domingo, 19 de abril de 2015

‘Os largados’ - Martha Medeiros

O Globo 19/04/2015

“Que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê, que se comunica à distância, que fica zonza diante das variadas opções de sexo, amor, carreira?”

 Antigamente eu rosnava a cada vez que ficava sem luz em casa. Agora até festejo, e não só pela economia na conta. Dias atrás, a energia elétrica caiu às quatro da manhã e só retornou perto do meio-dia. Sem computador, sem televisão, sem bateria no celular, me restou o ato heroico de ler um livro do começo ao fim, sem interrupção. Por sorte, “Os largados”, do italiano Michele Serra.

Divertir e comover. Combinação diabólica plenamente atingida pelas 125 páginas que contam a história de um pai exasperado com o filho de 19 anos que vive entocado com seus gadgets eletrônicos. Um guri que não conversa, se veste com molambos, come no sofá, não vê a cor do céu, enfim, desperdiça sua juventude.

Enquanto o pai busca caminhos para se conectar com essa criatura amorfa (caminhos inclusive no sentido literal: acredita que se conseguir convencer o garoto a acompanhá- lo numa trilha, nem tudo estará perdido), vai elaborando mentalmente um livro que sonha em escrever sobre uma fictícia Guerra Mundial entre Jovens e Velhos. E é aí que “Os largados” diz a que veio.


É só olhar para trás e lembrar as inúmeras diferenças que tínhamos com nossos pais. Quem não? O conflito de gerações é um clássico na vida de qualquer um. Porém, essa guerra se dava no mesmo campo de batalha. Podíamos pensar de forma distinta, mas comíamos todos à mesma mesa, a música vinha do único equipamento de som instalado na casa, fazíamos passeios familiares, conversávamos — ou discutíamos, brigávamos, que seja, mas dentro de um universo comum. Não é mais assim. Diz o pai ao filho, no livro: “Agora tenho a sensação — a suspeita? o terror? — de uma mutação tão radical que dificilmente, um dia, poderemos nos reconhecer, você e eu, no mesmo prazer.”

E continua: “Partiu-se uma corrente — da qual eu sou o último elo.”

A questão é: que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê, que se comunica à distância com os outros, que perdeu o idealismo, que fica zonza ou, pior, paralítica diante das variadas opções disponíveis de sexo, amor, carreira?

Estão 100% plugados, mas cada vez mais desconectados de nós, os últimos analógicos desta era. Largados num novo mundo que está sendo construído à nossa revelia. Não, o livro não é pessimista ou trágico, ao contrário. É extremamente engraçado, mas com uma graça firmemente apoiada na inteligência, na ironia e na reflexão. E dá o devido espaço a uma emocionante descoberta: nesta guerra entre jovens e velhos, a razão circula entre os dois exércitos e tem múltiplas formas de se apresentar.

Leia, porque o livro é muito bom. E também porque livros, este ou qualquer outro, continuam sendo fornecedores de uma energia que se mantém on em qualquer circunstância. O cérebro não cai.      

Camarim - Martha Medeiros

Zero Hora 19/04/2015

O que eu menos queria naquele momento era comer, mas e a desfeita?

E o desperdício?

Como se sabe, escritores são convidados a palestrar em Feiras do Livro, Bienais e demais eventos literários. É uma forma de passar nossa experiência adiante, de estimular a leitura, de conhecer os leitores e de faturar um cachezinho, já que também pagamos contas.

Trilhei o Estado e boa parte do país realizando esses encontros, porém hoje quase não viajo a trabalho: preciso ficar mais tempo em casa escrevendo, as demandas aumentaram. Mas, de vez em quando, abro exceções, como quando estive numa cidade do interior do Rio. Tinha mesmo que ir para a capital, então dei uma esticada. Tudo certo, até que, dias antes de eu embarcar, a organização do evento me enviou um e-mail pedindo que eu fizesse as exigências de camarim.

Como é que é? Por alguns segundos, me senti o Axl Rose. A Lady Gaga. Me vi diante daqueles espelhos circundados por lâmpadas e elaborei mentalmente uma lista básica: champanhe brut, queijos franceses, bombons trufados, patê de foie gras, torradas italianas e Coca-Cola com meu nome no rótulo, ou nada feito. Acordei do transe com minha própria risada.

Respondi: olha, nem imaginava que haveria um camarim, mas, havendo, ficaria feliz com um banheiro e água mineral. Muito grata, até breve.

Eu não sabia, mas o bate-papo seria no sambódromo local. Havia centenas de pessoas me aguardando. Fui conduzida ao camarim por guarda-costas. Tinha alguma coisa errada: será que me confundiam com a Rihanna? Atravessei um longo corredor no backstage e por fim abriram uma porta com uma estrela dourada, como nos filmes.

