sábado, 1 de junho de 2013

A fome de palavras - Jose Castello


O GLOBO - 01/06/2013

Twitter não quer competir com a mídia

O presidente do Twitter, Dick Costolo, disse durante conferência na Califórnia que não quer competir com a mídia tradicional, mas sim fazer parcerias. Nessa linha, a empresa lançou o TV Ad Targeting, que permite sincronizar campanhas de TV com tweets promocionais.

folha de são paulo

Twitter deve se posicionar como principal mídia social de divulgação de notícias


 
MICHAEL WOLFF
DO "GUARDIAN"

O Twitter, que começou como uma ferramenta para compartilhar postagens de blogs abreviadas, agora chegou também a grande parte da imprensa. Esse pode ser o avanço mais significativo para a divulgação de informações desde, se não o linotipo e o telégrafo, ao menos, a transmissão de TV via cabo.
A cada nova notícia, a presença e a influência do Twitter avançam. Ele é um "termômetro" em tempo real e, para cada vez mais consumidores, é um local de notícias passivas ou de bastidores, como as rádios locais foram um dia, mas em uma escala internacional.
Isso representa um mar de mudanças para a mídia tradicional, o levante de uma plataforma nova e central, mas talvez não seja essa evolução que o Twitter esperava. entretanto, a imprensa como um todo está analisando o caso.
Os anunciantes se tornam cada vez mais resistentes não só aos jornais, mas também ao mercado de notícias em geral. O Twitter poderia ter uma proposta mais atraente se tivesse se tornado uma ferramenta de microblog para interesses especializados e um setor de nicho para escritores, que chamam mais a atenção de anunciantes devido ao público segmentado.
Mas o Twitter acabou no setor de compartilhamento de conteúdos jornalísticos. E o mercado midiático pode ser muito bom para quem se posiciona como líder, como um canal necessário e confiável --senão o único.
A direção do Twitter está clara: embora ainda incipiente, ele é um ponto focal para a distribuição de notícias. O site vem se tornando o primeiro local em que as pessoas procuram informações.
Quase todos os profissionais de imprensa buscam dados no Twitter --tanto os funcionários, quanto as próprias empresas jornalísticas, percebem a funcionalidade da ferramenta. Agora, o microblog precisa ganhar dinheiro com isso. Entretanto, o caminho não é criar conteúdos próprios. A companhia fará isso aumentando sua dominância e influência como redistribuidor de notícias.
Kimihiro Hoshino -11.mar.11/AFP
Twitter deve exercer uma dominância desproporcional sobre os profissionais de imprensa
Twitter deve exercer uma dominância desproporcional sobre os veículos de comunicação
Aqui encontramos pontos de inflexão entre a antiga e a nova mídia. A imprensa antiga --seja em se tratando de músicas, livros ou programas de TV--, desesperada para seguir sua audiência, se alinha com os novos distribuidores digitais, como iTunes, Amazon e Netflix. Mas a questão é que, diferentemente da mídia de outros tempos, um distribuidor em pouco tempo chega a uma posição singular, sem competidores reais.
Ser um distribuidor primário significa ter um controle extraordinário. Quer dizer que não há opções. Não há outra forma de atingir o mercado.
O futuro financeiro do Twitter não está nos tuítes isolados de internautas, mas no relacionamento com os principais veículos de imprensa e produtores de conteúdo. É dessas organizações que o site quer se tornar uma ligação necessária ou até mesmo um "parceiro".
Na semana passada, o microblog anunciou uma série de acordos com produtores de conteúdos, como Time Inc, Bloomberg, Discovery, Vevo, Vice Media, Condé Nast Entertainment e Warner Music Group, em um programa chamado Twitter Amplify, que, basicamente, junta anunciantes e empresas sobre o guarda-chuva do Twitter.
O Twitter avança em participação, alcance e velocidade de notícias, transformando a forma de divulgação de conteúdos. Mas, nesse cenário, a empresa tentará usar essa nova realidade a seu favor. Esse não é um curso conspiratório ou antinatural: todas as principais plataformas digitais devem exercer uma dominância desproporcional sobre as indústrias que mais necessitam --esse é o objetivo.
Com a web repleta de investidores e membros de conselhos compartilhados (investidores-chave do Facebook são também do Twitter; Jeff Bezos, da loja virtual Amazon, pessoalmente investe no microblog há muito tempo), a indústria da tecnologia em si não é propícia para oferecer um competidor para o Twitter e uma alternativa para o mercado editorial.
O Google Reader, que tem função parecida com a do Twitter atualmente, será descontinuado no dia 1º de julho.
O confundador da rede de microblogs, Ev Willians, deixou a gerência ativa da empresa em 2010 e desde então desenvolve o Medium, uma plataforma com o mesmo estilo do Twitter, mas que oferece postagens mais longas, como um sistema de blogs. Esse é um potencial competidor ao menos para o Twitter, que pode futuramente até mesmo comprá-lo.
Portanto, fica a cargo das companhias de comunicação a produção de uma alternativa para sua própria obsolescência, subordinação e perda de controle da ferramenta de divulgação. O motivo pelo qual grandes veículos de imprensa, como o "New York Times", estariam pensando em algo diferente disso desafia a lógica.
Mas, indubitavelmente, as companhias produtoras de conteúdos não têm nem a vontade, nem a fórmula alternativa para o Twitter.
De certa forma, o microblog lembra muito uma impressora: oferece uma função necessária. Uma impressora cheia de poderes que está unicamente posicionada para influenciar o que você diz, como você dirá e tendo seu próprio nível de participação de lucros. Mas há muitas impressoras e nenhuma delas é superpoderosa. Haverá apenas um Twitter.
Tradução de LUCAS AGRELA

Lendo sonhos em tempo real - Fernando Reinach

folha de são paulo
Fernando Reinach - O Estado de S.Paulo
Existe uma janela que nos permite observar o que se passa em nossa mente enquanto dormimos. São os sonhos. Quando acordamos, muitas vezes temos a impressão de que tivemos sonhos longos e complexos. Outras vezes nos lembramos somente de uma cena ou de uma sensação. Mas a verdade é que não sabemos exatamente quando o sonho foi criando por nossa mente. Ele pode ter se formado nos últimos momentos antes do despertar, horas antes, ou imediatamente no momento em que acordamos.
O que sabemos com certeza é que, se a pessoa for acordada em certos estágios do sono (por exemplo quando os olhos se movem rapidamente), ela é capaz de relatar que estava sonhando. Em outros estágios do sono, relata que não estava sonhando. Mas isso não é uma prova que não estava sonhando, afinal reportamos somente o que nos lembramos.
Para compreender o que se passa durante a formação dos sonhos, é necessário um método capaz de "ler" nossos sonhos independentemente do que reportamos ao despertar. Foi exatamente isso que um grupo de cientistas japoneses conseguiu desenvolver: um método capaz de decodificar nossos sonhos a partir de nossa atividade cerebral.
Equipamentos de ressonância, semelhantes aos usados em hospitais, são capazes de medir a atividade de cada área do cérebro. Faz anos que os cientistas são capazes de associar a ativação de certas áreas do cérebro a um tipo de pensamento ou visão. Olhar para um cachorro ativa certos grupos de neurônios, sentir medo ativa outro grupo, e assim por diante. Foi com base nessas descobertas que foi possível desenvolver o método de ler sonhos.
Teste. Três voluntários concordaram em dormir dentro de uma máquina de ressonância, ligados a um eletroencefalógrafo capaz de detectar quando os voluntários adormeciam. O voluntário deitava no equipamento de ressonância e tentava dormir enquanto a ressonância media a cada segundo a atividade de todas as regiões do cérebro. Assim que ele adormecia, os cientistas acordavam a pessoa e pediam para ela relatar o que estava sonhando. Ela relatava oralmente e voltava a dormir. Quando estava dormindo novamente, os cientistas esperavam cinco minutos e o coitado era acordado e relatava o sonho. Dessa maneira, os cientistas obtiveram o relato de 672 sonhos de três voluntários e simultaneamente a atividade de todas as regiões do cérebro nos minutos e segundos que antecederam o despertar e o relato do sonho.
Usando esses relatos, os cientistas identificaram as palavras e imagens mais frequentes. Com os voluntários acordados, as imagens relacionadas às palavras foram mostradas e, simultaneamente, a atividade cerebral foi medida. Com base em todos esses dados, um computador foi programado para aprender a associar padrões de atividade cerebral a certos grupos de imagens e palavras e a organizar esses padrões ao longo do tempo. Os seja, descrever o sonho.
Em um segundo passo, os cientistas submeteram ao computador somente os dados obtidos pelo equipamento de ressonância (a atividade de cada região do cérebro) durante os nove segundos que antecederam o despertar do voluntário e pediram para o computador descrever o que o voluntário estava sonhando. O resultado é impressionante: o computador gerou uma descrição do sonho. A descrição do computador foi comparada ao que os voluntários descreviam ao acordar. Nos casos em que o sonho era principalmente visual, com imagens vívidas o computador foi capaz de fazer previsões muito precisas e acertou 80% dos sonhos. Veja um exemplo:
Computador: "Imagem de um homem, comida, carro na rua". Relato do voluntário: "Um homem estava procurando comida em um carro estacionado na rua".
Medo. Quando os sonhos envolviam o sentimento "estava com medo de algo desconhecido", o computador acertava muito menos, mas na média o conteúdo de 60% dos sonhos foi decodificado corretamente pelo computador.
É claro que esses resultados ainda representam o início de uma nova linha de investigação e, no estado atual da tecnologia, o computador claramente não é capaz de descrever a riqueza de detalhes que caracteriza os sonhos de cada um de nós. Mas é impressionante que sejamos capazes de ter uma primeira ideia do que uma pessoa está sonhando antes de ela acordar.
Esse resultado comprova de maneira experimental o que já suspeitávamos: que o sonho que nos lembramos ao acordar é o que estávamos sonhando imediatamente antes de acordarmos.
Mas essa tecnologia também abre novas possibilidades. É possível identificar o conteúdo de todos os sonhos que são gerados durante uma noite (mesmo os que não nos lembramos) e o conteúdo de sonhos que, por serem muito assustadores ou estranhos, não somos capazes de lembrar.
Sem dúvida, essa nova tecnologia aumenta muito a janela que nos dá acesso ao inconsciente. Freud ia gostar dessa possibilidade.

