domingo, 23 de dezembro de 2012

Os Pobres na Estação Rodoviária - Ledo Ivo

poema de Lêdo Ivo
via Affonso Romano de Sant'Anna

Os pobres viajam, Na estação rodoviária 
eles alteiam os pescoços como gansos para olhar 
os letreiros dos ônibus. E seus olhares 
são de quem teme perder alguma coisa:
a mala que guarda um rádio de pilha e um casaco
que tem a cor do frio num dia sem sonhos,
o sanduíche de mortadela no fundo da sacola,
e o sol de subúrbio e poeira além dos viadutos.
Entre o rumor dos alto-falantes e o arquejo dos ônibus
eles temem perder a própria viagem
escondida no névoa dos horários.
Os que dormitam nos bancos acordam assustados,
embora os pesadelos sejam um privilégio
dos que abastecem os ouvidos e o tédio dos psicanalistas
em consultórios assépticos como o algodão que
tapa o nariz dos mortos.
Nas filas os pobres assumem um ar grave
que une temor, impaciência e submissão.
Como os pobres são grotescos! E como os seus odores
nos incomodam mesmo à distância!
E não têm a noção das conveniências, não sabem
portar-se em público.
O dedo sujo de nicotina esfrega o olho irritado
que do sonho reteve apenas a remela.
Do seio caído e túrgido um filete de leite
escorre para a pequena boca habituada ao choro.
Na plataforma eles vão o vêm, saltam e seguram
malas e embrulhos,
fazem perguntas descabidos nos guichês, sussurram
palavras misteriosas
e contemplam os capas das revistas com o ar espantado
de quem não sabe o caminho do salão da vida.
Por que esse ir e vir? E essas roupas espalhafatosas,
esses amarelos de azeite de dendê que doem
na vista delicada
do viajante obrigado a suportar tantos cheiros incômodos,
e esses vermelhos contundentes de feira e mafuá?
Os pobres não sabem viajar nem sabem vestir-se.
Tampouco sabem morar: não têm noção do conforto
embora alguns deles possuam até televisão.
Na verdade os pobres não sabem nem morrer.
(Têm quase sempre uma morte feia e deselegante.)
E em qualquer lugar do mundo eles incomodam,
viajantes importunos que ocupam os nossos
lugares mesmo quando estamos sentados e eles viajam de pé.

 https://www.facebook.com/affonsoromano.santanna

Cota de opinião

FOLHA DE SÃO PAULO

Estudantes e acadêmicos respondem se são a favor ou contra a adoção de cotas no vestibular de universidades públicas
"No curto prazo, sou a favor. Porém não adianta embutir a cota se a pessoa não tem conhecimento para fazer uma faculdade. Sou a favor das cotas raciais porque a maioria das pessoas de escolas públicas são negros e pardos. A curto prazo é bom, mas não melhora o ensino"
GUILHERME MONTONI, 20 ANOS,
vestibulando de estatística, formado em escola particular
"Sou a favor do sistema de cotas, mas tenho ressalvas. Sair da escola pública sem uma base é ruim. Não adianta apenas o estudante entrar na faculdade, ele precisa permanecer. Quanto às cotas para negros e indígenas, é mais difícil. Do ponto de vista socioeconômico, sou a favor"
CAIO GIMENES ALVES, 18 ANOS,
vestibulando de educação física, formado em escola particular
"As cotas são válidas. A população negra, estatisticamente, tem menos acesso à educação de qualidade. Não é incapacidade. As cotas devem ser medidas paliativas e temporárias"
JOÃO ERICK FERREIRA DE ARAÚJO, 19 ANOS,
vestibulando de farmácia, formado em escola pública
"Provavelmente foi a melhor coisa que aconteceu nos últimos 20 anos no Brasil. Sou a favor das cotas por princípio, porque existe uma cota implícita na sociedade brasileira destinada a quem tem pele branca e nasce com dinheiro. Mas o sistema deve ter data para ser gradativamente substituído por outras medidas"
MUNIZ SODRÉ,
professor titular da Escola de Comunicação da UFRJ
"Sou favorável às cotas. Mas, em primeiro lugar, sou favorável a uma educação básica de qualidade. O sistema de cotas é um jeitinho que a gente está dando para mudar a cor da elite brasileira enquanto não se faz uma escola de igual qualidade para pobres e ricos"
CRISTOVAM BUARQUE,
senador e ex-ministro da Educação
"O sistema de cotas é uma fundamental ação de combate à desigualdade de uma sociedade. Mas temos que pensar o sistema com período finito. Tem que acabar porque tem caráter emergencial, mas tem que ser acompanhado de ações como a melhoria da escola básica"
CÂNDIDO GRZYBOWSKI,
diretor do Ibase
"Sou a favor, mas não com esse número tão grande de vagas para cotas. Conheço pessoas de escolas públicas com conhecimento muito bom, do mesmo nível de quem é da rede particular. No caso de cotas para negros, pardos e indígenas, sou contra. Dizer que essas pessoas são menos capazes é ignorância"
VINÍCIUS CHAIM, 17 ANOS,
vestibulando de engenharia mecânica, formado em escola particular
"Sou a favor porque dá mais chance aos alunos de escola pública, mas contra porque é uma forma de o governo não resolver a situação da formação na escola pública. No caso das cotas raciais, sou contra porque ninguém tem que chegar à universidade por ser negro ou indígena. A pessoa deve até se sentir mal"
AMANDA FERRAZ DE BRITO, 17 ANOS,
vestibulanda de medicina, formada em escola pública
"Concordo em ter cotas, mas 50% é muito. Desmerece e tira a chance de quem tenha estudado muito e se formado em escola particular. A porcentagem racial também promove o racismo"
BEATRIZ HIDA, 17 ANOS,
vestibulanda de engenharia de produção, formada em escola particular
"Acho que não deveria existir esse tipo de cota. Mas, como teremos, acho que não precisava ser uma porcentagem tão grande de cotistas aprovados"
JENIFFER KIM, 18 ANOS,
vestibulanda de ciências biológicas, formada em escola particular
"A cota não é uma forma de democratizar o ensino. O pessoal vai entrar na faculdade com uma defasagem. Sou contra as cotas raciais porque não acredito que dessa forma a dívida que a sociedade acha que tem com os negros e indígenas será paga"
SÍLVIO LUIZ CESÁRIO FILHO, 18 ANOS,
vestibulando de direito, formado em escola pública
"O sistema de cotas viola princípios básicos da Constituição, como o de que todos são iguais perante a lei. Trata-se de uma tentativa de remediar, mas reforça a concepção de raça. O abandono do princípio do mérito é ruim"
JOSÉ GOLDEMBERG,
pesquisador e ex-reitor da USP
"Se o objetivo do sistema de cotas é combater o racismo, ele estabelece um paradoxo porque a única forma de combatê-lo é eliminar o conceito de raças. As cotas raciais como estão definidas pela lei dividem os cidadãos e podem produzir algo incontrolável"
YVONNE MAGGIE,
professora titular do departamento de Antropologia Cultural da UFRJ

