sábado, 24 de novembro de 2012

Cursos online serão o fim da universidade tradicional?


CAROLE CADWALLADR

DO "OBSERVER"


Livros, música, compras, jornalismo - tudo isso revolucionado pela internet. A seguir na fila? A educação. Agora, acadêmicos dos Estados Unidos estão oferecendo educação de primeira linha - gratuitamente - a qualquer pessoa dotada de conexão com a Internet, em todo o mundo. Será o fim da vida no campus?
Dois anos atrás, eu estava sentada no assento traseiro de um Toyota Prius no topo de um edifício garagem na Califórnia, agarrada ao braço da porta enquanto o carro disparava da sua vaga em direção ao abismo, desviando no último segundo em uma curva fechada, sem redução de velocidade. No assento do motorista, ninguém.
SXC
Computador mouse
O futuro é pagar muito pela educação de qualidade ou obtê-la gratuitamente via internet?
Era o protótipo do carro sem motorista do Google, e a sensação tinha algo de Buck Rogers - alguém catapultado ao futuro. Depois, ouvi Sebastian Thrun, professor de inteligência artificial na Universidade Stanford, explicar de que forma construíra o carro, e contar que o veículo já havia rodado 320 mil quilômetros na Califórnia, e sobre sua crença em que o projeto significaria uma vida sem acidentes automobilísticos no futuro.
Passados alguns meses, um artigo no "New York Times" revelou que Thrun era o responsável pelo Google X, o sigiloso laboratório experimental do Google, e que além do automóvel sem motorista estava desenvolvendo também o Google Glasses, um óculos de realidade aumentada. Mais alguns meses se passaram antes que eu voltasse a encontrar Thrun.
O carro sem motorista, os Google Glasses, o Google X, seu prestigioso posto acadêmico - tudo isso ficara no passado. Thrun havia renunciado ao seu posto de professor titular em Stanford e estava trabalhando apenas um dia por semana no Google. E tinha um novo projeto. Ainda que não o definisse como projeto. "Na verdade, é minha missão, agora", disse ele. "Este é o futuro. Estou convicto disso".
O futuro em que Thrun acredita, que o entusiasma mais que carros sem motorista ou invenções dignas da ficção científica, está na educação. Mais especificamente, na educação online de massa, gratuita e disponível para todos. Os setores de música, livros, transporte e varejo passaram, todos, pela grande mudança causada pela tecnologia. Agora, diz Thrun, é a vez da educação.
"Tudo vai mudar. Não há dúvida a respeito". Thrun acredita especificamente que o ensino superior vai mudar. Ele lançou a Udacity, uma universidade online, e quer oferecer ensino superior em massa e de alta qualidade a todo o mundo. Para os estudantes de países em desenvolvimento que não têm outro recurso ou para os estudantes dos países de Primeiro Mundo que talvez tenham a oportunidade mas preferem optar por não aproveitá-la ao modo convencional. Pagar milhares de libras ao ano por uma educação? Ou obtê-la gratuitamente via internet?
Uma universidade envolve muito mais que ensino, é claro. Há o aspecto social, ou, como costumamos chamar o processo aqui no Reino Unido, a bebedeira constante. Há o viver longe de casa e aprender a pelo menos ferver água. E há aspectos importantes como sexo e apanhar doenças venéreas. Mas é dessa maneira que as inovações costumam funcionar: primeiro elas causam perturbações e mais tarde resolvem os problemas causados, em algum momento do futuro.
A grande revelação de Thrun surgiu para ele um ano atrás, na mesma conferência TED onde apresentara ao mundo o carro sem motorista. "Ouvi uma palestra de Salman Khan sobre a Khan Academy e fiquei estupefato", conta. "E continuo". Salman Khan, 36, um discreto ex-analista de investimentos, é o fundador daquilo que já foi definido como uma revolução nas salas de aula e vem sendo celebrado por todo mundo, a começar de Bill Gates (que o definiu como "o professor favorito de todo o planeta").