A CLT e seu tempo - Walter Ceneviva

folha de são paulo
A CLT e seu tempo
Avançando do art. 10 ao art. 127, são poucos os dispositivos que mantiveram a redação
A comemoração do Dia do Trabalho não coincide com a data em que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) começou a vigorar. Publicada em maio, somente entrou em vigor no dia 10.nov.1943. Incluiu muitas novidades nos direitos material e processual, uniformizados nacionalmente. Vistas, porém, as mudanças de costumes e o progresso científico, a norma de 1943 é hoje uma verdadeira colcha de retalhos.
A CLT surpreendeu, ao ser editada, boa parte da força de trabalho, desprovida de fontes confiáveis de informação fora do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Antes, o poder dominante do empregador limitava a luta do trabalhador pelo reconhecimento de seu direito. Depois, sofreu modificações substanciais que continuam.
Falou-se muito da influência de Mussolini, líder do fascismo italiano, sobre os criadores da Consolidação. A influência existiu, no plano doutrinário. Não subsistiu por longo tempo: em 1945, terminou a Segunda Guerra Mundial, na Europa e na Ásia, com 30 milhões de mortos. Seguiram-se modificações radicais de usos e costumes.
Servem de exemplo a facilidade da comunicação em todo o planeta e inventos variadíssimos, da divisão do átomo à caneta esferográfica. No campo do trabalho, vieram a difusão do serviço noturno e a eletrônica. A aviação e a televisão revelaram o mundo. A inserção da mulher em todos os campos da atividade remunerada, fora de casa, foi a marca humana das novidades.
Houve, ainda, as enormes alterações no direito privado interno e no direito comercial externo. Exigiram ajustes em proporções bem maiores das que a história anotara até então. A transformação ainda não se completou.
O Poder Público foi obrigado a se atualizar em curto prazo. No Judiciário, a crescente importância da Justiça do Trabalho exigiu reformulação de base. Se o leitor quiser verificar a súmula fiel do que houve, basta ler o segundo capítulo do título 1º da Constituição, a contar do art. 6º, onde são declarados os chamados direitos sociais.
Compreendem, na mais abreviada síntese: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, à infância e assistência aos desamparados. O novo papel da mulher foi reconhecido em profissões impensadas no começo do século 20, nas relações trabalhistas, até em concessões não asseguradas ao homem.
A marca do conjunto está na intensidade e na velocidade das mudanças, em todos os tipos de trabalho, desde serviços mais simples até sofisticadas formações técnicas, forçadas pela evolução dos novos inventos e da sua operação. Os 34 incisos do art. 7º da Carta dão súmula incompleta de tais mudanças.
Aguarda-se ainda, nos dias que correm, a transformação da categoria dos trabalhadores domésticos. Na CLT, o leitor pode fazer um teste. Avançando do art. 10 até o art. 127 (tomados arbitrariamente para este exemplo), são poucos, muito poucos, os dispositivos que mantiveram a redação original.
No 2014 que se aproxima, caminharemos para a consolidação das posições avançadas, desde 1950. Recomendará o equilíbrio, pois a velocidade das transformações não foi acompanhada pela reestruturação do direito. É tempo de luta para harmonizar o rumo do século 21 nas correntes da vida.

LIVROS JURÍDICOS
CONCESSÃO FLORESTAL
AUTOR Raul Miguel Freitas de Oliveira
EDITORA J. H. Mizuno (0/xx/19/3571-0420)
QUANTO R$ 70 (372 págs.)
Tese de doutorado da Fadusp faz avaliação pioneira do efeito da Lei n. 12.727 e do Decreto n. 7.830 em tema pouco tratado no Brasil. No prefácio, Maria Sylvia Zanella Di Pietro acentua a amplitude da obra e a avaliação dos instrumentos de tutela da nossa flora. São cinco capítulos.
TAXA
AUTOR Roberto Ferraz
EDITORA Quartier Latin (0/xx/11/3101-5780)
QUANTO R$ 69 (312 págs.)
A avaliação da taxa no direito tributário nacional encontra nesta obra uma avaliação qualificada, conforme anota Alcides Jorge Costa no prefácio. A primeira parte é dedicada à colocação das taxas com os elementos de sua compreensão no direito vigente. Na segunda, há ensaios e pareceres do autor vinculados ao mesmo tema.
DA TRAMITAÇÃO PROCESSUAL PRIORITÁRIA E EMPRESA INDIVIDUAL
AUTOR Carlos Henrique Abrão
EDITORA Atlas (0/xx/11/3357-9144)
QUANTO R$ 31 (128 págs.) e R$ 42 (176 págs.)
O primeiro livro trata da Lei 12.008/09. O segundo, da 12.331/11. Em ambos, o estilo é claro e a informação é ampla. O primeiro vê entraves, causas e mazelas da duração do processo. O segundo vai da criação à dissolução até a falência.
SÉRIE DIREITO SUMULAR
AUTORES Vários
EDITORA Elsevier (0800-0265340)
QUANTO R$ 64, cada
Cada livro da série tem dados essenciais para compreensão de seus temas. São eles: Direito Civil (232 págs.), Legislação Penal Especial (223 págs.), Processo Penal (272 págs.), Penal "" Parte Geral (215 págs.) e Parte Especial (216 págs.), Eleitoral (344 págs.), Tributário (216 págs.), Administrativo (248 págs.) e Constitucional (280 págs.).
DIREITO E LITERATURA
AUTOR Vários
EDITORA Atlas (0/xx/11/3357-9144)
QUANTO R$ 72 (248 págs.)
André Karam Trindade e Lênio Luiz Streck foram organizadores e também contribuíram com textos na equipe de vinte autores. "Post-scriptum", de Lênio, diz muito do que a literatura pode dar ao direito.
RACIOCÍNIO LÓGICO PARA CONCURSOS
AUTOR Samuel Liló Abdalla
EDITORA Saraiva (0/XX/11/3613-3344)
QUANTO R$ 40 (144 págs.)
Abdalla é engenheiro eletrônico e especialista em raciocínio lógico. Apesar da linguagem não comum para juristas, a estrutura é clara e útil para concorrentes em concursos.

    Caminhos cruzados - Marcos Caramuru de Paiva

    folha de são paulo
    O desafio dos chineses é combater a percepção de que só se é bem-sucedido com a bênção do governo
    Comparar a China e o Brasil é exercício que pode levar a equívocos. Os dois países são radicalmente diferentes no quadro político, há um oceano entre suas culturas, as realidades econômicas mostram pouco em comum.
    A China tem elevadíssima taxa de poupança. Precisa levar a população a gastar mais, fomentar o mercado interno, fazer o crescimento depender menos das exportações industriais. O maior dilema econômico brasileiro vai na direção oposta: elevar a poupança, depender menos de recursos externos, inserir melhor a indústria na exportação.
    A China é relativamente aberta no comércio e fechada do ponto de vista financeiro. O Brasil é relativamente fechado a importações e integrado financeiramente à economia internacional. Os governos estaduais no Brasil são fortes. Na China, a gestão estadual tem mais de formulação política do que de ação. As prefeituras comandam o show. As cidades no Brasil dependem financeiramente das demais esferas de governo. Na China, geram recursos próprios com leasing de terra e operam com limitada dependência dos recursos federais. E assim vai.
    Aqui e ali, no entanto, é possível fazer ilações.
    As políticas hoje em voga no Brasil ""estímulos setoriais seletivos pela via do financiamento ou isenções tributárias, apostas em segmentos e empresas considerados promissoras, maior influência do Estado na orientação da vida privada"" têm algo do modelo asiático. Mas elas não geram sozinhas o crescimento. É necessário manter a confiança nas regras horizontais e na saúde dos pilares macro que garantem a disposição para investir.
    Os chineses têm pela frente um desafio que, a um só tempo, contrasta e se identifica com nossas políticas recentes: combater a percepção do setor privado de que só se é bem-sucedido quando se tem a bênção do governo, reduzir o corpo a corpo empresários-Estado, formular e respeitar mais frequentemente normas horizontais.
    Nos primeiros meses da administração Xi Jinping, o recado de que as coisas precisam mudar foi dado. Instituiu-se uma vigilância ferrenha sobre os contatos entre dirigentes governamentais e empresários.
    Os funcionários públicos passaram literalmente a temer ser vistos em jantares com o setor privado. Os próprios gastos do Estado com banquetes, festas e presentes estão sob escrutínio pesado. A tal ponto que já há quem avalie os reflexos sobre a rentabilidade dos hotéis, restaurantes e marcas de luxo. O preço de um bom Maotai (aguardente apreciada) caiu mais de 50%.
    É impossível saber se as orientações chinesa e brasileira se manterão ao longo do tempo. Países emergentes, por definição, têm pilares não consolidados de gestão pública. O empenho em determinadas ações está sempre sujeito a mudanças. No mundo de hoje, aliás, até as economias mais desenvolvidas mergulham em experimentos novos e audaciosos.
    O importante, para Brasil e China, é focar no que tem sustentabilidade, evitar o que parece bem no curto prazo, mas obscurece a visão do essencial. Só isso pode gerar nos agentes econômicos a convicção de que se está no caminho certo.

    Funai lamenta morte de índio e critica ação de reintegração de posse

    folha de são paulo
    DE BRASÍLIA

    A Funai (Fundação Nacional do índio) lamentou nesta sexta-feira (31) a morte do índio terena Oziel Gabriel, 35, baleado ontem em confronto com a Polícia Federal e a Polícia Militar de Mato Grosso do Sul durante reintegração de posse da fazenda Buriti, em Sidrolândia (72 km de Campo Grande).
    Em nota divulgada no início da noite, a fundação afirmou que "havia ingressado com recurso no Tribunal Regional Federal da 3ª Região para reverter a ordem de reintegração de posse da Fazenda Buriti, que se encontrava suspensa pela Justiça Federal de Campo Grande". O recurso ainda não foi julgado.