    Pioneira, Uerj vira 'Congo' depois de implantar cotas

    FOLHA DE SÃO PAULO

    Universidade carioca, que adotou sistema há dez anos, tem bolsa e bandejão mais barato para cotistas, mas alunos veem racismo velado na sala de aula
    MORRIS KACHANIENVIADO ESPECIAL AO RIO
    Até dez anos atrás, quando adotou o sistema de cotas, a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) mais parecia um shopping da zona sul, área nobre da cidade, com o predomínio de alunos brancos da classe média.
    Hoje, o apelido da Uerj é "Congo". Surgiu em 2005, em um torneio esportivo envolvendo faculdades de direito, quando as torcidas adversárias assim se referiam, em tom de gozação, à diversidade étnica da universidade.
    Os alunos da Uerj decidiram assumir o colorido e, desde então, o país africano se tornou uma espécie de ícone da autoafirmação, a ponto de o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luiz Fux, que, assim como Joaquim Barbosa, leciona na Uerj, ter citado o Congo no voto sobre cotas para negros em abril.
    A Uerj foi uma das primeiras universidades a adotar o sistema, em trajetória de erros e acertos. Hoje, 45% das vagas são reservadas para cotistas -20% para alunos de escolas públicas, 20% para negros e indígenas e 5% para deficientes. O denominador comum é a renda per capita mensal de até R$ 960.
    A reportagem da Folha organizou grupos de discussão com alunos -cotistas sociais, raciais e não cotistas- e ouviu professores e a reitoria.
    A percepção é que o sistema de cotas implantado na universidade ainda apresenta distorções e que o preconceito existe, porém a avaliação, de maneira geral, é mais positiva do que negativa.
    O cotista tem direito a uma bolsa de R$ 400, a cursos de reforço e a material gratuito, além de desconto no bandejão, pelo qual paga R$ 2 no almoço -não cotistas pagam R$ 3. A bolsa, antes restrita ao primeiro ano, foi estendida em 2008 em razão do alto índice de evasão.
    De acordo com o estudante Rodolfo Righi e seus colegas Matheus e Rodrigo (todos não cotistas), há um aluno cotista, do primeiro ano de engenharia, que não sabe sobre seno e cosseno. "É claro que a aula anda mais devagar e acaba sendo nivelada por baixo", reclamam os estudantes.
    A nota de corte é um ponto sensível. Em 2012, a pontuação mínima em engenharia civil para não cotistas foi 81. A de cotistas de escola pública, 41. A de negros, 36.
    Outra distorção está na denúncia de que alguns alunos brancos se autodeclaram negros. "São casos pontuais, mas não há como fiscalizar. A lei se autoaplica", diz a sub-reitora Lená Menezes. "Investigamos os sinais de riqueza apenas quando não correspondem ao teto da cota."
    No outro extremo, são vários os exemplos de mobilidade social proporcionada pelo sistema. É o caso de Atilas Campos Filho, 28, criado em Belford Roxo e graduado pela Uerj, filho de empregada doméstica e que hoje atua como jornalista. "Foi um divisor de águas. A universidade mudou completamente minha forma de ver a vida."
    Entre os professores, a constatação é que o cotista tem um desempenho inferior no primeiro ano, mas depois deslancha e praticamente se iguala ao não cotista. Estatísticas mostram que homens cotistas e não cotistas apresentam uma média final de 5,9 nas notas. Entre as mulheres, as não cotistas obtêm 7,1 e as cotistas, 6,9.
    O tempo de permanência até a conclusão do curso é o mesmo. Mas a taxa de evasão dos cotistas é inferior: 20%, em comparação com 33% dos não cotistas.
    "O cotista é mais esforçado, pois ele sabe que essa pode ser a única chance de mudar sua vida", afirma Hilda Ribeiro de Souza, professora de odontologia. "O que mudou é que agora o professor precisa dar mais atenção, não só supervisionar."
    Na sala de aula, não é possível saber quem é cotista. A cor da pele pode ser uma pista. A maioria concorda que existe um racismo velado e que a segregação entre os alunos não é incomum.
    O cotista com culpa não é um ponto fora da curva. Especialmente em disciplinas que exigem cálculo, nas quais as deficiências de formação são mais visíveis. Segundo um cotista de economia, que preferiu não se identificar, "muitos sentem vergonha no início. E há preconceito".
    Por outro lado, o aprendizado resultante do convívio com a diferença é valorizado: "É bom juntar todos na mesma sala. Eu mal saía da zona sul, nunca tinha conhecido ninguém que pegava trem para ir ao colégio", diz a aluna de direito Raissa Oliveira.
    O reitor da Uerj, Ricardo Vieralves, afirma que o nível de qualidade do ensino na universidade não caiu depois da adoção das cotas.
    A comparação da performance dos formandos da universidade no Enade antes e depois da adoção da medida mostra que a média geral na Uerj se manteve, com pequenas mudanças nas notas, para cima ou para baixo, dependendo da faculdade.

    Testes provam que aparência e DNA se confundem no país

    folha de são paulo especial

    Folha faz mapa genético de pré-vestibulandos de baixa renda de São Paulo, e resultado traz surpresas; oito dos 12 alunos afirmam ser mais favoráveis a cotas sociais
    CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULOA mulata Célia da Silva se autodeclara "muito preta", mas menos de 10% dos seus genes são de origem africana. A loirinha Milene da Costa se classifica como "muito branca", mas tem 37% de ancestralidade africana.
    Ambas moram na periferia de São Paulo, são de famílias de baixa renda e sempre estudaram em escolas públicas.
    "Não esperava, mas adorei saber [da ancestralidade africana]", afirma Milene, 17, que imaginava ter pelo menos 40% de ancestralidade europeia -tem somente 11%.
    Célia, 21, apostava que 60% da sua ancestralidade era africana, mas sua predominância genética é europeia (73%). "Já esperava, mas não sabia que era tanto."
    As duas integram um grupo de 12 pré-vestibulandos elegíveis para cotas nas universidades, segundo a lei federal, em algum dos três critérios (alunos de escola pública, baixa renda ou cor).
    Os alunos aceitaram ter o perfil genético investigado. Os testes foram feitos pela clínica Gene, de Belo Horizonte, a pedido da Folha.
    MISTURA GENÉTICA
    Os resultados mostram que os estudantes, assim como grande parte da população brasileira, guardam uma mistura genética muito mais complexa do que sua aparência física possa sugerir.
    Oito dos 12 estudantes, inclusive quatro que se autodeclaram negros ou pardos, tendem a ser mais favoráveis às cotas destinadas aos egressos de escola pública, chamadas de sociais, do que às cotas puramente raciais.
    "A cota social é mais bem-vista e, indiretamente, já beneficia o negro. A racial é muito importante, mas, às vezes, gera mais preconceito", declara Célia.
    Clarisse Antunes, 18, que se autodeclara negra (tem 60% de ancestralidade africana), acredita que as cotas sociais beneficiam muitas pessoas que não têm base para ingressar numa faculdade. "Mas as cotas raciais ainda são necessárias", afirma.
    Júnior Ramalho Franco, 20, que se "acha" pardo (tem 1,8% de ancestralidade negra), é pró-cotas sociais por pensar que incluem pretos e brancos pobres. "Está todo mundo no mesmo barco."
    Para Johnny da Silva, 23, "moreno de sol" (93,5% de ancestralidade europeia), as sociais são mais "democráticas". "Vamos disputar nós contra nós mesmos, brancos, negros ou pardos."
    Já Luan Perosa Chitto, 21, branco (89,2% de ancestralidade europeia), defende que as cotas raciais devam existir independentemente das sociais. "A sociedade ainda tem uma dívida grande com eles. Pobre branco sofre preconceito, mas pobre preto sofre muito mais. Eu nasci e vivo na periferia e sei disso."
    Segundo frei David Santos, ativista da causa negra e presidente da Educafro, há um bombardeio da sociedade contra as cotas raciais, e o resultado é que até os negros são influenciados por ele e passam a considerar as cotas sociais uma opção melhor.
    "Vários setores da sociedade, principalmente a mídia, têm insistido na tese da genotipagem. É uma tese equivocada, maldosa. O preconceito é no fenótipo, e não no genótipo. Quanto mais negro o cidadão é, mais chances ele tem de apanhar da polícia."

