língua entre os jovens. O idioma terena aparece em cantos e na Bíblia, que chegou a ser traduzida.
      Apesar da crescente disputa por terras em Mato Grosso do Sul, a Uniedas tem uma participação discreta.
      "Trabalhamos muito na questão da orientação, de suporte espiritual, até porque não temos grandes recursos financeiros", afirma Rute Poquiviqui, membro da igreja e estudante de direito.
      O pastor Ricardo diz que as ocupações são fruto do maior acesso à educação superior pelas novas gerações e da demora nos processos. "Estamos cansados de reuniões. Já falamos com todo mundo que tínhamos de falar. É deputado, governador, ministro, não tem mais com quem falar. É por isso que estourou."

        Entrevista da 2ª Suzana Herculano-Houzel

        folha de são paulo

        "Falta incentivo a ideias originais na ciência no país", diz neurocientista brasileira

        FERNANDO TADEU MORAES
        DE SÃO PAULO

        Folha ÍntegraA neurocientista Suzana Herculano-Houzel, 40, dedicou-se nos últimos anos a entender como o cérebro humano se tornou o que é. Seu trabalho a levou a ser a primeira brasileira convidada a falar no TED Global, famoso evento anual de conferências de curta duração que reúne convidados de várias áreas do conhecimento.
        Herculano apresentará em sua fala de 15 minutos, nesta quarta, os resultados de suas pesquisas sobre como o cérebro humano chegou ao número incrivelmente alto de 86 bilhões de neurônios: o consumo de alimentos cozidos. "Entre os primatas, temos o maior cérebro sem sermos os maiores. Grandes primatas, com a sua dieta de comida crua, não possuem energia suficiente para sustentar um corpo enorme e um cérebro grande."
        Na entrevista, concedida por telefone, a professora do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) dispara críticas à cultura brasileira de pesquisa científica, "que não incentiva a originalidade e a diversidade de pensamento", à pós graduação nacional, "muito fraca", e ao programa de bolsas Ciência Sem Fronteiras, "do jeito que está, parece demagogia" e defende a profissionalização da carreira de cientista.
        Luciana Whitaker/Folhapress
        A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que irá falar no TED Global, em seu laboratório na UFRJ
        A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que irá falar no TED Global, em seu laboratório na UFRJ
        *
        Folha - Sobre o que a sra. vai falar na palestra no TED?
        Suzana Herculano-Houzel - Vou apresentar o resultado do trabalho realizado no nosso laboratório, que mostra que o ser humano não é especial, nosso desenvolvimento cerebral não foge às regras que se aplicam aos outros primatas. Temos o maior cérebro primata sem sermos os maiores primatas. Como o tamanho do cérebro acompanha o tamanho do corpo, em geral, primatas maiores do que nós, como gorilas e orangotangos, deveriam ter um cérebro maior que o nosso e, no entanto, o gorila é duas a três vezes maior do que nós e nós temos um cérebro três vezes maior que o dos gorilas. Descobrimos que há uma explicação de origem metabólica para isso: quando calculamos a quantidade de energia que um primata obtém com a sua dieta de comida crua e quanto custa manter o corpo e o cérebro funcionando, descobrimos que os primatas não têm energia suficiente para sustentar um corpo enorme e um cérebro grande, com muitos neurônios. Também deveríamos obedecer à mesma regra, então nossos ancestrais conseguiram burlar essa limitação energética. Esse jeito, muito provavelmente, foi a invenção da cozinha, que transformou a maneira como aproveitamos as calorias, tornando os alimentos mais fáceis de serem mastigados e digeridos e, portanto, permitindo obter mais calorias em menos tempo.
        Com a invenção da cozinha, ter um cérebro grande deixa de ser um risco e passa a ser uma vantagem, ao mesmo tempo que nos libera para fazer coisas mais interessantes com o nosso cérebro. Poderíamos pensar que isso nos faz especiais, mas se você olhar a evolução do cérebro dos primatas, é possível perceber que há muito tempo existe uma tendência de aumento do tamanho do cérebro, mas nos nossos ancestrais e nos grandes primatas isso tinha encontrado essa barreira metabólica.
        Minha mensagem na palestra é que o que nos torna notáveis é o número alto de neurônios no córtex cerebral e conseguimos chegar a isso fazendo algo que nenhum outro animal faz que é cozinhar os alimentos.
        Recentemente dois grandes projetos ligados à compreensão do cérebro foram anunciados. Na Europa, um investimento de 1 bilhão de euros será destinado a uma simulação em computador do cérebro funcionando e, nos EUA, um consórcio de cientistas vai mapear o cérebro. Como essas iniciativas se inserem no atual quadro de pesquisa da neurociência?