    A Funai criticou "o fato de ter sido determinado o cumprimento da ordem de reintegração antes do julgamento desse recurso, sem que pudesse informar e dialogar previamente com os indígenas, bem como acompanhar as medidas voltadas à efetivação da decisão". Os índios terenas reivindicam a área desde 1993.
    Na nota, a Funai lembrou que o ministro José Eduardo Cardozo (Justiça) determinou a abertura de inquérito para investigar o caso e que "está atuando no acompanhamento e defesa dos indígenas envolvidos nesse episódio".
    Em coletiva realizada ontem, Cardozo afirmou que "é impossível dizer quem matou", mas que "ia apurar com rigor se houve abuso". O ministro afirmou que não iria "fazer prejulgamento".
    No texto, a Funai considerou ainda que uma melhora nas "situações de conflito demanda diálogos sempre observando a sua solução pacífica com o integral respeito aos direitos estabelecidos na Constituição".
    Marcos Tome/Região News
    O terena Oziel Gabriel, 35, empunha arco e flecha pouco antes de ser baleado na operação de reintegração de posse
    O terena Oziel Gabriel, 35, empunha arco e flecha pouco antes de ser baleado na operação de reintegração de posse
    LEIA A NOTA
    A Fundação Nacional do Índio (Funai) lamenta a morte do indígena Oziel Gabriel em razão de conflito envolvendo a reintegração de posse da fazenda Buriti, Terra Indígena Buriti-MS. Por meio da Procuradoria Federal Especializada, a fundação está atuando no acompanhamento e defesa dos indígenas envolvidos nesse episódio.
    Os terena vêm reivindicando pacificamente a posse dessa área. Os estudos de identificação para definição de limites da Terra Indígena Buriti se iniciaram em 1993. A Funai havia ingressado com recurso no Tribunal Regional Federal da 3a. Região para reverter a ordem de reintegração de posse da fazenda Buriti, que se encontrava suspensa pela Justiça Federal de Campo Grande. O recurso ainda não foi julgado.
    A Funai considera lamentável o fato de ter sido determinado o cumprimento da ordem de reintegração antes do julgamento desse recurso, sem que pudesse informar e dialogar previamente com os indígenas, bem como acompanhar as medidas voltadas à efetivação da decisão.
    O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já determinou a apuração rigorosa dos fatos para que aqueles que transgrediram a Lei sejam penalizados. A Funai considera que o distensionamento de situações de conflito demanda diálogos - inclusive sobre a possibilidade de pagamentos referentes aos valores das terras --sem prejuízo do direito territorial dos povos indígenas, conquista do Estado democrático e plurietnico de Direito.
    Índios invadem novamente fazenda em MS
    Anteontem, o líder terena Oziel Gabriel foi morto por um tiro durante ação policial de reintegração de posse
    Preterida por Dilma em reunião sobre conflitos, Funai critica a forma com que a reintegração de posse foi realizada
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHADE CURITIBA
    Um dia após serem retirados numa ação policial que deixou um índio morto, índios terena voltaram a invadir ontem a fazenda Buriti, em Sidrolândia (MS), a 72 km de Campo Grande.
    O grupo acampava próximo à sede, na região do confronto de anteontem, que se deu durante cumprimento de ordem de reintegração de posse pelas polícias Federal e Militar. O índio Oziel Gabriel, 35, foi baleado no abdome e morreu no hospital.
    A fazenda Buriti está em área declarada (mais ainda não homologada) terra indígena e é disputada na Justiça por índios e fazendeiros.
    "O assassinato gerou comoção muito grande na comunidade. Os indígenas se uniram e estão determinados a continuar sua luta", diz o coordenador do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) no Estado, Flávio Machado.
    Ainda ontem, outro grupo de índios terena invadiu uma fazenda na região de Aquidauana (a 139 km de Campo Grande). Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), a área passou por estudos de identificação e está sob análise do Ministério da Justiça.
    Na fazenda Buriti, segundo Jorge das Neves, da Funai, cerca de cem pessoas participam da invasão. O clima na região é tenso, mas não há presença policial --PF e PM dizem que só podem agir mediante nova ordem judicial.
    O produtor rural que reivindica a posse da fazenda, o ex-deputado estadual Ricardo Bacha (PSDB), disse que por ora não irá acionar a Justiça para retomar a área.
    "Não tenho mais que ficar mexendo com isso, porque está demonstrado o vácuo de autoridade no Brasil", disse.
    O corpo de Gabriel, que era um dos líderes terena na região, foi sepultado ontem. A Funai e o Ministério Público Federal vão pedir que o corpo passe, mais tarde, por nova perícia, para garantir a coleta de provas.
    Esta foi a segunda morte de índio em conflito com a PF no governo Dilma Rousseff, que enfrenta pressões de ruralistas para reduzir as atribuições da Funai nas demarcações de áreas indígenas e encaminhar as consultas aos ministérios da Agricultura (e Embrapa, a ele vinculada) e do Desenvolvimento Agrário.
    Ontem, Dilma convocou reunião no Palácio da Alvorada para discutir conflitos indígenas --a Embrapa, não a Funai, foi chamada, segundo a Agência Brasil.
    Ainda ontem, a Funai divulgou nota em que lamenta a morte e afirma defender os índios. A nota critica a reintegração de posse, realizada antes que fosse julgado recurso da Funai.
    Local virou 'morro do Alemão', diz fazendeiro
    DE CURITIBADono da fazenda onde um índio foi morto anteontem em confronto com a polícia em Mato Grosso do Sul, o produtor rural Ricardo Bacha, 64, afirmou que o local se tornou um "morro do Alemão", referência à favela do Rio que era controlada por criminosos, e cobrou intervenção federal.
    "A única solução é o governo vir com uma missão pacificadora, como teve no morro do Alemão. Porque aqui virou um morro do Alemão, um conflito com tanta proporção. O governo tem que pacificar a área e dar a terra para os índios --90% dos produtores se dispõem a vender, mas a preços reais", afirmou à Folha por telefone.
    Bacha lamentou a morte no confronto, mas disse que os índios estão armados há pelo menos quatro anos.
    "Ou morreria índio ou morreria produtor. Nesse caso, morreu índio porque não tinha produtor."
    Ecoando o coro de ruralistas que vêm criticando a atuação do Planalto na questão fundiária indígena, Bacha afirmou que o governo vem sendo "omisso e insensível".
    "O grande responsável é o governo, que fez ouvidos moucos [fez-se de surdo] ao que estamos alertando. [...] O governo não quer meter o bico nesse conflito, não é prioridade, e precisa ser", disse.
    Sobre a posse da fazenda Buriti, ele afirma que a decisão vigente derrubou a portaria federal de 2010 que declarou a área como indígena. E defende o uso de armas.
    "Você está em casa, indefeso, na perspectiva de ser invadido por um bando de pessoas. O que você tem que fazer para defender sua vida? Você vai se armar."

      Painel - Vera Magalhães

      folha de são paulo
      Onde pega
      Não foi só a pressão do governo para votar medidas provisórias que levou o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e a ministra Gleisi Hoffmann (Casa Civil) a baterem boca. O Congresso pressiona o governo a fixar um patamar de liberação mensal de emendas de R$ 1 bilhão, além de pagar o mesmo valor em atraso. O tema deve ser abordado na conversa que Renan e o presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), terão com Dilma Rousseff, prevista para segunda-feira.
      -
      Martelo batido A volta do PTB ao governo do PT foi selada numa conversa entre Dilma e o presidente do partido, Benito Gama, ainda no início de maio. Na ocasião, a presidente formalizou o convite para o próprio Gama assumir uma vice-presidência do Banco do Brasil.
      Carta branca De Roberto Jefferson, cacique petebista e delator do mensalão, sobre a volta do partido à órbita petista: "Eu não negociei, saí da frente para o Benito compatibilizar os anseios da bancada com o governo. As minhas lutas são minhas, o partido tem as dele''.
      Pré-temporada A articulação para a volta do PTB ao governo funcionou como teste de dois prováveis coordenadores da campanha de Dilma à reeleição: a costura começou a ser feita pelo governador Jaques Wagner (PT-BA) e os arremates foram dados pelo ministro Aloizio Mercadante (Educação).
      Furos... Além das situações complicadas em Estados como Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais, a aliança PT-PMDB enfrenta desgaste também na Paraíba.
      ... no casco O senador Vital do Rêgo (PMDB) pressiona para que o PT apoie seu irmão, Veneziano do Rêgo, ex-prefeito de Campina Grande, para o governo. Mas os petistas preferem fechar aliança com o ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro, que pode ser candidato pelo PP.
      Dia D Aliados de Marina Silva fixaram a quarta-feira como dia nacional de mobilização para a coleta de assinaturas de apoio à criação da Rede. A data coincide com o Dia Mundial do Meio Ambiente. Pelos cálculos dos marineiros, a marca de 500 mil assinaturas deve ser atingida em meados do mês.
      Condição 1 Após anos de disputa com órgãos de defesa do consumidor, as operadoras serão obrigadas a baixar em até 25% a assinatura básica da telefonia fixa. Essa deverá ser a exigência da Anatel (Agência Nacional de Telefonia) em contrapartida aos pedidos de fusão de empresas para obter ganhos fiscais.
      Condição 2 A ideia é aprovar a medida rapidamente e permitir que a conta fique mais baixa ainda neste ano. Sercomtel e Telefônica já tiveram aprovado pedido de fusão de suas empresas, mas ainda esperam a decisão das contrapartidas. A Oi deve ser a próxima a pedir a fusão.
      Tudo... São Paulo e Rio de Janeiro devem fechar nas próximas semanas os primeiros contratos para oferecer internet aos passageiros de trens e metrô e das barcas que fazem a ligação Rio-Niterói.
      ... conectado O sistema está sendo desenvolvido pela empresa CMA, que ainda estuda uma forma de implantá-lo em ônibus. A tecnologia permitirá ainda monitorar os veículos para flagrar casos de assaltos e depredações.
      No lucro O investimento na tecnologia é equiparável ao gasto pelas empresas na manutenção de veículos depredados, cerca de R$ 3 milhões anuais. Por isso, elas devem oferecer o serviço sem reajustar as passagens. Brasília, Salvador e Fortaleza também planejam oferecer internet no transporte público.
      Outro lado O ex-diretor da ANS (Agência Nacional de Saúde) Leandro Tavares, cuja recondução será analisada pelo Senado, diz que a venda da Amil para a norte-americana United Health foi aprovada por unanimidade pela agência. Ele diz que trabalhou na Amil como chefe-médico, e não como executivo.
      com ANDRÉIA SADI e LUIZA BANDEIRA
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      TIROTEIO
      "Se a ideia era mostrar que o PSDB se renovou, ela foi por água abaixo com as aparições de FHC e Serra. Não vale a pena ver de novo."
      DO DEPUTADO ANDRÉ VARGAS (PT-PR), vice-presidente da Câmara, sobre a propaganda tucana protagonizada por Aécio Neves e exibida na quinta-feira.
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      CONTRAPONTO
      O cheiro da riqueza
      "Em sua visita a Dilma Rousseff, ontem, o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, reencontrou Graça Foster, presidente da Petrobras, com quem visitara o centro de pesquisas da empresa no Rio, dois dias antes. Referindo-se à visita, Biden disse a Dilma:
      --Presidente, esta mulher me fez sentir cheiro de óleo. E minha mulher gastando dinheiro com perfume...
      A piada arrancou risos das duas mulheres e dos ministros.