      Geografia explica mais Brasil mestiço do que biologia

      folha de são paulo especial

      Estudos mais recentes sobre ancestralidade sepultam ideia de separar homens por raças e evidenciam que origem geográfica também ajuda a explicar perfil genético
      REINALDO JOSÉ LOPESEDITOR DE "CIÊNCIA+SAÚDE"A última década de pesquisa sobre a ancestralidade dos brasileiros deixou duas coisas claras: 1) quem vê cara não vê herança genética; 2) nos últimos 500 anos, os homens de ascendência europeia se reproduziram com muito mais eficiência do que africanos e índios.
      Ainda não é possível cravar que alguém descende de portugueses, judeus ou iorubás, por exemplo, mas há hoje boas ferramentas para estimar a origem geográfica na escala dos continentes.
      Uma das mais usadas aparece no infográfico desta página: um conjunto de variações em 40 "indels" (sigla para "inserções e deleções") no DNA do núcleo das células.
      Há frequências específicas dessas variantes para populações da África, da Europa, da Ásia e das Américas, capturando o grosso da ancestralidade de todos os brasileiros.
      O pioneiro desse método no país é Sergio Danilo Pena, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), responsável pelos perfis genéticos de jovens desta página.
      CONSTÂNCIA
      Independentemente da cor declarada pelas pessoas testadas e da região do país, o quadro encontrado por Pena e seus colegas tem sido mais ou menos o mesmo: uma contribuição predominante de europeus -entre 60% e 80% do DNA, em média- com doses variáveis de herança da África ou dos índios.
      Isso significa que dois sujeitos, autoclassificados como branco e negro, podem ter essencialmente as mesmas proporções de ancestralidade. O "milagre" é um resultado natural de casamentos em uma população miscigenada.
      Essa uniformidade não esconde outra história, mais sombria. Quando se olha o DNA do cromossomo Y -a marca genética da masculinidade, passada só de pai para filho homem-, salta aos olhos o fato de que os homens indígenas e africanos parecem ter sido condenados com frequência ao celibato.
      Numa amostra de negros de São Paulo, por exemplo, mais da metade tinha versões do cromossomo Y de origem europeia. Entre brancos de todas as regiões do Brasil, havia apenas 2% de cromossomos Y de origem africana e nenhum de origem indígena.
      A explicação mais simples para esses dados é que, pelo uso da violência ou pelo status mais elevado, os europeus monopolizaram o acesso a parceiras africanas ou índias.
      Que impacto esse tipo de pesquisa deveria ter sobre a política de cotas? "A ciência é capaz de estabelecer fatos, ou seja, 'o que é', mas a partir daí ela não pode dizer 'o que deve ser' ", afirma Pena.
      Por outro lado, para o pesquisador, as últimas décadas de estudo contribuíram para sepultar a ideia de que existem raças humanas.
      É que, embora seja possível agrupar as pessoas por origem geográfica ao olhar muitas regiões do DNA ao mesmo tempo, a variação genética segue padrões graduais de uma região para outra.
      Povos "brancos" e "negros" que sejam vizinhos, como os muçulmanos do norte da África e os sudaneses logo ao sul deles, por exemplo, compartilham muitos genes.
      Para muitos cientistas, isso mostra que não dá para falar em raças rigidamente separadas -e, para Pena, que é melhor usar o critério social, e não o racial, nas cotas.
      Maria Cátira Bortolini, geneticista da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), diz que é natural ser arrastada para esse debate. "Mas o tema é pautado por decisões e opiniões políticas, que às vezes acabam criando um ambiente hostil ao debate e às opiniões contrárias."

        Natal em famílias - MARTHA MEDEIROS

        Zero Hora - 23/12/2012

        O Zé tem 61 anos e casou recentemente pela terceira vez. Possui duas exmulheres, e um filho com cada. Já tem inclusive uma netinha de dois anos por quem é alucinado. Além disso, o Zé tem mãe viva. E um pai também, que se divorciou da mãe dele há muitos anos e casou de novo. E o Zé tem dois irmãos.

        O Zé é afetivo e curte a família, que é grande. Inclui as ex-mulheres, os novos maridos delas, os filhos, as noras, a neta, a mãe, os irmãos, as cunhadas, os sobrinhos, o pai, a esposa do pai. Cada um no seu endereço. Então vai chegando o Natal e o Zé fica tenso, sem saber como dar conta de abraçar todo mundo.

        A nova mulher do Zé tem família também: mãe, irmãos, primos, aquela coisa toda. Ela quer passar o Natal com eles, e quer que o Zé fique em casa. A mãe do Zé não abre mão de juntar os três filhos. O Zé não vai fazer essa desfeita, vai?O pai do Zé é pací-fico, mas a mulher dele se sente rejeitada por qualquer ausência, e se o Zé não aparecer, será responsabilizado por mais um chilique da madrasta.

        A primeira ex-mulher monopoliza a netinha. O Zé não pode ficar sem ver aquela menina adorável, a única crian-ça da família, e Natal sem criança, você sabe. O Zé sabe. A segunda ex-mulher passa o Natal com o outro filho do Zé e mais todo o grupo de amigos que eles tinham quando casados e de quem o Zé sente falta, já que os amigos ficaram na partilha dela.

        Então esse é o Zé em trânsito no dia 24 de dezembro. Ele passa primeiro na casa da mãe. Chega tão cedo que não encontra um dos irmãos. Fica o Zé, a mãe e o outro irmão tomando uma cerveja e beliscando umas amêndoas meio velhas.

        Aí o Zé se despede e vai ver a netinha. Não resiste quando pedem para ele se vestir de Papai Noel. Faz a encenação, morre de calor com a barba postiça, toma uma cerveja gelada, afana uma fatia do peru e corre pra sua própria casa, onde sua mulher está furiosa, isso são horas de chegar?

        Ele faz uma social com a família dela, aí bebe vinho e participa da ceia já meio enjoado, não deveria ter misturado cerveja e vinho. Pede licença, tem que sair para dar um beijo no outro filho. “Vá num pé e volte no outro”, ela ordena.

        No meio do caminho, dá uma paradinha na casa do pai, marca presença com a madrasta, ouve três músicas natalinas, toma mais uma cerveja e segue seu périplo. Então chega na festa da segunda ex, que está bombando. Assim que atravessa a porta alguém coloca uma taça de espumante em suas mãos.

        Localiza o filho, dá um abraço nele, depois outro abraço no amigo Tomás, um abração no Ricardo que não vê faz tempo, e também no Goes, que está enlaçado numa loira que ele nunca viu. Quem é? Separei, Zé, essa é minha namorada. Zé dá dois tapinhas nas costas do Goes a título de condolências.

        Volta pra casa, a mulher que estava dormindo no sofá acorda e exige que ele leve a família dela em casa. Eles ainda estão aqui? Estão, Zé. Dormindo no nosso quarto. O Zé chega a cogitar um novo divórcio, mas o que lhe resta de sobriedade avisa: melhor não. Aí virá outra mulher, outros parentes, como encaixar?

        E suspira lembrando de quando era criança, quando reuniam-se todos embaixo da mesma chaminé. 