A Khan Academy, que Khan criou quase por acaso, enquanto ajudava a sobrinha e sobrinho nos estudos, agora conta com 3,4 mil vídeos curtos ou tutoriais, a maioria dos quais produzidos por Khan pessoalmente, e com 10 milhões de estudantes. "Fiquei pasmo com a realização", conta Thrun. "E na realidade embaraçado por estar lecionando para 200 alunos enquanto ele atingia milhões".
Thrun decidiu abrir seu curso de inteligência artificial em Stanford, conhecido como CS221, a todos os interessados. Ele anunciou que todos seriam aceitos. Os alunos externos teriam de fazer os mesmos trabalhos que os matriculados em Stanford, e no final do período passariam pelo mesmo exame.
O curso CS221 é uma matéria complicada e que exige esforço. No campus, ele atraiu 200 alunos, e Thrun imaginava que conseguisse conquistar alguns milhares de outros pela web. Mas quando as aulas começaram, o número de inscritos era de 160 mil. "Fiquei completamente estarrecido", diz o professor. Havia estudantes de todos os países do mundo - exceto a Coreia do Norte. E 23 mil dos participantes conseguiram aprovação. Além disso, as 400 melhores notas couberam a estudantes que participaram do curso online.
Thrun conta que foi um momento "país das maravilhas". Tendo lecionado para 160 mil alunos, ele não tinha como voltar a uma classe de 200. "Eu senti que tinha de escolher entre a pílula vermelha e a pílula azul", disse o professor em palestra meses mais tarde. "Escolhi a pílula vermelha. Eu havia visitado o país das maravilhas. E é realmente possível mudar o mundo pela educação".
Quando eu me matriculei no curso de ciência da computação para principiantes na Udacity, cujo tema é como criar um programa de buscas, 200 mil alunos já haviam sido aprovados nele. Ainda que por "aprovados" eu queira dizer que receberam um certificado de aprovação via e-mail. Há algo de irreal em todo o processo, ainda que alguns empregadores pareçam estar aceitando os certificados como válidos: diversas companhias, entre as quais o Google, estão patrocinando cursos da Udacity e regularmente selecionam os melhores dos alunos para contratação.
No entanto, no meu caso o telefonema com uma oferta de emprego pode demorar um pouco. Fiquei espantada com a facilidade que senti para acompanhar os vídeos da Udacity (e receber dicas sobre como criar um programa de buscas de Sergey Brin, co-fundador do Google, certamente ajuda no processo). Os vídeos, como os da Khan Academy, evitam mostrar a figura do professor por inteiro, e se concentram em suas mãos ao escrever.
De acordo com Brin, qualquer pessoa que tenha competência básica em programação - o que todos os alunos terão se completarmos o curso - e alguma criatividade "pode desenvolver uma ideia capaz de mudar o mundo". Mas é exatamente esse tipo de coisa que o Vale do Silício costuma dizer.
O mais intrigante é como traduzir esse processo para o contexto britânico. Porque, é claro, no que tange a revolucionar o acesso à educação, o Reino Unido liderou o mundo. Temos o luxo de um ensino superior aberto a todos há tanto tempo - já há mais de 40 anos - que nem ligamos muito para isso. Quando a Open University foi criada, em 1969, era uma ideia tanto radical quanto democrática, surgida devido a avanços na tecnologia. Possibilitada pela televisão, a universidade está na vanguarda da inovação educativa desde que surgiu. E oferece conteúdo gratuito, nos programas OpenLearn e iTunesU. Mas deixou de ser radicalmente democrática, em seu cerne. A partir deste ano, suas anuidades serão de cinco mil libras anuais.