        Entrevista Eduardo Suplicy

        folha de são paulo
        Lula me disse que não tem como eu não ser candidato
        SENADOR REAGE À ARTICULAÇÃO DO PT QUE PODE IMPEDI-LO DE TENTAR SEU QUARTO MANDATO
        ANDREZA MATAISDE BRASÍLIAUma prévia aberta "não apenas aos filiados, mas aos eleitores em geral" é a resposta do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), 71, ao suposto plano da cúpula do PT de sacrificá-lo em 2014, em troca de uma coligação mais ampla.
        No ano que vem, quando o Senado renovará um terço das cadeiras, Suplicy pretende disputar seu quarto mandato consecutivo no Senado --se conseguir a única vaga da coligação petista.
        No dia 6, o senador conseguiu 15 minutos com Lula, surpreendendo-o em seu escritório em São Paulo. A ideia de procurar o ex-presidente sem agendar partiu do filho Supla, ao pai, que tentava ser recebido havia meses.
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        Folha - Qual sentimento o sr. teve ao saber que o PT fez reunião para discutir a sucessão no Senado sem convidá-lo?
        Eduardo Suplicy - Durante o final de semana, eu pensei bastante, conversei com meus filhos, com a Mônica Dalari [namorada do senador], fui comer uma pizza com o Supla e a namorada dele. Pensei em escrever uma carta aberta. O Supla me disse: "Pai, porque você não vai lá? Fala com ele. Você é amigo do Lula".
        É constrangedor ter que pedir para participar da discussão?
        É próprio reivindicar que possa ser ouvido, como meus filhos sugeriram. Não acho absurdo. Teria sido gentil da parte deles ter me convidado àquela reunião, pois discutiram a candidatura ao cargo onde estou. Teria sido gentil.
        O que o sr. pediu a Lula?
        Fiz uma visita de surpresa. Disse que soube da reunião onde consideraram a hipótese de eventualmente ceder a vaga a outro partido. Lembrei das fortes raízes que tenho com o PT e com ele próprio. O Lula me disse: "Eduardo, não há possibilidade senão de você ser candidato ao Senado".
        Por que de surpresa?
        Fui de surpresa porque fazia tempo que estava pedindo e não era marcado. Liguei, já estava no caminho, disse à secretária que estava indo lá. Disse que precisava só de dois minutos e ele me recebeu por 15. Ele sabia que há dois, três meses eu vinha pedindo a oportunidade de um diálogo.
        O sr. disse a Lula que só desiste da prévia se ele concorrer?
        Ele falou: "Eduardo, eu não vou ser candidato. Quero ajudar o partido, a Dilma".
        O sr. concorreria à Câmara?
        É claro que é uma boa coisa, me sinto honrado de acharem que eu poderia ter uma ótima votação. Só que considero que será bom o partido pensar bem. Considerando que os demais partidos terão candidatos muito fortes [ao Senado], acho que sou um candidato forte também. É muito bom para o fortalecimento da presidenta em São Paulo ser apoiada por um candidato ao Senado forte, se possível do PT.
        Qual a garantia que o senhor tem de que será candidato?
        Na segunda, o Rui Falcão [presidente nacional do PT] me ligou e disse que, por enquanto, o candidato sou eu. Chegou a mencionar como exemplo que o presidente do PSD, um dos partidos coligados, queira propor que a vaga ao Senado seja do PSD.
        O sr. admite disputar a vaga de candidato ao Senado?
        Pelo menos 15 ou 20 pessoas poderiam ser candidatas dentro do PT, ser eleitas e se tornar brilhantes senadores. Defendo uma prévia aberta, não apenas aos filiados, mas até aos eleitores em geral.
        Se um grupo restrito decidir o candidato, o sr. deixa o PT?
        Não vai ser assim. Acredito na força da base do partido, da militância e na voz do povo. Vai ser um processo natural de escolha. As pessoas estão sendo ouvidas.
          Partido quer puxador de voto para a Câmara
          DIÓGENES CAMPANHADE SÃO PAULOAs pressões de petistas para que o senador Eduardo Suplicy (SP) não concorra a um novo mandato e se lance a deputado têm dois motivos.
          O primeiro é abrir espaço para que o partido possa negociar a vaga com outras legendas, visando à formação de alianças para a disputa do governo de São Paulo.
          Uma das siglas que poderiam herdar o posto é o PSD, do ex-prefeito Gilberto Kassab, que vem se aproximando do PT no plano federal.
          O segundo motivo é que o partido precisa de um puxador de votos para a Câmara em 2014. Os nomes mais votados em eleições passadas ou foram abatidos pelo julgamento do mensalão ou estão em cargos executivos.
          O mensalão deve tirar da chapa de 2014 o deputado federal mais votado em São Paulo pelo PT, João Paulo Cunha, que teve 255 mil votos em 2010 e foi condenado a nove anos e quatro meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal, no ano passado.
          Também condenado, o ex-presidente do PT José Genoino já havia tido menos de 100 mil votos em 2010, virando suplente. Neste ano, ele assumiu a cadeira de Carlinhos Almeida, que foi eleito prefeito de São José dos Campos (97 km de São Paulo).
          O segundo mais votado do PT no Estado, Jilmar Tatto (250 mil votos em 2010), é secretário dos Transportes na Prefeitura de São Paulo.
          Suplicy foi eleito senador pela primeira vez em 1990, e seu terceiro mandato terminará no próximo ano.
          Os petistas que gostariam de vê-lo longe do Senado o consideram pouco alinhado aos interesses do partido. Lembram especialmente que ele assinou o pedido para a CPI dos Correios, em 2005, que investigou o mensalão.
          Como alternativas, o grupo de João Paulo Cunha pretende lançar o vice-prefeito de Osasco, Valmir Prascidelli, para herdar os votos do parlamentar em sua base eleitoral.
          O PT também aposta no desempenho do presidente da sigla em São Paulo, deputado estadual Edinho Silva.

            Endurecer a lei resolve o problema das drogas? - Tendências/Debates

            folha de são paulo
            RAFAEL CUSTÓDIO E RAFAEL DIAS
            TENDÊNCIAS/DEBATES
            Endurecer a lei resolve o problema das drogas?
            NÃO
            Drogas e pobreza
            A Câmara dos Deputados aprovou nesta semana o texto base do projeto de lei nº 7.663/10, do deputado Osmar Terra (PMDB-RS). Representa um dos maiores retrocessos legislativos dos últimos tempos quanto ao impacto da lei de drogas no sistema prisional e na Justiça criminal.
            Como se não fosse evidente o fracasso da atual política de encarceramento em massa, em muito resultante da atual legislação antidrogas, as propostas em questão reforçam e aprofundam a ótica punitiva e seletiva do Estado sobre o tema.
            A população carcerária brasileira já é a quarta maior do mundo (550 mil). Temos também a terceira maior taxa de encarceramento. Desde 2005, um ano antes da promulgação da atual Lei de Drogas, a população prisional por tráfico saltou de 33 mil (11% do total) para 138 mil (25% do total).
            Pesquisas recentes demonstram que a maior parte das pessoas presas por crimes relacionados a drogas são homens, jovens entre 18 e 29 anos, negros e pardos, com escolaridade até o primeiro grau completo e sem antecedentes criminais.
            O que se vê é que o suposto combate às drogas é na verdade um instrumento eficaz de criminalização da pobreza e da juventude negra.
            Além disso, esse jovem é em geral preso sozinho, sem arma, com pouca quantidade de droga e sem que tenha havido qualquer atividade de inteligência policial para a sua prisão (são presos, via de regra, nas "rondas" das Polícias Militares).
            Não há, portanto, verdadeira articulação estratégica no combate ao tráfico e suas redes, mas tão somente a prisão de usuários como traficantes ou de pequenos traficantes, facilmente substituídos na estrutura do crime quando presos.
            Diante desse quadro, soam irreais as propostas em questão que estabelecem novos aumentos de pena e um suposto critério de distinção entre usuário e traficante, absolutamente subjetivo, e que, portanto, perpetua a lógica seletiva da Justiça criminal. A previsão de penas proporcionais ao "grau de dependência" do entorpecente, além de tecnicamente discutível, acaba punindo ainda mais os já marginalizados usuários de crack.
            O texto insiste na fracassada concepção de internações como política prioritária para lidar com usuários ou dependentes químicos. Vai em desacordo com a Lei da Reforma Psiquiátrica, que prevê internações somente quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Da ONU ao Ministério da Saúde, da Organização Mundial da Saúde ao Conselho Federal de Psicologia, todos recomendam exatamente o oposto.
            A cereja do bolo é a previsão de ampliação maciça do atendimento aos usuários/dependentes pela rede privada onde não houver equipamentos públicos adequados --lucro fácil no Brasil-- e comunidades terapêuticas religiosas. Previsão de difícil digestão para os que prezam por um Estado laico e garantidor das liberdades individuais.
            Como se vê, não é à toa que o projeto de lei e seu substitutivo têm gerado um caminhão de críticas em diversos setores da sociedade, aparentemente ignoradas pelos nossos representantes.
            De qualquer modo, ainda dá tempo para que o debate seja ampliado, também sob a ótica daqueles que vêm sendo historicamente o alvo preferencial da política nacional antidrogas: os jovens, negros e pobres.
            Se o direito penal é o direito dos pobres, porque sobre eles, exclusivamente, recai sua força (Heleno Fragoso), vê-se que os nossos deputados almejam prestar relevantes serviços ao fortalecimento desse "privilégio". Com a palavra, o Senado Federal.