        Inédito: o primeiro conto de Hans Christian Andersen: A vela de sebo

        FOLHA DE SÃO PAULO

        IMAGINAÇÃO
        A vela de sebo
        Inédito: o primeiro conto de Andersen
        HANS CHRISTIAN ANDERSEN TRADUÇÃO HELOISA JAHNPara a senhora Bunkeflod com a dedicação de seu H. C. Andersen
        Aquilo chiava e fervia enquanto o fogo dançava debaixo do caldeirão; era o berço da vela de sebo - e do interior do berço cálido surgiu a vela perfeita, elegante, brilhando branca e esguia. A julgar por seu aspecto, todos os que a contemplavam se convenciam de que ali estava a promessa de um futuro feliz e radioso - uma promessa que, como todos viam muito bem, ela não deixaria de cumprir.
        A ovelha - uma linda ovelhinha- era a mãe da vela, enquanto o caldeirão onde se derretia o sebo era seu pai. Da mãe ela herdara o admirável corpo branco e uma certa noção da vida; mas do pai recebera o desejo de ter uma chama ardente, capaz de penetrar medula e ossos - e de "brilhar" vida afora.
        Sim, essa era sua feição, assim ela se formara: entregara-se à vida impregnada das melhores e mais luminosas esperanças. E nela encontrara um número incrivelmente vasto de outras estranhas criaturas às quais se misturara, desejosa de aprender a conhecer a vida e, quem sabe, dessa maneira encontrar o lugar que melhor lhe correspondia.
        Contudo, acreditava demais no mundo; e o mundo só se interessa por si mesmo, não quer saber de velas de sebo... Porque, incapaz de entender qual era a finalidade da vela, o mundo tratou de usá-la em proveito próprio e manuseou-a de forma errada, sem cuidado; seus dedos sujos foram manchando cada vez mais a cor imaculada da inocência, que acabou desaparecendo por completo, coberta pela imundície do mundo inteiro, com o qual a vela mantivera um contato próximo demais, ela que nunca soubera a diferença entre o sujo e o limpo... mas que mesmo assim, por dentro, continuava inocente e pura.
        Os falsos amigos perceberam que eram incapazes de atingir o que havia por dentro da vela e, furiosos, descartaram-na como uma coisa inútil.
        Mas a superfície externa, negra de sujeira, não deixou que os bons entrassem - os bons ficaram com medo de se contaminar com aquele pretume, não quiseram ficar manchados - e por isso guardaram distância.
        E a pobre vela de sebo ficou sozinha e abandonada, sem saber o que fazer. Sentia-se desprezada pelos bons; agora entendia que não passara de um instrumento para que os maus fossem mais fundo em sua maldade; sentiu-se, com isso, tremendamente infeliz, vendo que não dedicara a vida a nada de útil, talvez até tivesse conspurcado o que havia de melhor ao seu redor - era incapaz de compreender para que ou para onde afinal se dirigia, ou por que razão vivia neste mundo - e estragado a si mesma e aos outros.
        Cada vez mais e com maior profundidade ela refletia, mas quanto mais pensava, maior era seu abatimento, pois era incapaz de encontrar alguma coisa boa, algum sentido autêntico para sua existência - ou de divisar a meta que lhe fora destinada ao nascer. - Era como se aquela camada negra também tivesse coberto seus olhos.
        Foi então que ela encontrou uma chamazinha, um pavio; ele conhecia a vela de sebo melhor do que ela própria; aquele pavio percebia as coisas com enorme clareza - inclusive através da camada externa - e, lá dentro, encontrou uma grande bondade; sendo assim, aproximou-se dela; luminosas esperanças despertaram na vela; que se acendeu - e o coração, dentro dela, derreteu-se.
        A chama explodiu, como uma tocha de júbilo num matrimônio abençoado, e tudo ao redor se iluminou e ficou claro; desvendando os caminhos para os que a levavam, seus amigos de verdade - que agora também buscavam a verdade guiados pelo clarão da vela.
        Contudo, o vigor do corpo também era suficiente para nutrir e carregar a chama ardente. - Gotas e mais gotas, como sementes de uma nova vida, escorreram ao longo da vela e recobriram com sua substância - a sujeira passada.
        Elas não eram apenas a matéria daquele matrimônio mas também seu enlace espiritual.
        Agora a vela de sebo encontrara o lugar que lhe cabia na vida - mostrando que era uma vela de verdade, que brilhou durante muito tempo para sua própria alegria e a das outras criaturas...
        -
        SOBRE O TEXTO O historiador dinamarquês Esben Brage, 72, fazia uma pesquisa no arquivo público de Funen, em Odense, quando, no fundo de uma caixa, um documento amarelado atraiu sua atenção. Após dois meses de estudo, na semana passada, especialistas na obra de Hans Christian Andersen (1805-75) anunciaram que se tratava do primeiro conto escrito pelo autor. O manuscrito encontrado -e cedido pelo Arquivo Nacional da Dinamarca para esta tradução, feita diretamente do idioma original- não saiu, porém, da pena do escritor. Trata-se de uma cópia feita por um parente da viúva Bunkeflod -figura fundamental na formação de Andersen, que a ela dedica o texto- e entregue à família Plum, cuja genealogia Brage estudava ao fazer o achado. Leia mais em folha.com.br/ilustrissima.

          Affonso Romano de Sant'Anna - Violência como produto


          Estado de Minas: 23/12/2012 
           “This country is sick” – disse-me a colega do Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Mal tinha chegado lá em 1965 para lecionar. Meu escritório na universidade dava para as pacíficas e milionárias colinas de Bervely Hills; mais adiante, Hollywood e todas as nossas fantasias adolescentes. E minha colega ali dizendo: “Este país está doente”.

          Levei um susto. A frase dela não batia com o que eu via. Estava encantado com tudo. No câmpus americano havia uma liberdade política e erótica de deixar o jovem professor mineiro encantado e confuso. E as butiques de Westwood reproduziam a colorida cultura hippie de São Francisco.

          Mas a colega dizia: “This country is sick”. O verbo, em inglês, é ambíguo: é ou está doente?

          Meses antes de chegar a Los Angeles, havia ocorrrido um riot na região de Watts: moradores negros tocaram fogo no bairro e o caos se alastrou a outras regiões. Era o início de uma série de revoltas que incendiariam o país nos anos seguintes. Os negros, os índios, as mulheres e os homossexuais lutavam por seus direitos. Era a parte contestatória da América. Mas os EUA se atolavam no Vietnã e eu tinha que ensinar aos alunos como colocar os pronomes em português, enquanto os soldados americanos iam colocando bombas em Suoi Ca Valley, Ben Hoa e Tan Son.

          Eu morava diante de um cemitério de soldados mortos nas guerras em que os EUA se meteram imperialisticamente ao longo de sua história. Volta e meia um aluno meu era convocado para o Vietnã. Salvei alguns deles, porque só mandavam para a guerra os que tinham nota menor que 7. Era o tempo da guerra fria e os morros ao redor estavam pontuados de radares. No câmpus, na última sexta-feira do mês, havia sempre treinamento, as sirenes tocavam e as pessoas procuravam um abrigo antiatômico. Para mim, aquilo era filme de ficção. Hollywood era ali perto. Eu, às vezes, ia lá. A Disneylândia estava logo ali adiante.

          Quando, 12 anos mais tarde, fui para a Universidade do Texas, em Austin, uma das trágicas referências no câmpus era a torre de onde um atirador havia matado 14 pessoas e ferido 31. O massacre havia ocorrido em 1966, quando eu pacificamente dava aulas na Ucla.

          O rapaz lá de cima da torre em Austin era um fuzileiro que matou a facadas e tiros a mãe, na residência de ambos. Tem qualquer coisa parecida com o que ocorreu agora em Newtown, pois o recente assassino começou por matar a mãe. No caso de Austin, o fuzileiro pegou um rifle 700-6mm, foi para aquela torre e atirou durante 96 minutos até ser morto pela polícia.

          Fecharam o acesso à torre, porque, em 1968 e 1975, algumas pessoas, morbidamente, se suicidaram jogando-se lá de cima.

          Por que me lembrei agora daquela frase da colega da Ucla – “this country is sick”?

          Não considerávamos a Noruega um país sadio? Por que, então, aquele rapaz resolveu matar dezenas de pessoas que faziam piquenique numa ilha?
          A Suécia não é, para muitos, um paraíso? Por que alguém matou o primeiro-ministro Olof Palme quando ele saía do cinema?

          Por que mataram vários membros da família Gandhi na Índia?

          Pode alguém alegar que matar presidentes, reis e imperadores é esporte, a que se dedicam alguns, como se fosse caça aos pombos.