        São desdobramentos do que já vinha sendo feito. Se você olhar para a história da pesquisa em neurociência, começamos tentando entender o que cada parte do cérebro faz, para que serve cada estrutura, e isso teve uma explosão extraordinária entre os anos 1990 e 2000 com as técnicas de ressonância magnética e tomografia computadorizada, que nos permitiram construir um mapa do que faz cada pedaço do cérebro. Nos últimos cinco anos, começou uma busca pela compreensão de como partes diferentes do cérebro interagem, colaboram e trocam informações. Nesse processo emerge a consciência, o autoconhecimento. Essa é a fronteira final nesse momento.
        A sua pesquisa se relaciona de alguma forma com esses projetos?
        De certa forma sim. Uma das coisas que estamos estudando e que faz parte de um artigo que acabamos de terminar é entender como os neurônios se distribuem ao longo do córtex humano [camada mais externa e sofisticada do cérebro], entre as diferentes áreas. Começamos uma pesquisa para saber qual é a relação entre a distribuição do número de neurônios e do número de sinapses, tentando entender as regras de construção do cérebro e como se dá a relação entre a distribuição de neurônios e as funções de cada área.
        As iniciativas americana e europeia de compreender o cérebro e os experimentos de interface cérebro-máquina, como do brasileiro Miguel Nicolelis, receberam bastante atenção da mídia. A senhora acha que o não cumprimento dos objetivos pode gerar alguma frustração na sociedade e até descrédito para a neurociência?
        Tudo depende de como as coisas são apresentadas. A maneira como eu entendo essa iniciativa do consórcio americano é compreender como o cérebro funciona como um todo. Mas, para vender isso para mídia, eles têm que colocar o propósito da cura do alzheimer, porque é um nome que as pessoas reconhecem e pensam "ah, isso é importante". Mas é importante que a mídia dê valor a esses assuntos, para que as pessoas passem a dar mais valor à pesquisa pelo conhecimento que geramos, e não só porque vamos curar doenças. Até porque se o público aprender a reconhecer o valor da ciência pela ciência, não tem por que ter frustração. Toda pesquisa bem feita traz, no mínimo, novas perguntas. Se a pesquisa é bem feita, não existe fracasso.
        A senhora se divide entre a pesquisa e a divulgação de ciência, algo raro na nossa academia. Você acha que há uma falha de comunicação entre os cientistas e a sociedade?
        Infelizmente a divulgação científica não é muito valorizada nem bem vista pelos cientistas. O CNPq [órgão federal de fomento à pesquisa], por exemplo, não considera a divulgação científica na conta da produtividade do cientista. Mas isso é compreensível. Dada a sobrecarga de ensino e pesquisa dos nossos cientistas, é difícil que eles ainda queiram fazer divulgação sem que isso lhes dê algum tipo de reconhecimento pelos seus esforços. Não sei se estaria fazendo divulgação se eu não tivesse voltado para o Brasil para fazer justamente isso. Depois é que eu voltei a fazer pesquisa.
        Quais são os principais problemas na maneira como se faz pesquisa científica no Brasil?
        Originalidade zero. Não existe incentivo à originalidade e à diversidade de pensamento. Quando eu cheguei nos EUA [para fazer o mestrado, em 1992], fiquei chocada ao descobrir que as pessoas não param cinco anos no mesmo lugar. Eles têm essa cultura de se mudar constantemente, o que favorece a diversidade de ideias. Aqui, a tradição é entrar na iniciação científica em um laboratório e continuar nele durante o mestrado, o doutorado e o pós-doutorado. E a tendência é a pessoa se aprofundar cada vez mais em um único assunto. Com isso, formamos jovens cientistas bitolados, tudo o que eles sabem é pensar em detalhes daquele único assunto que vêm desenvolvendo desde a iniciação científica. Além disso, a política de contratação nas universidades privilegia os ex-alunos. Criam-se colônias sem diversidade. Colônias em que você tem o fundador original, o chefe do laboratório, e as crias todas vão se espalhando ao seu redor, estudando a mesma coisa.
        Como a senhora vê o atual estado da pós-graduação no Brasil?
        O nível de exigência aqui é baixíssimo. Nos EUA e na Europa, após um ou dois anos no doutorado, você tem que apresentar o seu projeto de pesquisa original e, antes disso, precisa apresentar outro projeto de pesquisa sobre um tema que não seja da sua área só para provar a capacidade de raciocínio autônomo e original, de reconhecer um problema da ciência e propor um tratamento científico a ele. Aqui, temos um exame de conhecimentos, em que você precisa provar que domina um determinado assunto, mas com isso incentiva-se a repetir e não a gerar algo novo. No fundo, o aluno de doutorado aqui é uma pessoa que trabalha nas linhas de pesquisa de um determinando laboratório sem nenhuma exigência de que tenha contribuído de forma original para a ciência.