              OSMAR TERRA
              TENDÊNCIAS/DEBATES
              Endurecer a lei resolve o problema das drogas?
              SIM
              Premissas erradas
              O argumento central de quem defende a liberação das drogas parte de premissas erradas. Dizem que travar uma guerra contra as drogas nada resolve. Falam que, desde que foi promulgada a lei nº 11.343, de 2006, a pena mínima para traficantes aumentou de três para cinco anos, o número desses criminosos presos triplicou, mas o tráfico não diminuiu.
              Seria, portanto, um mal menor liberar. Esvaziaria as prisões, acabaria com o tráfico, geraria mais impostos. Mas como explicar que um aumento de 60% no tempo de pena tenha gerado crescimento de 300% no número de traficantes presos?
              Na verdade, a causa maior, não admitida nos discursos liberacionistas, é a explosão da epidemia do crack. De 2006 para cá, aumentou muitas vezes a oferta da droga, o número de dependentes químicos e, por consequência, de traficantes.
              No Rio Grande do Sul, em 1998, comemorávamos não haver qualquer registro de uso do crack. Em 2008, estimávamos que mais de 1% dos gaúchos (ao redor de 110 mil) virou refém dessa droga. De lá para cá, o número só aumentou.
              Em todo o Brasil, a maior causa de pedidos de auxílio-doença do INSS sempre foi o alcoolismo. Até 2006. Em 2012, o crack e a cocaína já eram responsáveis por 2,5 vezes mais auxílios-doença que o álcool.
              Pesquisas da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) apontam que, em 2011, já tínhamos 2,8 milhões de usuários de crack e cocaína. E entre os 3,8 milhões de usuários de maconha, 2 milhões também usavam crack simultaneamente.
              Com base nos números do Ministério da Saúde, pode-se deduzir que o crack é a maior causa, direta ou indireta, de mortes de jovens de 15 a 25 anos no país. A droga também é a maior causa, direta ou indireta, de homicídios. No mundo, o Brasil já é o maior consumidor de crack (segundo a Unifesp) e o recordista de homicídios (segundo a ONU).
              Comprovando a gravidade dessa epidemia, constatamos que, apesar do extraordinário aumento de consumo e da apreensão de drogas, de 2006 para cá, o preço da pedra de crack não aumentou. Isso significa que a oferta, que gera a epidemia, é colossal. Isso se deve em grande parte às extensas fronteiras que temos com todos os produtores de coca do mundo.
              Liberar drogas nessas circunstâncias seria trágico. Hoje, os dependentes de drogas legais, como álcool e tabaco, chegam perto de 50 milhões. Estima-se serem 6 milhões os dependentes das drogas ilícitas. E o número só é menor por serem criminalizadas. Se liberadas, rapidamente seus dependentes chegariam, em número, aos patamares das drogas lícitas. Uma tragédia humana inimaginável.
              A lógica da epidemia viral vale para todas as drogas. Quanto mais vírus circulando, mais doentes. Quanto maior a oferta de drogas, mais dependentes químicos, que se tornarão doentes crônicos.
              Diante de tão grave problema, necessitamos de ações à altura. Quando a epidemia do crack chegou a níveis avassaladores nos EUA, durante a década de 80, o governo aumentou o rigor das penas e a oferta de tratamento. Hoje, existem menos dependentes do crack lá do que no Brasil, e o número de homicídios caiu à menos da metade.
              Situação semelhante ocorreu na Suécia, na década de 60, quando todas as drogas eram liberadas. Aumentando o rigor das punições, passou a ser o país da Europa com menor número de dependentes necessitando tratamento e com as menores taxas de acidentes de trânsito e de homicídios.
              A epidemia das drogas é problema complexo que não se resolve num passe de mágica. Precisamos de medidas firmes e abrangentes, mantidas por longo tempo, para contê-lo. Daí uma lei que aumente o rigor como a proposta do projeto de lei nº 7.663/10, e não uma que libere. Que o governo dê a prioridade que o assunto exige.

                Andre Singer

                folha de são paulo
                Da arte de engolir sapos
                Para Maquiavel, a virtude política consiste em agir de acordo com a natureza dos tempos. O condutor virtuoso seria aquele com a coragem de arriscar quando a fortuna lhe sorri e de agir com prudência quando a sorte é adversa.
                Dilma Rousseff arriscou quando o vento soprava a favor. Teve ousadia de meados de 2011 ao segundo semestre de 2012, momento em que a situação internacional abriu uma brecha para modificar o binômio neoliberal dos juros altos e do câmbio flutuante, que vinha matando a indústria brasileira desde os anos 1990. Reconheça-se que, então, a presidente enfrentou interesses poderosos.
                No entanto, o resultado foi decepcionante. O fraquíssimo crescimento da economia em 2012 mostrou que alguma coisa falhara na equação. Muitas hipóteses diferentes tentam explicar o acontecido. Também tenho as minhas, mas por ora interessa constatar que, em face dos números divulgados na última quarta-feira pelo IBGE, tudo indica que 2013 vai em direção semelhante. Na entrevista que se seguiu ao anúncio, o ministro Mantega deu a entender que o governo entregou os pontos e nada mais pode fazer a respeito no curto prazo.
                Acrescente-se que a posição do Banco Central de elevar a taxa Selic até a inflação retornar à meta tende a prolongar a fraqueza da economia para 2014. Em outras palavras, o BC acendeu o sinal amarelo no que diz respeito à conjuntura do ano reeleitoral.
                Isso explica por que Dilma vem se tornando suave com aliados incômodos, como o líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha, cuja última façanha foi protocolar um pedido de CPI da Petrobras. A inédita suavidade presidencial se estendeu nesta semana ao presidente do Senado, Renan Calheiros, que se recusou a votar a MP 605, de redução da energia elétrica.
                À medida que o quadro econômico piora, a futura candidata fica obrigada a aumentar a extensão e a coesão das possíveis alianças eleitorais, pois não pode correr o risco de enfrentar o pleito em situação econômica ruim com uma base fragmentada. O mesmo motivo elucida a infinita tolerância de que é objeto a candidatura cavalo de troia de Eduardo Campos.
                Agora Gilberto Kassab veio também incorporar-se ao bloco dos que se aproximam sem garantir fidelidade. Caso algum inesperado vendaval afete o emprego e a renda da população pobre, esteios da candidatura oficial, haverá uma corrida para a oposição.
                Nos longos meses que faltam para o começo efetivo da campanha, muitos outros personagens do tipo ainda irão aparecer. A todos Dilma será obrigada a agradar e sorrir. Haja aparelho digestivo.

                João Paulo - Onde foi parar a pelada?‏


                Estado de Minas: 01/06/2013 


                Estamos cercados de futebol por todos os lados. O que é muito bom. Espaço de manifestação da cultura brasileira, o futebol nos define. No entanto, há uma mudança na forma como ele hoje ocupa nossa vida. Há algumas décadas, o jogo era manifestação clara de um tipo de encontro lúdico e igualitário. Havia semelhança, ou pelo menos a escala de diferenciação não era tão extrema, entre o jogo de várzea e as partidas do time do coração. Hoje os universos se escandiram.

                A recente cerimônia de entrega do Mineirão aos dirigentes da Fifa é, nesse sentido, um símbolo. A palavra entrega não é gratuita. Todo o processo, da escolha do país para sediar a Copa até a forma como foram feitas as obras e acertados os encargos (unilateralmente: a Fifa manda, o Brasil obedece), demonstra que o futebol ficou em segundo plano em favor dos negócios. O mais abusivo de todos os avanços foi a concordância em modificar a legislação corrente durante algumas semanas, em nome da preservação dos interesses comerciais de uma entidade internacional privada, vocacionada para o lucro.

                Entre os abusos aprovados estão a permissão da venda de bebidas do patrocinador, quebrando uma conquista feita em nome da paz e do bom senso; a proibição do funcionamento de parte do comércio da região do estádio e até mesmo a utilização do espaço público, sob o argumento de que se trata de pirataria de direitos econômicos; a isenção de impostos sobre circulação de mercadorias de patrocinadores, fraturando a espinha tributária oficial, que não dá colher de chá aos cidadãos brasileiros; e até a suspensão temporária do nome do estádio, num suicídio de identidade abominável. Além disso, o Estado, em seus três níveis, aparelhou de tal maneira a operação que os gastos não são objeto de validação pelas instâncias de fiscalização e correição. As opções técnicas destinadas a investimentos em vários setores também não obedeceram à lógica política democrática.