          O Brasil não é um país tranquilo? Segundo o imaginário estrangeiro, é o paraíso do samba e do sexo, lugar cheio de palmeiras e inconsequências. Então, por que aquele rapaz matou pessoas naquela escola no subúrbio do Rio? Será que a cultura americana, que tem tantas coisas maravilhosas, está contaminando mortalmente outros países no que ela tem de negativo?

          Há dois elementos presentes em todos esses massacres. Primeiro: as armas; segundo: todos os criminosos eram homens jovens. Tirem disso as conclusões que puderem.

          De repente, olho por acaso a televisão: a mesma TV que comenta horrorizada o massacre de Newtown exibe um filme americano em que um jovem inteligente e esquisito, como são descritos os assassinos dos massacres, gasta todo o dia com jogos de guerra, fechado em seu quarto e suas fantasias. Mal se relaciona com a família e com o mundo. O filme passa por comédia. Mas o horror está ali.

          A doença se espalhou.

          Estamos todos doentes. A violência é um produto. Rende dinheiro. E, é servida de maneira comercial e corriqueira. E, quando nos atinge, ficamos perplexos porque não sabemos mais o que é jogo ou realidade.

          Produção fora do eixo(16ª Mostra de Cinema de Tiradentes)-Carolina Braga‏

          16ª Mostra de Cinema de Tiradentes http://www.mostratiradentes.com.br/    traça novo perfil do cinema brasileiro, cada vez mais colaborativo e com obras realizadas por estados que não apenas Rio e São Paulo 

          Carolina Braga
          Estado de Minas: 23/12/2012 
          Um olhar para o que espande, o que desperta mudança e, principalmente, o que anda espalhado pelo Brasil quando o assunto é a sétima arte. É essa a meta da 16ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, marcada para 18 a 26 de janeiro. Com a temática “Fora de centro”, o evento que inaugura o calendário audiovisual do estado vai discutir a efervescente criação realizada à margem do grande centro de produção do país com um detalhe curioso: o ato de fazer filmes está cada vez mais colaborativo. 

          “Apontamos uma tendência que observamos no cinema brasileiro. Ele está sendo feito pela coletividade, os profissionais estão se unindo. Tanto na forma de financiamento quanto na maneira de fazer. Agora, observamos um número real de como isso se consolidou. A produção descentralizada existe e começa a dar sinais de vida”, afirma Raquel Hallak, coordenadora do evento realizado na charmosa cidade a 180 quilômetros de Belo Horizonte.

          O tema nasceu de uma conta básica. Dos 104 longas-metragens inscritos para a edição de 2013, 44% vêm de fora do eixo Rio-São Paulo. Entre os curtas, a proporção é parecida: dos 459 que competiram por uma vaga na grade, 52% são de outros estados. “É um novo perfil de produção”, identifica Raquel Hallak. O longa da abertura, segundo a coordenadora, representará bem o tema. Será a produção da Paraíba Onde Borges tudo vê, do diretor Taciano Valério. A homenagem em 2012 será dedicada à atriz paranaense Simone Spoladore. 

          DEBATES E FILMES
           A Mostra de Cinema de Tiradenteshttp://www.mostratiradentes.com.br/   tem se consolidado não apenas como plataforma de lançamentos de novos realizadores, mas também como espaço onde se discutem – e muito – os modos de produção do cinema contemporâneo brasileiro. Nesse sentido, em 2012, a temática “Fora de centro” vai permear pelo menos três mesas de debate com participação de cineastas, produtores e críticos.

          Assim como nos anos anteriores, durante nove dias, será oferecida programação gratuita nos cinemas montados na praça, na tenda e também no Centro Cultural Yves Alves, agora com programação permanente na cidade. A expectativa é de que sejam exibidos, ao todo, cerca de 120 filmes. A grade de curtas-metragens terá 97 produções, divididas em oito mostras temáticas. “Observamos um salto fantástico da produção de Minas”, destaca Hallak. Só do estado foram 68 curtas inscritos e 14 longas, dos quais seis devem ser escolhidos para exibição. A grade completa será divulgada na primeira semana de janeiro. 

          Filmografia de simone spoladore

          » 2001 – Lavoura arcaica     
          » 2002 – Desmundo 
          » 2004 – Vestido de noiva     
          » 2005 – Veias e vinhos – uma história brasileira
          » 2005 – O ano em que meus pais saíram de férias 
          » 2007 – Primo Basílio 
          » 2007 – Canção de Baal 
          » 2008 – Natimorto 
          » 2008 – Insolação 
          » 2008 – Duas da manhã 
          » 2009 – Não se pode viver sem amor 
          » 2009  – Luz nas trevas     
          » 2009 – O último romance de Balzac 
          » 2009 – Sudoeste (curta)
          » 2009 – O gerente 
          » 2010 – Nove crônicas para um coração aos berros     
          » 2010 – A musa impassível 
          » 2010 – Elvis & Madona     
          » 2010 – Luz nas trevas – A volta do bandido da luz vermelha     
          » 2012 – Sudoeste 
          » 2012 – A memória que me contam

          A 16ª edição
          97
          curtas

          14
          estados brasileiros

          68
          inscrições de Minas Gerais

          25
          inscrições do Paraná

          23
          inscrições do Ceará 

          21
          inscrições da Bahia 


          Sempre perto da arte 
          Foi no carro, a caminho de casa, voltando de uma gravação, que a atriz Simone Spoladore recebeu a notícia. Ficou sem palavras. Aliás, ainda está. Aos 33 anos, com 21 filmes no currículo, a atriz paranaense será a homenageada da 16ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes. “Não sei o que dizer. Fico muito emocionada e feliz com isso”, comenta. Não há razão para espanto. O reconhecimento chega em um dos momentos mais produtivos da carreira dela. 

          Simone Spoladore está nas telas atualmente em Sudoeste, longa de Eduardo Nunes. Na fila de lançamentos, há ainda duas produções prontas: A memória que me contam, de Lúcia Murat, e Nove crônicas para um coração aos berros, de Gustavo Galvão. E tem mais: “Vou trabalhar de novo com Eduardo Nunes, Helena Ignez e Flávia Castro em 2013”, conta. Isso só no cinema, porque no teatro a maré também está boa. A participação no espetáculo Depois da queda, com direção de Felipe Vidal, acaba de render a ela uma indicação ao Prêmio Shell. 

          Quando recebeu de Raquel Hallak a notícia da homenagem, mais que pensar em futuro, Spoladore entrou no túnel do tempo. Voltou a 2001, quando fez o teste para Lavoura arcaica, antológico longa-metragem de Luiz Fernando Carvalho baseado no livro de Raduan Nassar. Aos 18 anos, recém-chegada a São Paulo procedente de Curitiba, moradora de uma pensão na Rua Augusta, foi na cara de pau se oferecer para viver Ana, a caçula da família. 

          “Estava em uma festa à noite e dois amigos comentaram que fariam o teste. Decidi ir com eles, mesmo sem nada marcado. Era um domingo à tarde, em um teatro brincante. Quando cheguei lá, conversei com a produtora, que ficou de me ligar para marcar”, lembra. No dia seguinte, debaixo de chuva, Simone chegou para tentar sua vez. Ao conversar com a assistente de direção, foi certeira: “Quero fazer a Ana”.

          A filha de bancários, que sempre procurou estar perto da arte, primeiro da dança, depois do teatro, descobrira, enfim, mais um lugar em que se sentiria confortável. O cinema entrou avassalador na vida de Simone Spoladore. Com Lavoura, conquistou o Prêmio Qualidade Total de melhor atriz coadjuvante e, a partir daí, emendou trabalhos na telona, como Desmundo (2003); O ano em que meus pais saíram de férias (2006); Natimorto (2008); Elvis e Madona (2010) e outros. 