        A formação dada pela nossa pós-graduação é ruim, então?
        É fraca, muito fraca. Não porque faltem bons pesquisadores ou professores, mas porque não há cobrança, não se oferecem cursos com o professor ensinando na lousa, apenas seminários, como que dizendo: "O aluno que busque o conhecimento sozinho".
        Como a senhora vê o investimento do governo no programa de bolsas Ciência sem Fronteiras?
        Francamente, eu não entendo esse programa. Do jeito que está parece demagogia. Quando se começou a falar em Ciência sem Fronteiras, parecia um negócio extraordinário. Eu havia entendido que abriríamos as fronteiras nos dois sentidos, iríamos mandar jovens cientistas para fora e abrir as nossas fronteiras para os estrangeiros que quisessem vir trabalhar aqui. Poderíamos, quem sabe, acabar com o complexo de vira-lata da gente, de que só os outros que prestam, ao atrair pesquisadores de outros países. Não vemos isso acontecendo. O que se vê é uma porcentagem baixíssima de aprovação de projetos para trazer gente de fora. Pouquíssimas bolsas para enviar jovens para fazerem doutorado e pós-doutorado fora e uma massa enorme de dinheiro usada para mandar alunos de graduação para o estrangeiro, o que me choca pois, na minha avaliação, a graduação no Brasil é muito boa. Fiz graduação aqui na UFRJ e, quando cheguei aos EUA para fazer o mestrado, os professores achavam que eu era uma aluna extraordinária, pois já sabia coisas que eram dadas na pós-graduação de lá. Onde ficamos muito para trás é na pós-graduação.
        Apesar de diversos estudos mostrando o malefício das drogas ao cérebro, a senhora tem se posicionado a favor da legalização. Por quê?
        O problema maior das drogas é para aqueles que não têm nada a ver com a história e ficam presos no tiroteio, literalmente, que é a violência financiada pelo tráfico. No mundo ideal, gostaria que ninguém pudesse comprar drogas porque elas fazem mal e ponto. Mas também entendo que, por um lado, as pessoas deveriam ter liberdade para fritar o próprio cérebro em paz sem colocar as outras em risco. Vamos tornar as drogas acessíveis em farmácias, controladas pelo governo, para acabar com o tráfico. Mas sou contra a descriminalização, que só tranquiliza o usuário, que pode comprar a droga tranquilo, sem medo de ser preso. Sou a favor da legalização.
        Há uma discussão hoje em torno da diminuição da maioridade penal. Do ponto de vista da neurociência, é possível dizer que alguns desses jovens que recentemente cometeram crimes bárbaros não sabiam o que estavam fazendo?
        A adolescência é um processo que leva em torno de dez anos, as vezes até mais, e é um processo de transformação do cérebro, em que várias habilidades mudam, melhoram e a última delas é a de se colocar no lugar do outro e de ter um raciocínio consequente, entender os desdobramentos dos seus atos. Em torno de 17, 18 anos, em geral, essas habilidades de raciocínio consequente já existem e funcionam bem o suficiente para você caracterizar a pessoa como um adulto, mas é um processo. Qualquer idade que seja estabelecida vai ser arbitrária. A questão é se a idade que você escolhe como idade arbitrária é bastante segura ou não para você considerar em princípio que todos os jovens que já têm essa idade devem ter a capacidade de avaliar as consequências dos seus atos.
        Dezoito anos, então, é uma idade razoável para ser usada como marco?
        Acho perfeitamente razoável, talvez pudesse ser 19, ou 17 e meio, mas é importante reconhecer que essa idade é arbitrária. Além do mais, esses crimes hediondos cometidos por jovens não são cometidos porque a pessoa tinha 17 anos e cinco meses e, portanto, não tinha a capacidade de entender que quando ela estava jogando gasolina na dentista ela ia morrer se o fósforo fosse aceso. Uma criança tem essa capacidade. Nesse caso estamos falando de uma coisa diferente. Boa parte desses jovens que cometem crimes bárbaros, hediondos, é sociopata. Há a ideia de que a pobreza é culpa da classe média, de que o bandido é culpa da sociedade que não deu oportunidade. E é nesse tipo de sociedade que o sociopata floresce, uma pessoa perfeitamente sã, racional e capaz, por isso, de manipular os outros. Sociopata é um predador, causando problemas para todo mundo ao redor. Ele faz isso tanto melhor quanto mais as pessoas pensarem "pobrezinho, não é culpa dele, ele não fez nada de errado, ele não tem de ser punido". As pessoas nascem sociopatas e a sociedade tem de se saber como lidar com isso.