Nos Estados Unidos, Thrun não foi o único a escolher a pílula vermelha. Um ano depois da experiência de Stanford, o mundo do ensino superior e o futuro das universidades parecem ter mudado completamente. O curso de Thrun não foi o único a abrir as portas aos interessados online, no começo do ano letivo passado. Dois de seus colegas na área de ciência da computação - Andrew Ng e Daphne Koller - também participaram, com resultados igualmente espantosos. Os dois também criaram um site, o Coursera. E enquanto a Udacity está desenvolvendo seu próprio currículo, a Coursera optou por formar parcerias com universidades e oferecer aos seus alunos acessos a cursos existentes. Quando conversei com Koller em julho, pouco depois que o site foi lançado, quatro universidades já haviam aderido - Stanford, Princeton, Michigan e Pensilvânia.
Passados mais quatro meses, o programa já conta com 33 universidades, 1,8 milhões de estudantes, e dinheiro das companhias de capital para empreendimentos - US$16 milhões só na primeira rodada de financiamento. É notável que a Udacity e a Coursera tenham sido criadas pela mesma universidade, e pelo mesmo departamento. (Thrun e Koller continuam a orientar juntos um aluno de doutorado.) Os dois projetos têm aquela qualidade empresarial dinâmica, e a capacidade de mudar o mundo, que caracteriza as maiores e mais bem-sucedidas empresas iniciantes do Vale do Silício.
"Conseguimos nosso primeiro milhão de usuários mais rápido que o Facebook, mais rápido que o Instagram", diz Koller. "É uma mudança completa no ecossistema educacional".
Mas eles não estão sozinhos. No MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), Anant Argarwal, outro professor de ciência da computação que também menciona Khan como inspiração (e foi aluno dele), criou o edX, oferecendo conteúdo do MIT, Harvard, Berkeley e da Universidade do Texas.
Argarwal não economiza otimismo. Ele afirma que estamos vivendo a revolução. "A educação será reinventada. As universidades se transformarão. A educação será democratizada em escala mundial. É a maior inovação a surgir na educação em 200 anos". A última grande novidade, diz ele, "provavelmente foi a invenção do lápis". Dentro de uma década, a expectativa dele é que seu programa esteja beneficiando um bilhão de estudantes em todo o mundo. "Conquistamos 400 mil estudantes em quatro meses sem qualquer marketing, e por isso não considero que a meta seja irrealista".
Mais de 155 mil alunos participaram do primeiro curso que ele lecionou, entre os quais uma sala de aula de crianças da Mongólia. "Isso foi maravilhoso", conta Argarwal. "E descobrimos um prodígio. Um dos meus alunos, Batthushig, tirou a nota máxima. Ele é aluno de segundo grau. Não há como explicar o quanto o curso era difícil. Nem eu conseguiria nota máxima. Agora, queremos que ele se matricule no MIT". Argarwal afirma que estamos vivendo o ano em que tudo mudou. "Não haverá recuo. Vivemos o ano da revolução".
Um mês atrás, me matriculei em um dos cursos da Coursera: introdução à genética e evolução, com aulas de Mohamed Noor, professor da Universidade Duke. Ao contrário das aulas da Udacity, os cursos da Coursera têm data de início e seguem cronogramas. Um curso da Universidade da Pensilvânia sobre poesia moderna me interessou bastante, mas já tinha começado. O curso em que me matriculei tinha dez semanas de duração, e consistiria de "múltiplas miniunidades com vídeos de 10 e 15 minutos de duração", cada qual com questões a responder; haveria três provas ao longo do curso, e um exame final.
Noor e eu temos 36 mil colegas de classe, de todas as origens - Cazaquistão, Manilha, Donetsk, Iraque. Até Middlesbrough. Mas embora eu assista aos vídeos e aprecie o sorridente entusiasmo de Noor, o curso não me arrebata.
Trata-se apenas de vídeos de aulas. Há trabalhos a entregar, mas sou jornalista. Não me incomodo com prazos de entrega até que o suor frio da catástrofe iminente tome conta de mim. Por isso, ignoro os prazos. E passo uma semana antes de voltar ao site para verificar o fórum de discussões entre os alunos.