          “Esses filmes nascem de encontros. São trabalhos que vão acontecendo pelo tempo que invisto no cinema”, diz. Desde 2001, Simone Spoladore tem feito, em média, três filmes por ano. Em 2009, bateu o próprio recorde. Foram cinco produções, cada uma de um perfil e diretor diferente. “Gosto muito dos filmes que experimentam. Parece que tudo já foi dito e feito, mas, ainda assim, tem projetos que ousam mais na linguagem e tentam buscar caminhos novos. É disso que gosto”, conta.

          Memórias que viram histórias - Arnaldo Branco

          FOLHA DE SÃO PAULO

          ARQUIVO ABERTO
          O balconista
          Rio, 1998
          ARNALDO BRANCOIsso foi depois da internet, mas antes do "torrent": fui balconista de locadora de vídeo. "Que nem o Tarantino!", sim já ouvi essa várias vezes, só me falta a carreira em Hollywood.
          Entrei em 1998, ano da transição do VHS para o DVD, portanto o aviso para rebobinar a fita ainda pairava sobre a minha cabeça em um cartaz na parede, como um mandamento solene.
          Já estava velho para a função ("contingências do mercado de trabalho" era a desculpa que usava com a minha mãe), então gostava de fingir que estava lá pela oportunidade de estudar a plateia dos filmes que faria no futuro.
          Não era uma mentira completa; na verdade poderia prestar consultoria para produtores de cinema sobre o que nossos espectadores querem ver na tela. Ou seja, nada de preto e branco, pouca conversa ("filme desse Woody Allen só tem gente falando") e é bom maneirar no experimentalismo: o mantra do público médio de locadora é "queria um filme leve, hoje não estou a fim de pensar".
          E pornografia, por exemplo. Pessoas de vários estratos sociais pegavam filmes de sacanagem, mas percebi um estranho padrão entre os porteiros da área: só alugavam pornôs brasileiros. Perguntei o porquê e disseram que preferiam as mulheres gemendo em português; aparentemente existe diferença entre o "yes" e o "sim" na hora de fantasiar.
          Mas não usei minhas horas de trabalho só para praticar pesquisa de mercado. Guardei muitas histórias bacanas, embora na maior parte das vezes estivesse cercado por pessoas apressadas e sem muita familiaridade com o conceito de fila. Na época, queria matar o autor da frase "o cliente sempre tem razão". Meu herói era Randal Graves, o personagem de Jeff Anderson em "O Balconista", filme do Kevin Smith de 1994, que tratava mal todos que tivessem o azar de entrar no seu estabelecimento.
          Já tive que ajudar a separar uma briga de socos entre um cliente e um entregador (o entregador tinha razão, viu o que disse sobre a tal frase?), precisei empatar um casal que se trancou no banheiro e fui descontado na minha primeira semana porque um cara se associou com uma identidade falsa e levou oito lançamentos. Ok, essa não foi uma história bacana.
          Alguns sócios da locadora eram umas figuras, como o cardíaco que ligava pedindo sempre pornôs e cigarros malocados no saco de entregas. Volta e meia uma ambulância parava em frente ao seu prédio. Tinha também a mulher chata de uma figura importante da MPB; quando ela finalmente brigou com o dono e pediu para se desassociar, demos uma festa para rasgar sua ficha.
          A locadora ficava no Jardim Botânico, no meio da fina flor da burguesia carioca, o que foi mais uma lição sobre o "ethos" das nossas elites: era uma choradeira para pagar qualquer dívida, mínima que fosse. Uma cineasta (vou manter seu anonimato, ao qual aliás está acostumada) discutiu comigo por coisa de centavos em balas de menta, alegando achar que eram cortesia. Por mim até seriam, não fossem os balconistas também responsáveis pela "bombonière" e pelo fechamento do caixa, nos obrigando ao trabalho de corno de contar chiclete por chiclete e comparar o resultado com o montante na registradora -com desconto no salário quando os valores não batiam.
          Enfim, tempo bom que não volta mais, graças a Deus.
          Queria dedicar esse texto ao saudoso Marcão (que nos deixou em 2011), meu colega de balcão e rubro-negro como eu, e ao cliente vascaíno que torrava tanto o nosso saco que nos fez bater o camelódromo do Saara um dia inteiro até conseguirmos duas camisas do Real Madrid para recebê-lo no dia da derrota na final do mundial de clubes. O cara nunca mais voltou.

            Tereza Cruvinel - Distensão da crise‏

            Ao rejeitar o pedido de prisão preventiva antes do trâmite completo, Joaquim Barbosa criou oportunidade para a distensão da crise instalada entre a Suprema Corte e o Congresso 

            Tereza Cruvinel
            Estado de Minas: 23/12/2012 
            Há quem pense que ele recuou para não ferir suscetibilidades dos outros ministros e reduzir o traço autocrático em sua imagem. Outros acham que o ministro Joaquim Barbosa fez suspense, mas nunca pensou em afastar-se da jurisprudência do STF, que historicamente sempre aguardou o trânsito em julgado das sentenças para determinar as prisões. Seja como for, o fato é que, ao rejeitar, na sexta-feira, o pedido de prisão imediata dos condenados do mensalão apresentado pelo procurador-geral, Roberto Gurgel, o ministro presidente do Supremo criou uma oportunidade para a distensão da crise instalada entre a Corte e o Congresso Nacional. Nesses dois vértices da Praça dos Três Poderes, avalia-se que as coisas chegaram aonde chegaram porque faltou o diálogo mínimo. Faltou ação política. Depois do recesso, haveria um esforço para restaurar as pontes dinamitadas pelo julgamento.

            Um dos maiores ruídos derivou das declarações da Presidência da Câmara, que começaram a ser feitas em agosto, quando o ministro Cezar Peluso se aposentou, deixando fixadas as penas para o deputado João Paulo Cunha, que chegou a julgar. Entre elas, a perda do mandato. No Congresso, houve sucessivas declarações no sentido de que a cassação é prerrogativa da Câmara, conforme previsão constitucional. Nas conversas com os pares congressistas, a presidência da Casa jamais cogitou não abrir processos contra os deputados condenados, em manobra para que fossem presos. Nenhum presidente da Câmara faria tal afronta ao Supremo, enfrentando as consequências legais, afora o coro de desaprovação da opinião pública a uma Casa que anda com a avaliação baixa. Mas, nas declarações públicas, deixou-se de enviar um sinal nesse sentido, para que ficassem tranquilos os ministros do Supremo.

            Dizendo, por exemplo, que, recebida a notificação de condenação transitada em julgado, as providências seriam tomadas. Faltou ainda, diz um conselheiro do PT, delegar a um embaixador no Supremo a tarefa de mostrar a Barbosa e seus pares que a Câmara não pretendia mexer no que chamam coisa julgada, as condenações, mas tão somente defender o rito que lhe pertence, constitucionalmente. Já cumpriram esse papel de embaixadores, em outros momentos, o ex-ministro Nelson Jobim e o ex-deputado Sigmaringa Seixas.

            Ruído que poderia ter sido evitado ocorreu também com o segundo elemento da crise, a liminar do ministro Luiz Fux contra a apreciação do veto à Lei dos Royalties do petróleo, passando-o à frente de uma longa fila, uma vez aprovado por larga maioria o pedido de urgência. Em outros tempos, outros ministros, quando iam tomar medidas envolvendo outros poderes, procuravam avaliar, diretamente ou com a ajuda de mediadores, o impacto funcional ou administrativo que teriam.