                Com isso, o cenário que se afigura com a aproximação da Copa das Confederações e, em seguida, da Copa do Mundo, é de um abandono voluntário da soberania em favor de interesses econômicos de uma entidade privada, a Fifa, que vem sendo questionada em todo o mundo pela falta de lisura de suas operações. O anunciado ganho paralelo em termos de maior visibilidade para o turismo, atração de investimentos para as cidades e reforma e aparelhamento das arenas se mostrou vicário, quando não francamente danoso.

                O número de turistas, pelas expectativas mais otimistas, deve, quando muito, se manter o da série histórica prevista para o mês dos jogos (nas copas do Japão e da Alemanha, a quantidade de turistas diminuiu durante os jogos); as obras, além da verticalização das decisões, deixaram de lado demandas históricas, como o metrô, para apostar em soluções mais imediatas e que já nascem obsoletas (além de executadas sem controle público e abaixo da qualidade técnica contratada, como se viu recentemente com o BRT da Crisitano Machado).

                Por fim, a reforma e gerenciamento dos estádios têm mostrado resultado contraproducente, com redução de lugares, aumento de preços de ingressos e serviços e falta de competência na operação. O Mineirão, que já abrigou jogos para mais de 100 mil pessoas, com tropeiro quente e saboroso, parece tremer de medo com a expectativa de 60 mil. Além disso, a privatização dos aparelhos criou mais uma instância em que o lucro deixa de fluir para o próprio espetáculo e seus atores (os times), para beneficiar consórcios incapazes de gerir o negócio e que, além disso, têm lucro garantido em contrato com o setor público, mesmo com a ineficiência comprovada em jogos e grandes espetáculos musicais. Sem falar da falta de transparência da fonte e aplicação de recursos gastos na reforma, com sucessivos aditamentos de contrato.

                Nação Canarinho
                Futebol não é só coisa de boleiro. Manifestação cultural expressiva, vem ganhando de uns tempos para cá atenção de historiadores, cientistas políticos e romancistas. É o que demonstram três livros lançados recentemente, que têm o esporte como centro das atenções. São leituras de profundidade distinta, mas que compõem um tríptico interessante sobre o esporte.

                A primeira publicação é A construção da Nação Canarinho – Uma história institucional da seleção brasileira de futebol, 1914-1970, do historiador Carlos Eduardo Barbosa Sarmento (Editora FGV). O objetivo do estudo é acompanhar o processo de formação institucional da seleção desde sua criação, no começo do século 20, até a consagração com o tricampeonato de 1970, no México. Para o autor, é possível estabelecer vínculos entre a sociedade, a política e cultura em relação ao futebol, que responde, em sua formulação institucional, ao que se passava no país.

                Cada escolha na forma de organizar o futebol diz tanto do esporte quanto do estágio de amadurecimento do país. Não se trata de uma relação mecânica, mas de um intrincado jogo de influências que viajam em mão dupla, até consagrar um modelo de gerenciamento que tem sua maior expressão em 1970. Para levar adiante sua pesquisa, Carlos Eduardo Barbosa Sarmento acompanhou a história da seleção de futebol para mostrar como interagiram, através do tempo e em diálogo com a conjuntura, jogadores e dirigentes, de modo a construir um modelo de controle das manifestações esportivas e de sua relação com o universo cultural e político.

                Se o primeiro desafio foi vencer a dicotomia entre amadores e profissionais, logo o esporte conquista a agenda pública e ganha tradução oficial na criação das entidades centralizadoras, durante o período varguista e pós-primeiro campeonato mundial no Uruguai (1930), que consolida a ideologia do homem nacional em padrões eugenistas. Para um Estado centralizador, um futebol oficial, ainda que dominado no discurso pela ambivalência entre a arte e a ciência (com valorização de elementos brasileiros como a ginga e o drible, evocados por Gilberto Freyre). Os anos 1950, que abrem com a derrota da seleção na copa realizada em casa, vão assistir à profissionalização da entidade controladora do futebol, a Confederação Brasileira de Desporto (CBD), que avança em direção ao modelo internacionalista e profissional, que daria o bicampeonato ao país em 1958 e 1962.

                O ano de 1970 consagra essa escolha, com a dobradinha cancha e caserna, já que o sucesso da seleção, além de significar para o esporte a conquista definitiva da taça Jules Rimet, se traduziria em ganho ideológico para um Estado de exceção, fundado numa ditadura civil-militar extremamente discricionária. Nesse contexto, o fracasso da campanha de 1966 chegou a receber cobertura até mesmo do temido Serviço Nacional de Informações (o temido SNI), além de pressões para estabelecimento de inquérito parlamentar para investigar o fraco desempenho. É nesse caldo que se consolida o modelo que se cristaliza em 1970, centralizado, militarizado, autoritário (todos conhecem o episódio da destituição de João Saldanha, ligado à esquerda, do comando técnico do time) e subsidiário a certo “patriotismo servil”. Um modelo administrativo “meticuloso, com detalhamento de etapas de preparação, e um forte investimento no condicionamento físico e emocional”. Receita certa para transformar um time de futebol na expressão de uma Nação Canarinho. Quem não a amasse, que tirasse seu time de campo.

                Prazer e dor Outro livro feito sob medida para quem gosta de futebol é Pelada – Uma volta ao mundo pelo prazer de jogar futebol (Editora Zahar), da jornalista e jogadora de futebol Gwendolyn Oxenham, uma norte-americana que chegou a atuar profissionalmente no Santos Futebol Clube. Pelada é um livro que celebra a alegria de jogar bola, mas é também uma interessante reportagem que atravessa 25 países, tendo como cenário sempre os campos amadores e as pessoas comuns.

                Gwendolym correu atrás da bola, mas principalmente de boas histórias, de pessoas anônimas, de todos os tipos e países, que têm em comum o gosto pelas peladas. Ela jogou com executivos no topo de prédios no Japão, com destiladores clandestinos de bebidas numa favela africana e com grosseiros alemães incapazes de entender o espírito esportivo sem o qual uma pelada não funciona. No saudável internacionalismo do futebol, a escritora participou de partidas entre árabes e judeus em Jerusalém, com presidiários na Bolívia e até com mulheres de chador no Irã. As partidas são em si a realização de um desejo e um acesso direto ao prazer, mas são também convites para o conhecimento da diversidade humana – na solidariedade do jogo e na veemência da disputa – e de culturas.

                O que Gwendolym aprendeu com tantas peladas em sua volta ao mundo? “A maioria dos jogadores quer o espetáculo, queremos cativar. Mas, um dia, percebemos que, mesmo no silêncio, com ninguém olhando, a sensação de dar o melhor de si e jogar muito bem é ótima (...). O sonho, no fim das contas, não é jogar numa seleção ou numa liga profissional. O sonho é jogar; e jogar é um sonho.” A conclusão da autora parece deslocada num tempo em que as peladas dos meninos foi substituída pelas escolinhas de futebol e os campinhos foram engolidos pela voracidade do lucro sobre os espaços vazios que sempre fizeram parte das cidades. O vazio, hoje, está na infância que joga bola com um console de videogame na mão e, quando se cansa do futebol, troca o cartucho e sai atirando para tudo que é lado.

                Para completar a pequena biblioteca futebolística recente, e sem querer revelar demais a trama, chega às livrarias um belo romance de Marcelo Backes, O último minuto (Editora Companhia das Letras). História de futebol e honra, a narrativa coloca frente a frente um presidiário, ex-técnico de futebol, e o narrador, um missionário. O esportista João, o Vermelho, nascido Yannick Nasyniack, desfia suas memórias e dores de alma, de forma nem sempre direta, que trazem à cena, além de um segredo que só ao fim se revela, os tormentos do passado, a sensação de envelhecimento, a força irremediável do tempo e o arrependimento incapaz de redenção.

                Além do futebol que perpassa a trama, às vezes com reflexões filosóficas sobre a vida e a morte, a trama mescla a vida de João, o Vermelho, com a de outros imigrantes de origem russa, num espaço dominado pela ética do trabalho, do desenraizamento, da cultura rural e do sentimento de ser estrangeiro em qualquer lugar. O futebol, com seus simbolismos e metáforas, empresta muitas vezes sentido à vida. Outras, ajuda a entender a inevitabilidade do destino. A ideia, por exemplo, de morte súbita, que sai da ciência para entrar em campo, por vezes é mais significativa que parece a primeira vista. Estamos sempre vivendo o último minuto.

                A construção da Nação Canarinho – Uma história institucional da seleção brasileira de futebol, 1914-1970

                • De Carlos Eduardo Barbosa Sarmento
                • Editora FGV, 148 páginas, R$ 20

                Pelada – Uma volta ao mundo pelo prazer de jogar futebol
                • De Gwendolyn Oxenham,
                • Editora Zahar, 320 páginas, R$ 44,90

                O último minuto
                • De Marcelo Backes
                • Editora Companhia das Letras, 220 páginas, R$ 38,50

                Decantado pelo tempo(Libério Neves)-Carlos Herculano Lopes‏


                Antologia de poemas de Libério Neves, com seleção de Fabrício Marques, é lançada pela Editora UFMG. Ligado aos concretistas nos anos 1960, poeta integrou geração surgida em torno do Suplemento Literário

                Carlos Herculano Lopes

                Estado de Minas: 01/06/2013 



                O poeta Libério Neves em Santa Tereza, bairro onde vive há mais de 40 anos e sobre o qual escreveu livro da série BH, a cidade de cada um

                Já em contagem regressiva para comemorar os 80 anos bem vividos, que serão completados em abril do ano que vem, o poeta Libério Neves tem outro bom motivo para estar feliz: o melhor da sua poesia, lapidada com paciência e mãos de mestre há mais de meio século, acaba de ser reunida em um único volume, Papel passado, que a Editora da UFMG começa a distribuir nas livrarias de todo o país.