E é então que surge meu momento de estupefação: o tráfego é espantoso. Há milhares de pessoas perguntando -e respondendo - questões sobre mutações dominantes e recombinação. E grupos de estudo surgiram espontaneamente - um formado por colombianos, um por brasileiros, um por russos. Há um grupo que conversa por Skype, e até grupos que estudam juntos na vida real. E todo mundo é tão diligente! Se você é um professor um tanto desiludido, ou tem algum amigo que seja, recomendo a Coursera: as pessoas lá realmente querem aprender.
Passadas quatro semanas, Noor anuncia que vai organizar um hangout no Google, no qual número limitado de pessoas poderá conversar via webcam. Mas está marcado para a uma da manhã de domingo, no horário londrino. Caio no sono. Mas assisto ao vídeo da conversa no YouTube, no dia seguinte, e fico fascinada. Apesar do horário, Richard Herring, condutor de trens de Sheffield, é um dos participantes - entusiástico, atento e disposto a dizer a Noor o quanto gosta do curso.
"Richard!", Noor responde. "Prazer em conhecê-lo. Seus posts são excelentes. Muitas vezes descubro que antes que eu possa responder a uma pergunta alguém já o fez, e em muitos casos a resposta veio de Richard. Obrigado".
"Amo ciência", Richard diz. "Não era bom aluno na escola, mas fui aprendendo ao longo do caminho. O curso é brilhante. Poder participar dele sem pagar é maravilhoso. Estou amando".
E o mesmo vale para Sara Groborz, designer gráfica nascida na Polônia e radicada no Reino Unido. Há também Naresh Ramesh, de Chennai, que está participando porque estuda biotecnologia; e Maria, que vive nos Estados Unidos e está usando o conteúdo do curso nas aulas que dá aos seus estudantes em um reformatório para adolescentes. Aline, estudante de segundo grau em El Salvador, entra no papo. Ela conta que decidiu fazer o curso porque estuda em uma escola católica onde o currículo não inclui a teoria da evolução. "E você é o melhor professor que eu já tive!", ela diz a Noor.
Deve ser muito gratificante para o professor lecionar em um curso como esse. Quando contato Noor por e-mail no dia seguinte, ele responde que "absolutamente ADORO o trabalho". Pelo telefone, ele me diz que essa é uma das coisas mais inspiradoras que já fez.
O mais importante é que isso significa que no próximo semestre será possível "inverter a classe", um conceito defendido por Khan e de sucesso comprovado: os alunos fazem o trabalho básico em casa ao assistir os vídeos, e os deveres de casa são realizados na sala de aula, onde podem discutir as questões com o professor.
Continuam a existir muitos problemas não resolvidos na educação online. Especialmente o fato de que não se pode obter um diploma com ela, ainda que uma universidade norte-americana tenha anunciado que reconheceria os créditos obtidos com esse tipo de curso. No momento, as pessoas estão fazendo esses cursos simplesmente para aprender coisas novas. "E o certificado é essencialmente um pdf que diz que a pessoa em questão pode ou não ser quem diz ser", afirma Noor.
E embora computadores sejam excelentes para corrigir questões de matemática, não são tão bons para dar notas a ensaios sobre literatura inglesa. Há uma preponderância de temas técnicos ou científicos, mas o número de cursos de Humanas está crescendo, com o uso de um método que Koller descreve como "sucesso surpreendente" - técnicas de avaliação por alunos. "Não é algo que possa substituir uma avaliação por um especialista no setor, mas com a orientação correta, a avaliação pelos colegas e o crowdsourcing realmente funcionam", ela afirma.
E em termos de conteúdo, o curso que estou fazendo é praticamente o mesmo que os alunos de Noor na Duke fazem. Na universidade, a interação é maior e existe acesso a um laboratório, mas esses privilégios custam US$ 40 mil anuais.