            Não faz muito tempo, o STF recuou da decisão de tornar ilegais todas as leis derivadas de MPs que não tramitaram corretamente. Fez isso depois de saber, pelo Planalto, que haveria um caos administrativo completo. Se informado da agenda do Congresso, Fux não teria dito, na liminar, que outras deliberações estavam “sobrestadas”. E, entre elas, estava o Orçamento de 2013. Quando o ministro respondeu com uma declaração ao pedido de reconsideração do presidente do Congresso, José Sarney, liberando a votação do Orçamento, já era tarde. Já ocorrera a revoada. Sarney e o líder do governo, Eduardo Braga, sensatamente desistiram da aprovação da lei orçamentária pela Comissão Representativa do Congresso no recesso. Assim como seria discutível uma decisão monocrática de Barbosa sobre as prisões, como ministro de plantão no recesso do STF, a aprovação de peça legal tão importante por tal comissão acabaria sendo questionada. E, do jeito que as coisas da política andam judicializadas, terminariam no Supremo.

            Passados o Natal, o ano-novo e as férias de verão dos parlamentares e dos ministros da Corte, haverá um novo ator no STF, o ministro Teori Zavascki, que não chegou a atuar no julgamento do mensalão. Um outro ministro será indicado logo pela presidente Dilma Rousseff. O Senado e a Câmara terão novos presidentes. O PMDB, que espera conquistar o comando das duas Casas com o apoio do PT, já reflete sobre a superação desses problemas recentes, aproveitando a mudança de atores e a fresta que se abriu com a decisão de Barbosa. O vice-presidente Michel Temer, jurista por formação e conciliador por natureza, terá um papel nisso.

            Revoadas

            O recesso será de caça ao voto pelos candidatos a presidente da Câmara. O peemedebista Henrique Eduardo Alves, por ora favorito, pretende visitar de seis a sete estados por semana em janeiro. Júlio Delgado reforçou seu plano de voo depois que ganhou o apoio oficial de seu partido, o PSB. Largaram por último a deputada Rose de Freitas, abrindo dissidências no PMDB, e Ronaldo Fonseca (PR-DF), este, literalmente, um nome avulso.

            Ano de fazer

            O primeiro biênio de mandato do governador do Distrito Federal, Agnelo Queiroz, não foi dos mais fáceis. Herdou problemas da gestão anterior, precisou ajustar a própria equipe e teve que se livrar das denúncias de infiltração do esquema Delta/Cachoeira em seu governo. Acha que a poeira ficou para trás. No balanço de governo, em estilo dilmista, Agnelo prometeu vida dura à equipe em 2013: “A ordem será entregar e entregar resultados à população. Não vou contemporizar com ninguém”.

            Marcos Coimbra - 2012 na política: a antecipação da sucessão‏

            Os partidos oposicionistas e seus aliados se viram forçados a disputar, em 2012, o primeiro round da eleição de 2014 

            Marcos Coimbra
            Estado de Minas: 23/12/2012 
            Um dos traços mais significativos da vida política brasileira em 2012 foi a intensidade do efeito que nela exerceu a próxima eleição presidencial. Quase tudo de importante que aconteceu a teve como referência. Dilma nem chegou à metade do mandato, seu governo ainda tem um longo caminho pela frente e, para o cidadão comum, a sucessão está longínqua. Mas o sistema político passou o ano obcecado por ela. Especialmente as oposições.

            Os partidos oposicionistas e seus aliados se viram forçados a disputar, em 2012, o primeiro round da eleição de 2014. Percebendo, com base em avaliações internas e pesquisas disponíveis desde o início do ano, que o vento soprava contra seus projetos, resolveram começar a trabalhar na sucessão presidencial desde cedo.

            A principal estratégia foi desconstruir a imagem do PT por meio do julgamento do mensalão, dando-lhe toda a exposição possível. E o sincronizaram com as eleições municipais, de forma a que os eleitores chegassem às urnas maximamente atingidos por ele.

            Só os muito ingênuos viram como coincidência que José Dirceu fosse condenado faltando uma semana para o pleito. Naquele momento, bem como na eleição inteira, o que fizeram foi criar um clima de opinião para interferir na escolha do eleitorado.

            Queriam matar dois coelhos com uma só cajadada: enfraquecer os candidatos do governo a prefeito e vereador; desgastar o partido para a eleição a seguir. A oposição sairia fortalecida e com a sustentação municipal recomposta, com melhores condições de ampliar a bancada na Câmara dos Deputados e fazer bom papel na eleição presidencial.

            Os resultados da eleição municipal e as pesquisas deste fim de ano a respeito das intenções de voto em 2014 mostram que isso não funcionou. Pelo menos, por enquanto. A pesquisa mais recente foi feita pelo Datafolha, em 13 de dezembro, ouvidas 2.588 pessoas em todo o país. Em que pese o esforço dos comentaristas de encontrar problemas para Dilma e Lula, foi muito favorável a ambos. A começar por sua folgada liderança em todos os cenários.

            Dilma varia de 57%, quando é confrontada com Marina Silva (que tem 18%) e Aécio Neves (com 14%), a 53%, quando entra na lista Joaquim Barbosa (que alcança 9%). Na hipótese de Eduardo Campos ser o quarto nome, em vez de Barbosa, ela fica com 54% e o pernambucano com 4%. Lula está na frente, com 56%, no único em que aparece, no qual estão Marina Silva (13%), Joaquim Barbosa (10%) e Aécio Neves (9%). É aquele em que Dilma obteve 53%.

            São resultados semelhantes a outros disponíveis. Em abril, em pesquisa da Vox Populi, Dilma alcançava 57%, Marina 16% e Aécio 12%, quase exatamente os números do Datafolha. Em julho, segundo a CNT, ela obtinha 59% e Aécio 15%, em uma lista sem Marina e com Eduardo Campos (que ficava com 6%).

            Em relação a esses levantamentos, Lula cai, passando de 69% (Vox Populi) ou 70% (CNT) aos 56% atuais do Datafolha. Não são listas comparáveis, mas parece ter havido, de fato, uma queda na intenção de voto no ex-presidente. O relevante na pesquisa de agora é a manutenção da larga vantagem dos candidatos petistas. Traduzindo os resultados no chamado “voto válido”, ambos ficam sempre acima dos 60% e chegam a 64%. O que quer dizer que estão perto de ter, sozinhos, o dobro da soma dos outros. Bom para os dois. E mau para os demais.

            Menos ruim para Marina Silva, que permanece em patamar respeitável, entre 15% e 20%, superior a candidatos com mais bagagem política, como Aécio e Eduardo Campos. É possível que o Datafolha tenha querido respeitar a precária saúde eleitoral de Serra, não o incluindo nas listas. Mas o que fez foi manter viva a crença de que só o paulista tem condições de brigar com o PT. Chegamos, assim, ao fim de 2012 com perspectivas inalteradas para a eleição de daqui a dois anos. A crer nas pesquisas, o enorme estardalhaço feito para afetá-la foi inútil. Como está no título de uma comédia de William Shakespeare, pensando na eleição, foi “Muito barulho por nada”.