        Como identificar esse jovem?
        Psiquiatras bem treinados sabem fazer essa avaliação. Há sociopatas que jamais vão chegar a matar uma pessoa, mas ainda assim ele pode criar um monte de problemas para as pessoas ao redor dele. Mas considerando apenas os sociopatas que cometem crimes hediondos, eles devem ser reconhecidos e tratados como de fato de são, como uma pessoa cuja taxa de recuperação e de reinserção na sociedade é praticamente zero. E cuja taxa de reincidência é altíssima, não importa a idade. É isso que tem de ser levado em conta. No fundo, não importa a idade da maioridade penal.
        A sra. vem defendendo a profissionalização do cientista. O que é isso?
        Minha proposta é que o jovem que faz ciência tenha esse trabalho reconhecido, que seja considerado um cientista de fato. Um dos problemas do jovem que trabalha com ciência é que a própria família acha que eles estão de vagabundagem. O trabalho de pesquisa que um jovem faz sob a alcunha de estudante de pós-graduação é de verdade. Terminado o período da pós-graduação, esse jovem continua não tendo a possibilidade de ser contratado como cientista. São raros os institutos de pesquisa que contratam pesquisadores de fato no Brasil. Na grande maioria dos lugares, esse jovem vai ser contratado como professor. O primeiro problema é reconhecer que a pessoa que faz ciência tem um trabalho: ela se chama cientista. Hoje, eu não posso preencher uma ficha de dados e declarar como minha profissão cientista. Essa profissão não existe. E isso contribui para desvirtuar a pós-graduação, pois como o jovem que se forma não pode ser contratado como um pesquisador, a única maneira de ele continuar fazendo pesquisa é ele entrar para a pós-graduação. E ela então vira uma tábua de salvação, como a única maneira de continuar trabalhando no laboratório. E eles são a verdadeira mão de obra da pesquisa no Brasil. O número de publicação de artigos no país vem crescendo de mãos dados com o aumento no número de alunos de doutorado. Quem faz a pesquisa no Brasil são esses "alunos" da pós-graduação que, para mim, são cientistas, são trabalhadores, que deveriam ser reconhecidos como tais, com os direitos e deveres que todo trabalhador tem.
        E o que a sra. propõe para melhorar esse quadro?
        Proponho que se crie a profissão de cientista e que, para o jovem exercer a função de pesquisador, ele tenha de ser contratado. Se ele vai ou não fazer a pós-graduação também, isso passa a ser uma coisa à parte. A pós poderia passar a ser reservada, como deveria ser, àqueles alunos que demonstrem capacidade de raciocínio original, de propor novas ideias. A profissionalização do cientista não só resolveria o problema de o jovem recém-formado não ter o status de trabalhador com férias, décimo terceiro e tudo o mais, mas também ajudaria a resolver o problema da pós-graduação ser hoje uma tábua de salvação para os nosso jovens e não ser valorizada como ela deveria ser.
        Como tem sido a repercussão dessas ideias dentro da universidade?
        Críticas só de longe, por e-mail, sem mostrar a cara. Recebo muito apoio de alunos, que querem ter o seu trabalho reconhecido. Eu não entendo muito bem porque a ideia de profissionalizar a ciência incomoda tanto algumas pessoas. Mas as pessoas que se incomodam são as que estão lá no alto, são os diretores de institutos etc. Fica a impressão ruim de que eles não querem perder a mão de obra quase de graça. É muito comum ouvir: "Você está ganhando dinheiro para estudar". Esse é o tipo de mentalidade que mata a ciência. Isso é uma herança do século 18, pois os primeiros cientistas eram diletantes de famílias ricas, que não precisavam de dinheiro para fazer pesquisa. Hoje a realidade é outra, mas faltou mudar essa parte da pesquisa ser reconhecida como trabalho que é.
        Quais são os próximos passos da sua pesquisa?
        Estamos trabalhando com animais de cérebro enorme. Será o teste da nossa hipótese de que é o número de neurônios que importa e não simplesmente o tamanho do cérebro ou a relação com o tamanho do corpo. Estamos terminando agora de estudar um cérebro de elefante, depois baleias e estamos começando a trabalhar com pássaros para entender a diversidade de maneiras com o cérebro é construído e a relação que isso tem com as capacidades cognitivas e comportamentais dos diferentes animais. Mais adiante, vamos estudar a relação entre a construção do cérebro, o metabolismo e o sono. Por que animais de grupos diferentes têm necessidades diferentes de sono? E como isso está relacionado com o metabolismo do cérebro e o número de neurônios.