É muito dinheiro. E é isso que torna os cursos da Udacity, Coursera e edX tão potencialmente revolucionários. No momento, são todos gratuitos. E embora nenhum possa concorrer com um diploma tradicional, quase todos os setores sabem o que acontece quando os adolescentes podem escolher entre pagar muito dinheiro por alguma cosia ou obtê-la de graça.
É claro que a educação não é exatamente uma indústria, mas é um negócio, ou, como diz Matt Grist, analista de educação no instituto de pesquisa Demos, "um mercado", ainda que ele se desculpe imediatamente ao afirmá-lo. "Eu sei, é horrível", afirma. "Mas é assim que se fala no assunto hoje em dia. Não gosto da prática, mas a uso. E é mesmo um mercado. Universidades são empresas poderosas com um giro imenso de clientes. Algumas das melhores instituições britânicas de educação disputam a liderança mundial do setor no momento".
Grist está estudando o modelo de financiamento das universidades britânicas, e vê problemas à frente. A alta salgada nas mensalidades que aconteceu este ano será apenas o começo. "Já estamos nessa estrada, e se criarmos concorrência e um mercado para as universidades, creio que será preciso ir além". Ele antecipa que as melhores universidades se tornarão ainda mais caras, e que as mais baratas, que atendem apenas a necessidades profissionalizantes, "se sustentarão". São as universidades médias, criadas nos anos 60, que ele vê como mais expostas a problemas.
Quando pergunto a Koller por que a educação se tornou o novo bebê milagroso da tecnologia, ela a descreve como "a tempestade perfeita. É como o furacão Sandy, uma confluência de múltiplas coisas ao mesmo tempo. Há enorme necessidade mundial de educação de alta qualidade. Mas isso está se tornando cada vez mais inacessível em termos de custos. Ao mesmo tempo, dispomos de avanços tecnológicos que tornam possível oferecer esse tipo de serviço a um custo marginal muito baixo".
E no Reino Unido, a tempestade talvez seja ainda mais perfeita. Isso tudo está acontecendo em um momento no qual os alunos estão tendo de enfrentar anuidades de até nove mil libras, e de aceitar nível sem precedentes de endividamento educacional.
Os alunos, quer gostem, quer não, se tornaram consumidores. A educação no Reino Unido vinha sendo uma abstração muito pura, até agora - um conceito que não havia sido maculado por ideias de mercado ou valor. Mas isso mudará inevitavelmente, agora. O número de matrículas universitárias de estudantes britânicos caiu em quase 8% este ano. "E o número de alunos que iniciaram os cursos foi ainda menor", me diz Peter Lampl, fundador do Sutton Trust. "A queda nesse caso foi de 15%".
A organização de Lampl defende a mobilidade social, e nada a acelera mais do que a universidade. "Por isso estamos tão interessados nisso", diz Lampl. "Estamos monitorando a situação. Não sabemos qual será o verdadeiro impacto das novas anuidades. Ou que impacto sair da universidade com uma dívida de 50 mil libras terá sobre a vida dos formandos. Será que vai forçá-los a postergar a compra de uma casa? Ou o casamento? As pessoas comparam a situação a dos Estados Unidos, mas um terço dos formandos norte-americanos concluem seus cursos sem dívidas, e os demais dois terços têm dívida média de US$ 25 mil. A escala do que teremos aqui é muito diferente".
E é em meio a essa incerteza e pressão de mercado que os cursos online abertos às massas podem ter papel a desempenhar. Uma educação universitária oferece muitos benefícios intangíveis. "Aprendi tanto com meus colegas quanto com as aulas", diz Lampl. "Mas essas são as coisas que se aprende gratuitamente na universidade - como fazer amigos, como aderir a uma sociedade, como operar uma máquina de lavar. O caro é a parte da educação. E a Udacity e os demais programas mostram que isso não precisa ser necessariamente assim".