            O mapa da cultura

            FOLHA DE SÃO PAULO

            DIÁRIO DE PEQUIM
            Não existe arte na China
            Porco agridoce ou exercício narcisista?
            FABIANO MAISONNAVE
            SEMPRE Provocador, Ai Weiwei comprou briga com mais de um colega ao afirmar que "o mundo artístico chinês não existe" e que "é impossível para uma sociedade totalitária criar qualquer coisa com paixão e imaginação".
            Seu texto, publicado no mês passado no jornal britânico "The Guardian", foi uma reação à exposição "Arte da Mudança: Novas Direções da China", que recém saiu de cartaz na galeria Hayward, em Londres. O artista comparou a exposição a "pratos tradicionais chineses, como porco agridoce". "As pessoas comerão e dirão que é chinês, mas é simplesmente uma oferta consumista, oferecendo pouco de uma genuína experiência de vida da China de hoje."
            Muitos viram na crítica um exercício de narcisismo. O britânico Paul Gladston, especialista em arte chinesa, escreveu na publicação "Randian" que o histórico de confrontos de Ai Weiwei com o Estado, incluindo quase três meses na cadeia, embora admirável, não é a única forma de agir contra o regime autoritário.
            Gladston afirma que há exemplos na mostra em Londres de "respostas codificadas aos absurdos trágicos" da sociedade chinesa. Ele menciona o artista Liang Shaoji, cujo uso de bichos-da-seda vivos produzindo fios sobre esculturas de aparência enferrujada seria um contraponto "às noções do Partido Comunista de progresso científico-racional".
            Brasil na tela chinesa
            "O Palhaço", de Selton Mello, foi escolhido o melhor filme do 3º Festival de Cinema Brasileiro em Pequim, realizado no mês passado pela Brapeq (Brasileiros em Pequim), organização da comunidade local dos expatriados.
            "[Os palhaços] são como um cacto do Brasil, sempre crescendo em direção à luz", justificou a atriz Feng Bo, um dos cinco membros do júri, todos chineses.
            No voto do público, o filme mais bem recebido foi "Xingu", de Cao Hamburger. O festival teve oito sessões, com um público total de pouco mais de mil pessoas. Foram exibidos ainda "Amanhã Nunca Mais", "Heleno, o Príncipe Maldito", "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", "Trabalhar Cansa" e "Capitães da Areia".
            Por outro lado, a censura barrou "O Abismo Prateado", de Karim Aïnouz, "Como Era Gostoso o Meu Francês", de Nelson Pereira dos Santos, e "Uma Longa Viagem", de Lúcia Murat.
            V de Vingança, prato frio
            Há sete anos, ninguém se surpreendeu quando "V de Vingança", sobre um anarquista que usa bombas contra um governo totalitário, foi barrado das telas chinesas.
            Por isso, mais de um queixo foi ao chão no dia 14, quando o filme foi transmitido, sem cortes, pela estatal CCTV, cujos métodos costumam ser parecidos aos da emissora orwelliana retratada no longa.
            A exibição foi um dos temas mais comentados naquele dia nas redes sociais chinesas, segundo levantamento do "China Digital Times". Apesar de proibido nos cinemas, o longa é bastante conhecido graças às cópias piratas, tanto nas ruas quanto na internet.
            Despedida
            Este é o meu último Diário de Pequim. Após quase três anos, deixo a capital chinesa de volta ao Brasil. Peço desculpas pelo tema recorrente da censura, mas, concordando em parte com Ai Weiwei, é impossível ignorar o regime quando se trata de avaliar a produção artística.
            Minha grande decepção foi com o cinema. As produções mais recentes são bem menos ousadas do que as de duas décadas atrás, quando o mundo se surpreendia com "Adeus, Minha Concubina" (1993), de Chen Kaige, e vários outros. Zhang
            Yimou, diretor de "Tempo de Viver" (1994), censurado na China, hoje é mais conhecido pela abertura da Olimpíada de 2008 e pelo recente "Flores da Guerra" (2011), rasteira propaganda antijaponesa.
            Por outro lado, a ficção literária parece abrir caminhos mais interessantes. O vencedor do Prêmio Nobel deste ano, Mo Yan, Yu Hua e Yan Lianke conseguem descrever com brilho a loucura da violenta história recente chinesa, banida dos livros escolares e dos museus.
            É do atrito entre o monopólio do poder do Partido Comunista e a crescente circulação de ideias que a produção artística seguirá se alimentando. Desnecessário que todos sejam irreverentes como Ai Weiwei. Mas seria triste a maioria capitular como Zhang Yimou.

            CIÊNCIA » Geografia animal - Bruna Sensêve‏

            Mapa do século 19 feito pelo biólogo Alfred Wallace, com distribuição de vertebrados pelo planeta, é atualizado. Austrália tem o maior número de espécies exclusivas 

            Bruna Sensêve
            Estado de Minas: 23/12/2012 
            Brasília – Após mais de 20 anos de estudos, um grupo de 15 pesquisadores internacionais liderado pela Universidade de Copenhague, na Dinamarca, finalizou a atualização do mapa da vida animal, elaborado pela primeira vez em 1876, pelo cientista britânico Alfred Russel Wallace. Desde então, algumas pequenas revisões foram feitas no material, que registra a distribuição das espécies de vertebrados pelo globo. Agora, as informações puderam ser aprimoradas com o uso de técnicas genéticas e estatísticas, inimagináveis para Wallace.

            Os cientistas reuniram dados sobre a localização e as relações evolutivas de 21.037 espécies de vertebrados, como mamíferos, anfíbios e aves, para caracterizar seus padrões biogeográficos naturais. O que o documento mostra é que as diferentes áreas do mundo costumam abrigar tipos específicos de espécies, que tornam cada região diferente da outra nesse aspecto. Foram identificadas ao todo 20 regiões, que abrigam 11 grandes reinos (veja acima). O novo mapa, apresentado na edição de sexta-feira da revista Science, também busca descrever o relacionamento histórico e evolutivo entre essas macrorregiões.

            “Nosso estudo é uma longa atualização de um dos mapas mais fundamentais em ciências naturais. Pela primeira vez, desde a tentativa de Wallace, estamos finalmente em condições de fornecer uma descrição ampla do mundo natural com base em informações incrivelmente detalhadas para milhares de espécies de vertebrados”, diz Ben Holt, coautor do trabalho.

            Outra preocupação do grupo foi criar um coeficiente, de 0 a 1, que mostra o quanto um reino é único em relação aos demais. Ou seja, quanto mais próximo de 1, maior o número de espécies que só existem naquela parte. Nesse quesito, chamado diversidade beta, os reinos Australiano e Madagascar lideram, com índices 0,68 e 0,63, respectivamente.

            Segundo a professora doutora em geografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Angela Beltrame, o resultado mostra como a Austrália tem, hoje, fauna muito distinta do restante do mundo, bastante exótica e com espécies encontradas somente naquela parte do mundo. “Não é muito difícil entender por que isso ocorre, pois a Austrália e Madagascar são duas ilhas que ficaram isoladas e se mantêm isoladas geneticamente. Essa situação faz com que novas espécies surjam”, explica. O reino Neotropical, que inclui as espécies que vivem no Brasil e no restante da América do Sul, aparece em seguida nesse ranking de diversidade beta, com coeficiente 0,61.

            Para a coordenadora de Apoio à Pesquisa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Kátia Ribeiro, o estudo reforça exatamente o entendimento de que o Brasil abriga uma imensa diversidade beta. “Grande conjunto de espécies é exclusivo desta região. A proteção de nossas espécies é fundamental para conservação da biodiversidade global e exige uma boa distribuição espacial das áreas protegidas, abrigando os mais diferentes ecossistemas, regiões e suas conexões”, diz. 

            Kátia acrescenta que, embora o conhecimento existente da biodiversidade no território nacional ainda seja muito pequeno, todas as informações que chegam reforçam esse padrão de elevada diversidade beta. A opinião é compartilhada pela secretária-geral do WWF Brasil, Maria Cecília Wey de Brito, que ainda ressalta a importância de mapas biogeográficos detalhados para identificar a distribuição de espécies ameaçadas. Com dados cada vez mais atualizados, será possível otimizar a gestão ambiental e a ação da sociedade, de instituições e de organizações.

            Longe do isolamento geográfico que Madagascar e Austrália vivenciam, a América Latina tem a seu favor a estabilidade climática e o difícil tráfego de espécies terrestres para outros continentes. “Temos uma certa estabilidade climática, já que a região está em um pedaço do planeta em que o resfriamento e o aquecimento globais tiveram menos impacto que outras. Uma complicada ligação terrestre com a América do Norte fez com que a fauna e a flora tivessem características únicas e uma diversidade muito grande”, detalha Maria Cecília.