        RAIO-X SUZANA HERCULANO-HOUZEL
        NASCIMENTO
        No Rio de Janeiro, em 1972
        FORMAÇÃO
        Bióloga formada pela UFRJ, é professora da mesma instituição e fez pós-doutorado no Instituto Max-Planck de Pesquisa do Cérebro (Alemanha)
        DIVULGAÇÃO
        Publicou seis livros --o último, "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor", compilação de seus textos publicados na Folha, para onde escreve desde 2006. Também é colunista da revista "Mente & Cérebro"
        PRÊMIOS
        Recebeu o Jabuti de Literatura e o Prêmio José Reis de Divulgação Científica

          O discreto perfil acadêmico dos economistas - Rogério Meneghini [Tendências/debates]

          folha de são paulo
          ROGERIO MENEGHINI
          O discreto perfil acadêmico dos economistas
          Os impactos positivos motivados por orientações dos economistas brasileiros resultam mais de "think tanks" do que da academia
          Os indícios de uma crise econômica brasileira têm incitado analistas a suspeitar da competência de nossos economistas. Embora alguns questionem se economia é uma ciência, não há dúvidas de que ela é ancorada em teorias.
          É possível estimar-se a competência de nossos economistas nesse contexto? Há sem dúvida um caminho para isso. Hoje, há bases de dados que permitem medir prestígio público e acadêmico para as diversas áreas do conhecimento.
          No primeiro caso, se teria uma medida de visibilidade por meio de exposição na mídia. No segundo, a medida de prestígio seria alcançada pelas publicações em revistas acadêmicas especializadas. É de se esperar que, em ambas as categorias, prestígio tenha uma correlação com competência.
          No cenário nacional, já se tem uma surpresa. Ao contrário do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os economistas de renome público são também autoridades acadêmicas, no Brasil há uma dicotomia entre os economistas mais dedicados à academia (assim reconhecidos pelo CNPq) e aqueles distinguidos publicamente --são praticamente dois grupos distintos.
          A segunda surpresa é que, em ambos os grupos, as publicações acadêmicas são exíguas. A terceira surpresa é que o percentual de economistas nacionais que obtiveram doutorado no exterior sob a supervisão de conceituados acadêmicos é superior aos de todas as demais áreas, alcançando 70%.
          O que se pode inferir desses dados? Primeiro, que a contribuição brasileira para o corpo de conhecimento universal em economia é muito baixa. De fato, de acordo com a base Thomson-Reuters, enquanto no cômputo geral de publicações de artigos científicos o Brasil ocupa a 13ª posição, em economia a posição é a 30ª. Em um marco de qualidade e impacto, medido por citações por artigo, a posição é ainda inferior, 42ª.
          Essas informações são intrigantes. Elas fazem aflorar dúvidas quanto à aplicação acertada dos conhecimentos da área econômica aos problemas nacionais. Como, porém, deixar de reconhecer dados que falam em favor dos nossos economistas. Um, que os exames de ingresso em instituições nacionais prestigiosas de ensino de economia são muito competitivos, abrindo caminho para alunos de qualidade. E outro, o de que que o ensino em nível de graduação dessas instituições é de boa qualidade.
          É difícil se esquivar da impressão de que, no Brasil, há uma linha divisória entre graduação e pós-graduação em economia. Talvez o baixo encanto por produção científica frente à atração que setores não acadêmicos exercem (mercado, consultoria, política e comunicação pública) afastem os economistas de uma pós-graduação árdua, pouco compensadora financeiramente e com baixa exposição pública.
          Talvez isso seja parte da explicação pela alta propensão dos egressos da graduação em economia em buscarem doutorado e pós-doutorado no exterior.
          Óbvio está que esporadicamente surjam impactos positivos em nossa economia motivados por orientações dos economistas. Porém, é mais provável que essas se encontrem nos "think tanks" do que na academia. Um bem sucedido foi o Plano Real.
            NABIL BONDUKI
            Reduzir o custo e melhorar o transporte
            Embora o valor das tarifas pese no bolso do trabalhador para um transporte de qualidade sofrível, seria pior sem a isenção de impostos
            A isenção de impostos federais para o transporte coletivo, que permitiu um reajuste abaixo da inflação das tarifas de ônibus, trem e metrô, ou seja, a redução do valor real da passagem, pode representar uma inflexão importante na política de mobilidade no país.
            Se fosse aplicado o índice de inflação desde o último reajuste e a prefeitura não subsidiasse a tarifa, ela alcançaria R$ 4,13. Com o subsídio municipal, seria R$ 3,43. A isenção federal possibilitou uma redução de 6,71% na tarifa, fixando os R$ 3,20 adotados.
            Embora esse valor pese significativamente no bolso do trabalhador de baixa renda para um transporte de qualidade sofrível, a situação poderia ser pior caso essa medida não tivesse sido tomada.
            O governo federal, preocupado com o nível de emprego na indústria automobilística, vinha privilegiando apenas a redução dos impostos dos carros, estimulando seu consumo. A nova postura, resultado da interlocução do prefeito Fernando Haddad com a presidenta Dilma, poderá representar, se tiver continuidade, em um ponto de inflexão importante para estimular o transporte coletivo.
            É necessário estabelecer mecanismos para transferir recursos do uso do automóvel para o transporte coletivo, como, por exemplo, taxar mais fortemente os modelos de luxo e cobrar a Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) sobre os combustíveis para financiar obras de mobilidade sustentável. Entre elas, a construção de novas linhas de metrô, BRT e corredores de ônibus, a implantação de ciclovias, a recuperação de calçadas e a melhoria nas transferências intermodais, pois bons acessos para os pedestres são fundamentais para o uso do transporte coletivo.
            Não se trata de impedir o consumo do carro, mas estimular seu uso racional e sustentável. A melhoria do transporte coletivo --com mais eficiência, conforto, rapidez e redução do custo-- é a melhor forma de limitar o uso do automóvel nos deslocamentos urbanos cotidianos, com impacto positivo no trânsito.
            Em São Paulo, uma maior redução na tarifa exige, por um lado, rigor na aferição dos custos das empresas de ônibus e, por outro, ganho de eficiência do sistema. Isso deverá ocorrer nos próximos anos, com a implantação de 150 quilômetros de corredores de ônibus e outro tanto de faixas exclusivas, conforme o plano de metas de Haddad.
            A implantação do Bilhete Único Mensal, a partir de novembro, compromisso de campanha do prefeito, será fundamental para garantir o direito ao transporte coletivo e à própria cidade. Com esse bilhete, o cidadão poderá usar os ônibus quantas vezes precisar durante todo o mês, pagando o equivalente a duas passagens diárias nos dias úteis, ou seja, por volta de R$ 147 por mês --os estudantes pagarão a metade do valor. O governo estadual precisa se integrar à proposta, incluindo o metrô e os trens metropolitanos no Bilhete Único Mensal.
            Com ele, os trabalhadores que recebem vale-transporte ou passagens pagas pelo empregador poderão se deslocar para qualquer outra atividade sem custo adicional, ganhando o direito de circular gratuitamente para o lazer, a qualificação profissional e os encontros familiares e sociais.
            A oferta qualificada de transporte noturno e nos fins de semana, que também está programada, representará um benefício enorme para a juventude e trabalhadores que realizam atividades fora dos horários convencionais.
            A redução do custo do transporte coletivo é essencial para que as passagens pesem menos no bolso do usuário. Isso exige maiores investimentos em corredores de ônibus, a reorganização das linhas, maior eficiência do sistema e controle social dos custos das empresas para reduzir gorduras que encarecem o valor das passagens.

