sexta-feira, 15 de maio de 2015

Questão de pele

Reação indignada do uso do black face, em que brancos interpretam negros, em espetáculo paulista provoca suspensão e mudança da peça. Participantes da Mostra Benjamin de Oliveira em BH comentam a questão


Carolina Braga
Estado de Minas: 15/05/2015 




Cena de A mulher do trem, da companhia Os Fofos Encenam, com Cris Rocha, Zé Valdir, Katia Daher e Carlos Ataide. Ao fundo, personagem usa o recurso black face (Thito Borba/Divulgação)
Cena de A mulher do trem, da companhia Os Fofos Encenam, com Cris Rocha, Zé Valdir, Katia Daher e Carlos Ataide. Ao fundo, personagem usa o recurso black face

“O mais triste é que a cada vez que apresentamos Madame Satã algo novo entra no texto como denúncia”, lamenta o ator e diretor Rodrigo Jerônimo. Foi assim que entraram manifestações de apoio à travesti Verônica e agora é a vez da polêmica do black face, em que atores brancos se pintam com tinta preta para representar papéis de negros  (leia quadro nesta página).

Dirigido por João das Neves,  Madame Satã  é uma das atrações da Mostra Benjamin de Oliveira, em cartaz no Oi Futuro Klauss Vianna. Na próxima quarta, a citação ao black face estará no meio do espetáculo, no momento em que o protagonista é agredido verbalmente por um policial.

“Lutamos muito para ter representatividade em tantos espaços. No entanto, sempre se reproduz o estereótipo. A gente fica um pouco abismada e, sinceramente, acho que não cabe mais”, afirma o ator.

Em sua terceira edição, a Mostra Benjamin de Oliveira é um espaço de difusão e valorização do trabalho de atores e atrizes negros. Além dos espetáculos, estão agendados debates. Amanhã, haverá uma roda de conversa com o Coletivo Negro (SP). Na quinta, o tema é o livro Africanidades e relações raciais: insumo para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil.

“É revoltante ter que trazer essa discussão até hoje”, diz Rodrigo Jerônimo. “O negro não quer ser representado, ele existe. Assim como o branco. O black face não faz sentido. É muito difícil querer justificar isso esteticamente nesse momento que estamos vivendo”, diz a produtora Aline Vila Real, integrante do Grupo Espanca!.

A polêmica em torno do black face começou no início deste mês, pela internet. A companhia paulistana Os Fofos Encenam anunciou novas apresentações da peça A mulher do trem, parte do repertório do grupo desde 2003. A estudante de arquitetura Stephanie Ribeiro viu a foto da montagem no material de divulgação nas redes sociais. Nela, ao fundo, estava o ator em black face, ou seja, com o rosto pintado de preto.

“Comentei nas fotos do evento e no evento em si e isso gerou repercussão. Então, saiu uma nota d’Os Fofos que relativizava, explicando a questão das máscaras”, conta ela. Não satisfeita, criou na mesma rede social a mobilização que culminou na realização, na última quarta, em São Paulo, do debate “Arte e sociedade: a representação do negro.”

“Estamos numa sociedade desigual, racista, opressora, que é marcada pelo genocídio do povo negro. Se a arte não entende isso e usa seus meios para agir, acho que vivemos num momento de comodismo, onde é mais fácil fazer releituras de anos e anos atrás do que criação de algo que ponha o dedo na ferida”, critica Stephanie.

Durante o debate de anteontem, Fernando Neves, diretor da cia. Os Fofos Encenam, anunciou que o black face, tratado por ele como uma máscara teatral, sairá de cena. “Porque ela não foi criada para causar dor em ninguém [...] Apoio essas falas que ouvi até agora tão sábias, apoio plenamente. O que vai acontecer é que a gente vai retrabalhar. Quero agradecer muito e pedir desculpas a todos que eu tenha ofendido”, afirmou.

O cineasta Joel Zito Araújo elogiou a atitude do grupo. Segundo ele, há dois aspectos dessa polêmica que surpreendem mais. Um é o fato de a peça haver estreado em 2003 e, desde então, ignorar a representação racista que o black face significa. “O debate criou também um paradoxo muito estranho – o que é mais importante: lutar contra o racismo ou defender a liberdade de expressão. Isso não faz o menor sentido.” Para ele, o fato positivo dessa história é que agora a sociedade reagiu.

Para o ator Sidney Santiago, fundador do grupo Os Crespos, o debate ainda tem muito a avançar. “Ainda não conseguimos efetuar um debate sobre representação negra. Ainda estamos legislando sobre legitimidade”, pontua. Durante o encontro, Stephanie Ribeiro ressaltou: “A representatividade num país onde 54% da população é negra não deveria nem ser discutida. Então, quando a gente se manifesta, a gente não está censurando, a gente só está pautando o que ninguém tinha pautado antes, porque não tem a nossa vivência”.

Como Joel Zito Araújo ressalta, a proporção que a situação tomou surpreendeu muita gente, principalmente os integrantes do grupo. Tal espanto tem seu lado positivo. “Essas coisas são feitas para criar na sociedade um policiamento em relação a práticas condenáveis, perversas”, conclui.


ENTENDA O CASO
2/5/2015

» O grupo de teatro paulista Os Fofos Encenam anuncia a apresentação da peça A mulher do trem no Itaú Cultural, em São Paulo, para 12 de maio.
» A estudante de arquitetura Stephanie Ribeiro vê o ator com a máscara do black face no anúncio do espetáculo e revolta-se. Publica no Blogueiras Negras um texto de repúdio e cria no Facebook o movimento #nãovaiterblackface

3/5/2015
» A apresentação é cancelada e, em seu lugar, é realizado o debate “Arte e sociedade: a representação do negro”

12/5/2015
» Os Fofos Encenam decide que as máscaras sairão de cena.


MOSTRA
A Mostra Benjamin de Oliveira fica em cartaz no Teatro Oi Futuro Klauss Vianna (Avenida Afonso Pena, 4.001 - Mangabeiras) até o dia 24 deste mês. Entre os destaques da programação deste fim de semana estão a apresentação de hoje, às 20h, de {ENTRE}, do Coletivo Negro (SP). Amanhã tem Sapiências e Transbordas, da Laia Cia de Danças Urbanas. A curadoria é de Grace Passô, Mauricio Tizumba e Alexandre de Sena. Entrada franca. Informações: burlantins.com.br/benjami.



SAIBA MAIS
O que é black face?

É uma técnica com maquiagem teatral para dar a aparência de negros a atores brancos, que se originou nos Estados Unidos, especialmente depois da Guerra Civil americana (1861-1865). Era usada em espetáculos de entretenimento, piadas, música e dança, e o personagem em black face representava o estereótipo do afro-americano. A tradição começou em 1830 e foi forte nos EUA por quase 100 anos. Ficou também famosa internacionalmente, sobretudo na Inglaterra. No Brasil, o black face mais famoso é o do ator Sérgio Cardoso, que interpretou um negro na novela A cabana do Pai Tomás (Globo, 1969). Sérgio Cardoso foi pintado, usava peruca e rolhas no nariz para ficar parecido com um negro.