Ao entrar, me deparei com uma mesa que humilharia nossos cafés coloniais. Nunca vi quantidade igual de frios, pães, salgadinhos, cachorrinhos, sanduíches, cupcakes, minipizzas, canapés, amanteigados. E, no centro, um grande pote de vidro repleto de MM´s coloridos. Lembrei da banda Van Halen, que sempre exige MM´s antes dos shows, só que sem a casquinha que reveste o chocolate. Os meus tinham a casquinha, era a graça da coisa. Guloseimas com monograma.

Tive vontade de chorar. O que eu menos queria naquele momento era comer, mas e a desfeita? E o desperdício? Havia umas quatro pessoas esperando eu avançar, incluindo um fotógrafo. Alcançavam guardanapos e sugeriam: comece por este, não deixe de provar o folhado, esse bolinho foi minha tia que fez, aquele papo-de-anjo é o predileto da prefeita.



Minha conversa com o público durou uma hora e meia, e passei o tempo todo aflita com um miolinho de pão que teimou em se instalar entre o incisivo e o canino superior. Essa coisa de escritor ser tratado como astro pop, convenhamos, é meio constrangedor. Mas, por via das dúvidas, incluirei na minha próxima lista uma dúzia de escovas de dente. Com cerdas de nylon ultra soft e de alguma marca dinamarquesa, pra não me mixar.

EM DIA COM A PSICANÁLISE » Sobre a liberdade

EM DIA COM A PSICANÁLISE » Sobre a liberdade


Estado de Minas: 19/04/2015





Por liberdade entende-se geralmente ser livre para fazer, ir, falar, pensar o que quisermos. Muitos abraçam essa ideia como se fosse possível. Mas a liberdade é um conceito bonito, atraente e impraticável. Vejamos.

Engana-se quem acredita que existe para nós essa possibilidade. Nascemos por decisão do outro ou até mesmo por seu descuido. Não temos liberdade para decidir viver ou morrer. Sobrevivemos por decisão alheia. Não decidimos a hora do fim, por pior que seja, somos forçados a atravessar o que quer que seja.

Somos homem ou mulher. O corpo biológico não determina o desejo ou a sexualidade, se hétero ou homossexual. Uma escolha forçada subjetiva e inconsciente, ainda crianças nos identificamos com um sexo ou outro e muitas vezes só na adolescência assumiremos as consequências, o que pode causar muitas dificuldades para um sujeito.

Um pouco menores hoje, mas não esqueçamos que o famoso escritor Oscar Wilde foi condenado pela corte inglesa por sua conduta sexual considerada imoral e em dois anos de trabalhos forçados morreu numa prisão miserável. E sobre Tiradentes, nosso inconfidente, o que dizer?

Não somos quem desejaríamos ser. Ao contrário, muitas vezes gostaríamos de estar na pele do outro porque sua grama é mais verde... Ser diferente, sentir diferente, ter outro olhar, amar quem for melhor, mais adequado talvez, mas qual o quê! Quando vemos, fomos fisgados e já não somos donos de nós mesmos.

O Dicionário Aurélio (velho Aurélio, e não o Google) descreve a palavra liberdade como: “faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação”. Porém como gostaríamos de ter dito outras palavras, agido de outra forma, e por que não o fizemos, se como se, define no dicionário, somos livres para agir segundo nossa determinação? Muitos diriam: pergunta difícil não vale!

Porque somos determinados por uma força antagônica de origem inconsciente, que nos divide e nos faz ser pelas metades. E metades contrárias. Nossa divisão subjetiva nos faz conscientes das nossas vontades, e dos caprichos do ego e igualmente desconhecedores do desejo, o que resulta numa alienação perigosa, já que, sendo o desejo nosso melhor guia, ainda insistimos em não o escutar e nos deixar levar pelo ego, a vaidade, a imbecilidade que hoje impera no mundo.

Também o dicionário diz que liberdade é a “faculdade de praticar tudo quanto não é proibido por lei”, apontando com isso que o homem não pode fazer tudo o que quer e precisa aceitar limites que lhe são imprescindíveis. A educação é um exemplo de cerceamento necessário para a humanização.

Acreditar numa liberdade total, seja ela de expressão, de movimentos, de atitudes e ações, é ilusão e ingenuidade. Até mesmo a liberdade de pensamento deve ser observada, pois o pensar pode nos conduzir a lugares demasiado sombrios. E um corte em determinado momento muda a direção de uma vida.

E por isso mesmo concordo e concluo com o professor da USP e filósofo Clovis de Barros Filho: “E tudo isto nos permitiria concluir que fazer o que se quer é uma forma a mais de escravidão. Menos visível que correntes, algemas e celas. Mas não tão determinante quanto. O que talvez nos obrigasse a concluir que, para agir livremente, de verdade, teríamos que fazer o que não queremos. Na contramão dos apetites. Só assim teríamos a certeza de não estarmos sob o jugo tirânico da própria carne. O que, convenhamos, tiraria da liberdade todo o seu charme. Faria dos seus símbolos mais diversos, do cartaz com Che Guevara às caminhonetes 4x4, uma fonte a mais de tristeza no mundo”.