              Quadrinhos

              folha de são paulo
              cHICLETE COM BANANA      ANGELI
              ANGELI
              PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE
              LAERTE
              DAIQUIRI      CACO GALHARDO
              CACO GALHARDO
              NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES
              FERNANDO GONSALES
              MUNDO MONSTRO      ADÃO ITURRUSGARAI
              ADÃO ITURRUSGARAI
              BIFALAND      ALLAN SIEBER
              ALLAN SIEBER
              MALVADOS      ANDRÉ DAHMER
              ANDRÉ DAHMER
              GARFIELD      JIM DAVIS
              JIM DAVIS

              KLEDIR RAMIL - Vitor Ramil

              ZERO HORA - 10/06/2013

              Vitor Ramil é um sujeito perturbado. Agora mesmo está lançando um disco chamado Foi no Mês que Vem, cá entre nós, um erro grosseiro de concordância. Pensei em ligar pra ele e comentar o tropeço na gramática, mas desisti. Não me daria ouvidos. Vive fora da casinha, em uma cidade hipotética que batizou de Satolep.

              Um cara que lê as coisas de trás pra frente e não tem noção de tempo e de espaço não pode ser levado muito a sério. Outro dia, publicou um texto inverossímil onde fazia confidências sobre nossa intimidade familiar. Sim, somos irmãos, o que talvez explique certos distúrbios de comportamento e o traço obsessivo.

              Quando nasceu, Vitor foi muito bem recebido pelos irmãos mais velhos, especialmente porque foi contratada uma babá desinibida, que ensinou aos maiores novas práticas de relacionamento humano. Bem interessantes. Portanto, não procede a acusação de que tentamos eliminar o caçula com uma batida de abacate envenenado. Não faz sentido, perderíamos a babá. Seria como matar a galinha dos ovos de ouro.

              Na infância, Vitinho aparentava ser uma criança normal até o dia em que, com 12 anos de idade, venceu um concurso de contos que mudou sua vida. O tema era “chocolate” e o prêmio, uma viagem a Ilhéus, Bahia.