A primeira universidade britânica a entrar na jogada foi a de Edimburgo. Fechou acordo com a Coursera e, a partir de janeiro, oferecerá seis cursos, para os quais já há 100 mil alunos matriculados. Ou, para colocar as coisas no contexto, quatro vezes mais inscritos do que a universidade tem em alunos de graduação.
É uma experiência, diz o vice-reitor Jeff Hayward, uma maneira de testar novos métodos de ensino. "Ficarei contente se não perdermos dinheiro com isso". No momento, a Coursera não cobra pelos certificados de conclusão de curso que fornece aos alunos, mas é provável que comece a fazê-lo um dia. Quando isso acontecer, a universidade escocesa terá seu quinhão.
E Edimburgo já conta com um programa online. Mais de dois mil dos alunos de mestrado da universidade estão fazendo seus cursos online. "Em poucos anos, o total subirá a 10 mil", diz Hayward.
Para os alunos de graduação, por outro lado, o estudo não é realmente o motivo de frequentar a universidade, ou ao menos não todo o motivo. Conheço uma aluna da Universidade de Edimburgo chamada Hannah. "Você tem aulas amanhã?", pergunto a ela por SMS. "Só filosofia às 9h", ela responde. "Obviamente não vou".
Hannah é um perfeito exemplo de alguém que ficaria feliz por pagar meia mensalidade e fazer alguns cursos online. "Meu Deus, seria ótimo. Há aulas tão ruins. Tivemos um tutorial outro dia e o professor ficou lá sentado lendo o jornal, e nos disse que estudássemos com o livro".
Max Crema, vice-presidente da união de alunos da universidade, me conta que já usou aulas online do MIT para suplementar o que aprende em seus cursos. "Mas isso talvez aconteça porque sou nerd", admite. "O problema com as aulas é que estão, sei lá, 300 anos desatualizadas. Remontam a era em que as universidades dependiam apenas de livros. É por isso que alguns cargos letivos na universidade são ocupados por pessoas com o título de 'readers' [leitores]".
Decidi assistir a uma aula real, em uma sala de aulas real, o velho anfiteatro de anatomia, um auditório íngreme que está em uso desde o século 19 - na época, uma mesa de dissecação ocupava o centro da sala, onde hoje se posiciona Mayank Dutia, professor de neurofisiologia de sistemas que está palestrando sobre o ouvido interno.
Ele é um dos professores selecionados para participar dos cursos que a universidade promoverá em parceria com a Coursera em janeiro, mas diz que continua a acreditar na necessidade de aulas reais. "Universidades são lugares muito especiais. Não se pode fazer o que fazemos online. Há algo de especial em aprender com um líder mundial de dada disciplina. Ou conversar com alguém que se dedicou a um tema por toda a vida. Nada poderá substituir essa experiência".
É fato. Mas o que os novos sites fazem é propor questões sobre o que uma universidade é e a que ela serve. E como pagar por isso. "O ensino superior está mudando", diz Hayward. "Como financiar a educação mundial em massa? O mundo inteiro enfrenta essa questão com agonia".
É fato. E sem dúvida estamos vivendo um ponto de inflexão. Mas isso pode ter impacto mais próximo. Argarwal vê um futuro no qual as universidades podem oferecer modelos combinados, com aulas online e reais.
A Coursera já fechou seu primeiro acordo de licenciamento. O Antioch College, uma faculdade de Humanas em Ohio, assinou acordo para utilizar conteúdo da Universidade da Pensilvânia e da Duke. E uma nova empresa chamada Minerva Project está tentando criar uma universidade online de elite, e vai encorajar os estudantes a viverem nas imediações uns aos outros, em "núcleos de alojamento", para que se beneficiem dos aspectos sociais da vida de universidade. Tendo visto como os alunos da Coursera e Udacity se organizam, não é impossível antever que estudantes optem por viver em estreito contato no futuro, fazendo seus cursos online. E de graça.