                A antologia, que volta a dar a Libério papel de destaque na literatura brasileira, na qual estava injustamente esquecido, foi organizada pelo escritor e professor Fabrício Marques, para quem o poeta “criou uma estrutura de versos curtos, incendiados por uma música verbal, singular, que lhe permite ser sofisticado sem ser maneirista, e exuberante sem ser barroco”. Os poemas que integram a antologia foram retirados, entre outros, dos livros Pedra solidão, O ermo, De circulação de sangue e Força de gravidade em terra de vegetação rasteiras. Ao todo, o escritor, ao longo da carreira, publicou 27 livros e tem três volumes prontos na gaveta. Libério se exercitou também na prosa e na literatura infantojuvenil.

                Nascido em Buriti Alegre, interior de Goiás, mas vivendo em Belo Horizonte desde o início da década de 1950, Libério Neves disse que está muito contente com o resultado de Papel passado. “Como não poderia escolher meus próprios poemas, por considerá-los como meus filhos – e um pai não pode gostar de um filho mais do que do outro –, a seleção feita por Fabrício está ótima. Ele seguiu uma sugestão de Humberto Werneck, para que fosse extraída a nata da nata da minha poesia, e acho que ele conseguiu”, diz Libério.

                Bom de prosa, e há muito já se considerando um “goianeiro”, mistura de goiano com mineiro, Libério Neves se lembra que quando começou a escrever seus primeiros poemas estava muito influenciado pelo concretismo, então em voga no Brasil, com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos no auge da produção literária . Essa influência pode ser sentida na sua obra, sobretudo em Pedra solidão, lançado em 1965.

                “A partir deste livro, com muito trabalho, procurei ir mantendo uma linguagem mais despojada, que adquiri com o concretismo, porém já desconsiderando o rigor do espaço em branco e do efeito especial. E depois de O ermo, de 1968, não tive mais aquele compromisso amoroso do início da poesia concreta, e então pude dar meu salto para soprar minha linguagem do jeito que gosto”, diz o poeta.

                Memórias Há mais de 30 anos sem fumar o tradicional cigarro de palha, não pelo fato de estar fazendo mal à saúde, mas porque lançou a si próprio o desafio de ver se conseguia ficar sem ele, Libério Neves contou também sobre a sua convivência no Suplemento Literário do Minas Gerais, que foi criado por Murilo Rubião em 1966. Já no primeiro número, lembra-se, não sem uma ponta de nostalgia, teve a alegria de ver publicado um poema seu. E mestre Rubião lhe disse: “ Você está representando a nova geração de escritores mineiros, que a partir de agora terão vez”.

                Foi também no Suplemento, que funcionava numa pequena sala da Imprensa Oficial, na Avenida Augusto de Lima esquina com Rua Espírito Santo, que Libério ficou conhecendo poetas já consagrados, como Emílio Moura (também adepto do cigarro de palha), Bueno de Rivera, Laís Correa de Araújo e Affonso Ávila, e estreitou ainda mais a convivência com colegas de geração, como Adão Ventura, Henry Correa de Araújo, Márcio Sampaio, Sérgio Sant’Anna e vários outros.

                Mas antes disso, no início de 1960, na companhia de Henry, Ubiraçu Carneiro da Cunha (pernambucano radicado em Minas), Elmo Abreu Rosa e outros escritores e intelectuais, ajudou a fundar a revista Vereda que, de acordo com ele, tinha como objetivo fazer uma poesia mais voltada para os ideais do concretismo.

                Alguns anos depois, quando indagado sobre quais seriam os dois maiores poetas brasileiros, não vacilou em apontar três, nenhum deles adepto do concretismo: o mineiro Carlos Drummond de Andrade, “com sua poesia pomposa e elegante”; e os pernambucanos João Cabral de Melo Neto, “pelo rigor, parecido com suas origens nordestinas”, e Manuel Bandeira, “pela simplicidade aparentemente fácil”.

                Sem parar nunca de escrever, “porque isso está no sangue”, Libério Neves, que não dispensa um bom vinho tinto seco, tomado na companhia da esposa, Marise, ou uma cervejinha “de leve”, junto com os amigos da Mercearia do Nivaldo, em Santa Tereza, onde vive há mais de quatro décadas, revela que atualmente está mais voltado para a administração da sua obra do que propriamente para a escrita. “Acredita que com meu poema ‘Pássaro em vertical’, de Pedra solidão, que foi publicado em vários livros didáticos, já ganhei mais direitos autorais do que com vários outros livros meus?”, pergunta desafiando a curiosidade o interlocutor.

                Autor também de Santa Tereza, 20º volume da série BH – A cidade de cada um, Libério Neves, para demostrar ainda mais o seu amor pelo bairro, está programando, para breve uma manhã de autógrafos de Papel passado, lá mesmo em Santê, provavelmente no Bar do Bolão.

                PAPEL PASSADO – ANTOLOGIA POÉTICA
                • De Libério Neves
                • Editora UFMG
                • 130 páginas


                Pássaro em vertical

                Cantava o pássaro e voava
                cantava para lá
                voava para cá
                voava o pássaro e cantava

                de
                repente
                um
                tiro
                seco
                penas fofas
                leves plumas
                mole espuma

                e um risco
                surdo


                n
                o
                r
                t
                e
                -
                s
                u
                l.



                Herança


                1

                Eu sou esse menino
                e ainda me nino
                colado no dilúvio
                e olhando a nuvem

                pisado no tempo
                desta relva seca
                pelo-me na têmpera
                de ao sol a cera

                meu olho vai-se
                pelo além da fóssil
                lenda dessa nuvem
                uma quase chuva

                2

                sou esse menino
                e ainda me animo
                a erguer-me árvore
                neste solo árido

                haurido no sempre
                ser a espera fosca
                de fazer no vento
                em folha o rosto

                3

                o tempo está de
                me valer de espada
                contra ser a nuvem
                próxima dilúvio

                e muito mais ainda
                piso o céu unindo
                terra que me pisa
                e o mais liso azul

                4

                sou esse menino
                e arvorar-me ave
                de vazar por cima
                o cimo desse azul.

                Sim, tinha um dinheirinho - Ruy Castro

                folha de são paulo
                RIO DE JANEIRO - Imagine sentar-se a uma mesa para um uísque tendo atrás de si uma parede com poemas de Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos e Antonio Maria, rabiscados pelos próprios; barquinhos pintados por Pancetti com o batom vermelho de Dolores Duran; uma pauta com a melodia de "Aquarela do Brasil", por Ary Barroso; o autógrafo de Pablo Neruda; desenhos de Di Cavalcanti, Antonio Bandeira e Carlos Thiré, e frases de Sergio Porto, Lucio Rangel, Fernando Lobo, Haroldo Barbosa, Aracy de Almeida, Dorival Caymmi, garatujados por eles a caneta, giz ou lápis, inclusive de sobrancelha. E tendo à sua volta os citados.
                Nos anos 50, esses artistas, escritores e jornalistas se reuniam nos fundos do Villarino, uma uisqueria na avenida Calógeras, no Centro do Rio, em frente à Academia Brasileira de Letras. Como trabalhavam por ali, o Villarino era para onde eles convergiam no fim da tarde, à espera de que o trânsito para a Zona Sul desafogasse. Foi lá, em maio de 1956, que Vinicius propôs ao jovem Tom Jobim trabalharem juntos, e Tom perguntou: "Tem um dinheirinho nisso?".
                Anos depois, o esvaziamento do Centro atingiu o Villarino. Os habitués sumiram e, por ignorância ou má-fé, os proprietários cobriram de tinta azul o painel, destruindo-o. Mas o Villarino não morreu. Sobreviveu como importadora e, desde os anos 80, em melhores mãos, voltou a atrair profissionais da música e da palavra. Tem agora, dez andares acima, outra vizinha ilustre: a editora Casa da Palavra, um xodó carioca.
                Um dia caiu-me às mãos uma foto do Villarino, em que aparecem alguns dos grandes frequentadores e o famoso painel. Rita e Antonio, os novos proprietários, mandaram ampliá-la e cobriram uma parede com ela. Nem tudo se perdeu.
                O Villarino faz hoje 60 anos. E, sim, tinha um dinheirinho na proposta de Vinicius para Tom.

                Muito além do palco-Carolina Braga‏


                Dramaturgo e diretor Roberto Alvim propõe reflexões sobre teatro brasileiro, divulga suas ideias em seminários e oficinas pelo país e lança ensaio e peça em único volume

                Carolina Braga

                Estado de Minas: 01/06/2013 

                O dramaturgo e diretor carioca radicado em São Paulo Roberto Alvim não é nada modesto. Para ter uma ideia, somente em 2013 foram cinco estreias nos palcos paulistas, praticamente uma por mês. O livro Dramáticas do transumano e outros escritos seguido de Pinokio já chega em sua terceira edição em menos de um ano de publicação. Nas palestras que faz e oficinas que ministra no país, reforça a própria fama de ser um dos poucos que pensam o teatro contemporâneo brasileiro. Ele não quer pouco.


                Fundador da companhia Club Noir, ao lado da atriz Juliana Galdino, Roberto Alvim é um provocador. “Sempre fui contra a reprodução de sistemas formais preexistentes. Percebi que havia no teatro uma ideia de tradição que era demasiado errônea e produto de uma ignorância histórica”, alfineta. Para ele, o teatro só existe na medida em que é uma arte que vive de permanentes reinvenções e, portanto, não é feita para exatamente ser entendida. Por isso instiga criadores a deixarem de lado o papel de “bonecos de ventríloquo” e propor alteridades radicais nos palcos.

                Aos 40 anos e com 20 peças no currículo, Roberto Alvim começou a carreira como ator no Rio. Por dificuldade em encontrar textos que dissessem o que interessava a ele, começou a escrever as próprias peças. A guinada se deu em 2006, quando, já em São Paulo, começou a colocar em prática “outros modos de construir o tempo, o espaço, a própria condição humana, através de manipulações inusuais da linguagem”.

                A lista de trabalhos é extensa, mas entre eles se destacam a direção de O quarto, de Harold Pinter, que em 2009 deu à companhia o Prêmio Bravo de melhor espetáculo de São Paulo. As criações assinadas por Alvim têm em comum a relação especial com as palavras e também um entendimento diferente do uso da iluminação no palco.