              Segundo a lenda, esse primeiro contato com o clima tropical da terra de Jorge Amado teria desestabilizado emocionalmente o guri e inspirado o pequeno autor a escrever, anos mais tarde, um ensaio sobre a Estética do Frio. Alguns historiadores preferem a versão de que teria sofrido um choque cultural ao ser agarrado por uma morena cor de jambo, no meio de uma plantação de cacau. Não sei.

              Quando jovem, o artista participou de uma expedição a lupanares de Montevidéu, com o objetivo de aprofundar seus estudos de tangos e milongas. Mais do que o lunfardo, a cor acinzentada do cimento penteado da capital uruguaia ficou impregnada para sempre em seu subconsciente e teria contribuído para a melancolia presente na maioria de suas canções.

              Apesar dos contratempos, Vitor foi sobrevivendo. Desenvolveu uma capacidade rara de observação e tem produzido obras artísticas de indiscutível beleza. É um sujeito perturbado, no bom sentido: é um artista inquieto.

              Elevado pelo frentista de um posto de gasolina de Pelotas à categoria de “o maior cantor da metade sul do Rio Grande”, é o mais bem acabado dos irmãos Ramil. Nós, os que viemos antes dele, fomos apenas experimentos. Dalva e Kleber estavam ensaiando.

              Aécio Neves

              folha de são paulo
              Transformação
              Ao lado do fim da inflação e da conquista da estabilidade econômica, uma outra mudança crucial para a sociedade brasileira foi produzida no governo do PSDB: a cria-ção de uma inédita rede de proteção social, com políticas nacionais coordenadas con-tra as causas estruturais da pobreza. Desde então, a realidade social do país vem sen- do transformada.
              Naquele período, o benefício de um salário mínimo mensal aos idosos e às pessoas com deficiência foi implantado. O Fundef se tornou fonte estável de recursos para a educação e o SUS foi consolidado.
              O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, de 1996, foi o primeiro programa nacional centrado em transferência monetária. Depois veio o Bolsa Escola, e ambos estimulavam a matrícula e a frequência na rede escolar. Surgiu, entre 2000 e 2001, o Fundo Nacional de Combate e Erradicação da Pobreza. O Auxílio Gás é de 2001. O Bolsa Alimentação também, instituído para complementar a renda de mães gestantes e seus filhos sob riscos nutricionais.
              Nessa época, iniciou-se a organização do Cadastro Único dos Programas Sociais (decreto nº 3.877/2001). O Cartão do Cidadão, de 2002, enterrou a velha política clientelista. Pela primeira vez, milhões de famílias foram atendidas com programas de transferência de renda, que, em seguida, foram unificados e tiveram seu alcance ampliado durante o governo Lula.
              Esse período de grandes inovações e avanços foi, no entanto, substituído por anos de mera administração da pobreza no país.
              Há, hoje, no Brasil, um farto elenco de novas ideias que precisa ganhar o debate nacional, para que o curso das políticas de transferência de renda não se desvie de seu mais importante sentido --o da imprescindível transformação da realidade de milhões de brasileiros aprisionados em um sem-número de carências sociais. Em outras palavras, o de criar condições para que as famílias pobres tenham o direito de deixar a pobreza.
              Temas como a garantia do valor real dos benefícios ou a adição de bônus para pais que voltem a estudar, ou para filhos que completem o ensino fundamental e o ensino médio, como forma de estimular a mobilidade social, merecem ser discutidos.
              É estratégico acompanhar a realidade das famílias beneficiadas, que não podem se resumir a números de estatísticas. O país precisa ter metas a serem alcançadas e, em respeito aos brasileiros, fazer com que essas políticas venham a ser verdadeiras portas de saída da miséria.
              A travessia para um novo patamar de desenvolvimento nos exigirá bem mais que o atual paternalismo salvacionista, que gerencia a pobre- za sem compromisso com a sua superação.

              O curto e o longo prazo - Renato Janine Ribeiro


              VALOR ECONÔMICO - 10/06/2013

              Uma revolução ética ocorreu no Brasil, nos últimos anos. Refiro-me à inclusão social, que não só melhorou a vida dos mais pobres mas também retirou da miséria a maior parte de quem vivia na pobreza extrema. Uma condição indigna, mas que deve envergonhar não o miserável e sim os que aceitam que um país "que não é pobre, mas injusto" (a expressão é de Fernando Henrique Cardoso) tenha parte significativa de sua população seriamente prejudicada porque contou com o azar, na loteria do nascimento, de vir ao mundo numa família pobre ou muito pobre.