Há muito em jogo. A começar pela economia de dezenas de pequenas cidades britânicas que abrigam as "universidades médias" que Grist considera que elas possam enfrentar problemas no admirável mundo novo do mercado educativo livre.
Em Edimburgo, as anuidades estão tendo efeito - as matrículas caíram - mas "a maioria dos alunos as vê como dinheiro com que terão de se preocupar apenas no futuro", diz Hayward. "Por enquanto é algo hipotético".
Mas este é o primeiro ano da anuidade de nove mil libras. Um aluno inglês de Edimburgo (a universidade é gratuita para escoceses), em um curso de quatro anos, terá dívidas de 36 mil libras apenas com a anuidade. A isso é preciso acrescentar pelo menos mais 30 mil libras de despesas pessoais.
Os sites educativos têm apenas alguns meses de vida. Ainda estão descobrindo seus princípios básicos. As universidades não desaparecerão, por enquanto. Mas ninguém sabe em que situação estaremos dentro de dez anos. Uma década atrás, eu achava que jornais sempre existiriam. Que nada poderia substituir um livro. E que o carro de David Hasselhoff no seriado "Super Máquina" era só uma obra de fantasia.
Tradução de PAULO MIGLIACCI

A fila anda - Painel FC - Bernardo Itri


Lucas Lima - 24.jun.2012/Folhapress
Nelson Prudêncio, medalhista olímpico no salto triplo, em junho deste ano


PAINEL FC
A fila anda
Preferido pela cúpula da CBF para assumir a seleção brasileira após a queda de Mano Menezes, Luiz Felipe Scolari foi descartado pelo Internacional há poucos dias. Motivo: o clube gaúcho recebeu a informação de que o técnico está fechado com uma seleção para trabalhar na Copa-2014. A notícia foi recebida pela diretoria do Internacional logo nos primeiros contatos que fez para tentar a contratação do treinador.
Destino. Dentro do Inter, comentava-se que a seleção em questão é europeia. O treinador, por meio de sua assessoria de imprensa, confirma que há uma sondagem, mas diz que não está nada certo.
Fins e meios. Quem defende Luiz Felipe Scolari na seleção argumenta que a contratação servirá ainda para a CBF conseguir se aproximar do governo federal -desejo do presidente José Maria Marin. O treinador é colaborador do governo e muito próximo do ministro do Esporte, Aldo Rebelo. Essa relação seria trunfo de Marin para chegar à presidente Dilma Rousseff.
Meia-volta. Além do possível retorno de Luiz Felipe Scolari à seleção, outro antigo conhecido da CBF pode voltar a trabalhar na entidade. Dirigentes paulistas afirmam que Américo Faria, demitido do cargo de supervisor técnico com Dunga, em 2010, é forte candidato a trabalhar na CBF. O possível retorno de Faria implicaria na saída de Andres Sanchez da entidade.
Fritura. A leitura entre cartolas paulistas é que a demissão de Mano Menezes seja um modo de a cúpula da CBF pressionar Andres Sanchez, contrariado com a demissão de Mano, a pedir para sair.
Furo. A Conmebol noticiou a queda de Mano Menezes à frente da CBF. O Twitter oficial da confederação continental anunciou a demissão antes mesmo da entrevista coletiva de Andres Sanchez.
Mercado... A Coca-Cola, patrocinadora tradicional da Fifa, foi desbancada pela concorrente, Pepsi, na Soccerex. É a primeira vez que isso acontece em um evento relacionado à Fifa desde 1974.
...aberto. A Ambev, dona da Pepsi, aliás, tornou-se a empresa mais valiosa na bolsa. Passou a valer cerca de R$ 1,5 bi a mais que a Petrobras.
Casa nova. Um workshop sobre a Copa, realizado nesta semana em São Paulo com representantes de sete cidades do Mundial, foi o primeiro evento sediado na nova casa do comitê paulista. O órgão, que antes estava na zona sul, mudará em dezembro para o centro da cidade.