                Em um momento em que se publica pouca dramaturgia e raríssimos livros com reflexões sobre as artes cênicas, Dramáticas do transumano pode ser entendido como um passo de Alvim em busca da tão desejada originalidade. Não à toa, junto às reflexões, acrescenta Pinokio, peça de 2010 da qual se orgulha bastante.

                Sem o menor pudor, o dramaturgo apresenta o que faz como se fosse uma contribuição singular para a história. “Há um tipo de operação, arquitetura linguística, de trato com o sujeito e a linguagem que nem o Pinter, nem o Beckett, nem o Brecht, nem o Shakespeare fizeram antes. Então é uma contribuição singular. Me custou 20 anos.”

                Roberto Alvim é avesso à linearidade. Dramáticas do transumano reúne, muitas vezes em tópicos, apontamentos carregados de referências ligadas à filosofia, à psicanálise, à linguística e às respectivas interseções com o teatro. Autores como Heráclito, Holderlin, Nietszche, Heidegger, Wittgenstein, Deleuze e Lacan, frequentam o olimpo de Alvim. “O livro é uma pós-conceituação. Uma tentativa de mapear, no campo teórico, uma série de procedimentos originais que foram surgindo em oficinas de dramaturgia, sobretudo em Curitiba e São Paulo”, conta.

                Para ele, lamentavelmente, a geração que se dedica a fazer teatro no Brasil hoje não tem a mínima ideia das revoluções perpetradas nos campos nos quais funda suas reflexões. Ainda assim, acredita que começa a surgir um movimento interessante na escrita das peças. “A dramaturgia está problematizando todos os esteios do drama tradicional. A ideia de trama, conflito e personagem. Isso força os encenadores a criarem métodos inteiros de atuação que possam dar conta do tipo de modelação que esses textos exigem”, diz.

                Roberto Alvim já foi apontado como sucessor de nomes como Antunes Filho, Zé Celso Martinez Corrêa e Gerald Thomas, e gosta deste desafio. Lembre-se que ele não é nada modesto. “Até para dignificá-los e honrá-los temos que superar nossos mestres em pelo menos 30% em outras direções”, acredita. E assim ele vai.


                TRECHO

                “O teatro não é entretenimento – já existe entretenimento o suficiente. O teatro tampouco é reflexão – existem, hoje, inúmeras instâncias destinadas a isto. O teatro é, sim, o lugar de experenciarmos o tempo, o espaço e a condição humana de outros modos, para além da vivência que a cultura nos proporciona. Isto só o teatro pode fazer – este lugar só o teatro pode instaurar. O teatro como alteridade radical.”
                Roberto Alvim, em Dramáticas do transumano e outros escritos seguido de Pinokio 

                A infância de Jesus-André di Bernardi Batista Mendes‏


                Estado de Minas - 01/06/2013

                Em A infância de Jesus o sul-africano J. M. Coetzee mergulha na alma de pessoas que se sentem inadaptadas ao mundo e buscam novo sentido para a existência

                André di Bernardi Batista Mendes




                No livro A infância de Jesus, J. M. Coetzee, ganhador do Prêmio Nobel de 2003, imagina um país de estrangeiros que, depois de atravessar o oceano, pagam com o esquecimento da própria trajetória a oportunidade de começar uma vida nova. A condição de estrangeiro também impõe uma língua nova, no caso um espanhol adquirido precariamente e que ninguém domina por completo. O leitor é guiado pelo olhar de Simón, recém-chegado que se atribui o papel de guardião de um menino de 5 anos e vai trabalhar como estivador, carregando sacos de grãos de trigo. A subsistência – o simples sustento pelo pão de cada dia – parece ser a única finalidade à qual se dirige a rotina do lugar, onde todos parecem se conformar.

                Inadaptado e insatisfeito, ainda que ansioso por compreender e ser aceito, Simón tenta fazer valer os direitos de alguém cujo corpo continua impregnado de memórias. Simón, assim, trava intensos e interessantes debates filosóficos com os camaradas, com os amigos da estiva, e faz o possível para explicar às mulheres um dos fatos mais básicos (e misteriosos) da vida: o desejo. Cuidando da criança que um acidente lhe confiou e se lançando numa peculiar missão em nome dela, esse homem estabelece vínculos através dos quais a vida em família e a afetividade são expressas em sua face mais estranha.

                Não sei que dispositivos existem dentro de nós, mas, por meio da literatura, Coetzee, de um modo peculiar, solto, destrava alguns destes apetrechos não menos estranhos. O escritor sul-africano fala, sobretudo, sobre a infância, sobre pensamentos, sobre inquietações. E isso reacende uma alegria. Dizer da infância de um qualquer David ou Jesus (e este nome, e esta palavra carrega uma espécie de combustível) incendeia tudo de vez. Existem, apesar de tudo, contrapontos, contrapelos de luzes e sombras, de pouco e muito, de mel e mal, de música e silêncio, até, quem sabe, começar um processo de descobertas reais. As coisas, as situações evoluem até embaçar, até surgirem neblinas. Quando vamos ver, nem a literatura para resgatar aquele tanto que se perdeu pelos descaminhos, numa embolada feito de tempo e (des)razão. Coetzee resgata um verde esperançoso. Este tipo de atitude maliciosa, este tipo de literatura pende para o positivo, apesar de tudo.

                As coisas simples podem lotar de pequenas emoções o dia a dia das pessoas. Existe uma força estranha, cantada em verso e prosa, que desgoverna o ruim, que alcança as sombras para inaugurar ali o desejo de um claro sol. Esta mesma força alcança as sobras, os restos, as pequenas coisas que nada significam. Coetzee despeja essa potência feita de ternura e sonho em função do exílio de seus personagens, em função do esquecimento, que nada mais é dissolução, anulação e distrato. Cortar, extinguir, desfazer os laços criados pelo contato humano, pelas trocas, forja apenas invisibilidade e descaminhos, e mais nada.

                Deve ser estranho não ter um nome, não ter um lugar, deve ser estranho pertencer ao incerto. Simón passa por estilhaços e fagulhas: “Ele não se sente velho, assim como não se sente moço. Não se sente de nenhuma idade específica. Ele se sente sem idade, se isso é possível”. Já o menino de Coetzee gosta de parlendas, de desafios: ele, incansável de perguntas, questiona: “Por que a gente está aqui?”. Não há resposta. “Não sei o que dizer. Estamos aqui pela mesma razão que todo mundo está. Nos deram uma chance de viver e nós aceitamos essa chance. É uma grande coisa, viver. É a coisa mais importante de todas.”

                Absurdos do coração
                Num lugar onde não existem lembranças, num mundo que promove perdas, Coetzee cava pelo viés dos absurdos que moram no coração. Nunca será fácil espantar as ideias tristes como se fossem pássaros indesejáveis. A questão dos desejos é central. “Meus desejos? posso ser franco?” “Pode.” “Meus desejos me levam a mais que bolacha e pasta de feijão. Me levam, por exemplo, a carne com purê de batata e molho.

                O coração, a alma é algo não anulável. Quanto mais insignificante, mais rica, mais indestrutível. A palavra infância vai sempre gerar desconforto. Elas, as crianças, desprendem-se de acordos e conchavos, mas elas articulam, de um jeito peculiar – na forma de olhar, na forma até de não dizer – outras formas de entendimento, obedecendo a uma índole benevolente, propensa a luzes e cirandas. Coetzee denuncia uma terra cada vez mais estrangeira para os homens "estranhamente satisfeitos". Coetzee denuncia a ferida, denuncia, por meio de metáforas, o desaparecimento do afeto, do amor, do desejo que une e recoloca.

                A vida, com seus jogos, com suas armadilhas, nunca é literal, como querem aqueles que organizam e reorganizam uma engrenagem furiosa, promissora em termos de alienação e certezas feitas de apenas pão e plástico. Coetzee denuncia o não espontâneo. É quase um descompasso, porque as crianças, quando brincam, apenas sugerem, com cara de céu. Isso porque os danados nada têm de anjos. E assim é o Jesus, o David de Coetzee. As crianças não sabem que são apenas lúcidas.

                Coetzee, com uma história, com um périplo cheio de tristeza e assombro, celebra o dia, a alegria dos encontros, da convivência, da ajuda entre um e outro. É magistral a construção dos diálogos de A infância de Jesus, principalmente quando entra em cena a perspicácia incontestável, a perspicácia ingênua da criança, que não baixa a guarda, que encara, nos olhos, os desmandos das coisas que acontecem, as vicissitudes do dia e da noite. No livro, todos têm voz. O bom, o duro é que a história de A infância de Jesus, sempre em construção, não acaba, mas continua em nós, como heras.

                Coetzee viaja num dizer de escolhas certas, ele adota uma postura digna, ereta, diante dos vultos que tanto atropelam e atravancam. O escritor, pelas palavras, destranca e destrava. Enganou-se aquele que disse que os romances não carregam doses e mais doses de poesia. Essa atitude nasce de uma alma acordada, nasce de um incômodo que surge para, delicadamente, mais incomodar. Ler desanuvia, embriaga e mata um outro tipo de sede. Melhor que isso, só a música. Coetzee chama a atenção para o raro que mora, latente, nas palavras boas: respeito, tolerância, paciência. Pois sim, tudo é óbvio, até para uma criança de olhos tristes.


                Trecho

                “As coisas não têm seu peso devido ali: é isso que, no fundo, ele gostaria de dizer a Elena. A música que ouvimos não tem peso. Nosso ato sexual não tem peso. A comida que comemos, nossa dieta enfadonha de pão, não tem substância – falta a substancialidade da carne animal, com toda a gravidade do sangue derramado e do sacrifício por trás. Nossas próprias palavras não têm peso, essas palavras do espanhol que não brotam do nosso coração.”

                A INFÂNCIA DE JESUS
                • De J.M. Coetzee
                • Editora Companhia das Letras
                • 304 páginas, R$ 44