              Pouco se fala do caráter ético dessa grande mudança na sociedade brasileira. Na verdade, a maior parte do que se diz sobre ética na política, em nosso país, se limita à corrupção. Ela é inaceitável e vezes sem conta já a ataquei, aqui ou em cursos. Mas ela é difícil de medir e, assim, a acusação de corrupto facilmente se presta a ajustes de contas políticos. Mais que isso: o tema do desvio do dinheiro público é geralmente utilizado para retirar a atenção da máxima indignidade política, que é tolerar, num país que não é pobre (repito), a injustiça que é a miséria e mesmo, à medida que a economia progride, a pobreza. Alguns exemplos. Começo em 2000, quando o "New York Times" publicou uma matéria, "Rich Brazilians rise above rush-hour jams", assinada por seu correspondente Simon Romero, na qual vários entrevistados se orgulhavam de que São Paulo fosse a terceira cidade do mundo em número de helicópteros privados; poucos atentaram para o choque de tanto dinheiro dispendido em conforto particular, em face de gritantes problemas sociais na mesma metrópole (encontra-se em www.nytimes.com/2000/02/15/world/sao-paulo-journal-rich-brazilians-rise-above-rush-hour-jams.html). Recentemente, a luz lançada sobre o estilo de vida dos dois filhos de Eike Batista chamou a atenção não tanto para o luxo deles, mas para a aceitação da desigualdade, sem muitos problemas, em nosso meio social. E talvez o marco no jornalismo brasileiro, nesta área, ainda seja "Grã-finos em São Paulo", livro de Joel Silveira que abria com a reportagem-título, de 1943, seguindo-se uma matéria sobre as péssimas condições de trabalho dos mineiros de Santa Catarina: um contraste discretamente apontado, que marcou época, mas nem por isso mudou a sociedade.

              Medidas como a Bolsa Família e as ações afirmativas para o ingresso no ensino superior reduzem o azar do nascimento. Ambas deveriam ser plenamente endossadas por liberais autênticos. Isso porque um princípio básico do verdadeiro liberalismo é que, se não precisa haver igualdade no ponto de chegada, ela tem de existir no ponto de partida. O ideário liberal recusa o paternalismo que há, por exemplo, quando se perdoam a indolência ou a incompetência (no "ponto de chegada"). O liberal quer a concorrência. Mas esta só é legítima se todos partem do mesmo patamar. Se um começa a corrida com chumbo preso nas canelas, está errado. É a mesma coisa que alguém entrar na competição da vida com uma formação familiar e escolar deficiente. A Bolsa Família pretende reduzir a deficiência no primeiro ponto, as ações afirmativas na segunda.

              Mas, se há este forte sentido ético nas políticas de inclusão social - em especial na mais consolidada Bolsa Família, elogiada até pelo FMI e com efeitos mostrados em estudos sérios, entre os quais o recente "Vozes do Bolsa Família", de Walquiria Leão Rego - elas, justamente por serem altamente éticas, não devem durar muito tempo. Explico-me. Elas procuram atender a uma emergência. Emergência, em linguagem médica, não se confunde com urgência: porque não é apenas pressa, é risco de vida. Falando metaforicamente, a pobreza pode ser letal para a sociedade. Ela requer tratamento rápido. Eliminar a fome, por um lado, e proporcionar acesso à universidade, por outro, são duas pontas desse tratamento.

              Essas medidas são uma espécie de UTI da sociedade. Mas, por isso mesmo, não podem durar muito tempo. Passado o tratamento intensivo, chega a hora da clínica. E cabe a pergunta: o que será o Brasil, uma vez atingido um nível decente de inclusão social? O que pretendemos para o país, quando tudo o que depende da sorte e do azar em nossa vida social tiver cedido a vez ao que resulta do mérito e do empenho? Porque hoje nossa sociedade não está hierarquizada com base nos méritos, mas sim na diferença de nascimento, temperada sim, mas apenas em parte, pelo empenho de cada um. Dizem que nas famílias de ricos o primeiro monta a fortuna, o filho a gasta e o neto a esgota - o que quer dizer que a incompetência pode durar duas gerações. Deveria durar menos.

              Insisto. Temos duas tarefas importantes. Uma é completar os avanços sociais destes anos. Falta muito. A força do PT e a fraqueza do PSDB têm-se devido, desde 2002, à maior competência e empenho do primeiro nesta direção. Mas a outra tarefa é pensar o depois. Não haverá depois, porém, sem o antes. Não se pode usar o futuro como desculpa para não resolver, no presente, o legado ruim de um passado que inclui a escravidão. Mas os tucanos fariam bem em não minimizar a herança maldita - que não é deles, é do país - e os petistas agirão corretamente se, mesmo quando são coroados pelos elogios da diretora do FMI, tiverem a clara noção de que a Bolsa Família e as cotas na universidade não vieram para ficar, mas devem depois ser sucedidas por projetos mais sustentáveis e permanentes de país. Aí, talvez, a premência ética não seja a mesma, porque teremos saído do estado de emergência social; haverá ainda uma questão ética, mas que já não cabe no espaço da coluna de hoje.