360º. Felipe Massa, que rodou no treino de ontem em Interlagos, foi alvo de brincadeiras após conceder entrevista no autódromo. O piloto da Ferrari foi cumprimentado por alguns amigos que diziam "olha, o rei da rodada".
Colaborou EDUARDO OHATA, de São Paulo
DIVIDIDA
"Se não ganhar essa Copa dos Campeões, minha carreira continuará igual de rica"
JOSÉ MOURINHO
treinador do Real Madrid, defendendo seu potencial como técnico

    Carta ao Mano - Xico Sá


    XICO SÁ
    Carta ao Mano
    Ser técnico da amarelinha é bronca pesada. É mais fácil matar a sede do gado no Raso da Catarina
    Amigo torcedor, amigo secador, o cargo de técnico da seleção brasileira voltou a ser o mais complicado do planeta. Mais difícil que ser síndico do 14-Bis, do Demoiselle ou do Caravelle, para ficar na tríplice coroa de prédios com passados problemáticos onde morei em São Paulo.
    Hoje tais edifícios estão seguramente mais decentes do que a CBF, imagino. Tenho um afeto por esses lugares habitados por gente simples, de verdades complexas e riquíssimas. Ali vale por uma Grécia Antiga em matéria de aprender sobre a existência e suas reviravoltas.
    Ser técnico da amarelinha, caro Mano Menezes, é bronca pesada. Mais fácil presidir a República ou o STF, que são nada diante do Brasil real de Afogados da Ingazeira ou da avenida Sapopemba. Mais fácil governar Zâmbia ou matar a sede do gado no Raso da Catarina.
    Aprendemos muito com Matias Aires, velho Mano, o primeiro grande filósofo brasileiro, autor de "Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens". Sabemos como é bom o proveito do status. Ser técnico da seleção pentacampeã do mundo é motivo de orgulho, para sorrir na frente do espelho e, quem sabe, balbuciar um "chupa" para os eventuais inimigos de plantão na antessala.
    O peso do ofício, porém, não vale a pena. A Copa será no Brasil. Imagina o efeito 1950 que ecoará para sempre no Maracanã, mesmo que sejam trocados todos os tijolos do estádio, mesmo que não reste mais nada do velho Mário Filho, como me diz aqui o amigo Marechal, mesmo que o Maraca seja rifado na bacia das almas por 30 dinheiros.
    Sei que não foges à luta, acreditas na peleia, mas, caro Mano, com essa turma da CBF, sempre seria uma fria. Respeito a cleptomania, porque doença, dos que comandam o nosso futebol -sabes do que estou falando-, porém nunca terias paz no comando do time. "Never more", crocita aqui o Edgar, meu corvo agourento do futiba.
    Sinto muito, caro Mano, que sempre me tratou com respeito, mesmo quando pisei na bola contigo, por certo arroubo televisivo, acontece. Voltemos a refletir sobre a vaidade dos homens, amigo. Como sempre faço na gravidade das horas, mais epistolar do que Mário de Andrade e Pero Vaz de Caminha juntos, te endereço, com todo respeito, esta carta à guisa de abraço.
    O amigo Serginho Barbosa, torcedor do Clube Náutico Capibaribe, que se restabelece em um hospital do Recife, me sopra agora, tirando onda, que caíste por causa da "maldição da Batalha dos Aflitos". Ele acredita que dali ninguém saiu vivo. De tão épico, de tão bonito, de tão Guararapes, de tão Farroupilha.
    Se tem uma coisa que prezo na vida, caro Mano, é a luta contra as humilhações babacas e desnecessárias. Os homens não vieram ao mundo para tal lusco-fusco. Essa turma da CBF vive disso. Que pegues a cuia do chimarrão mais reflexivo e os mande para aquele lugar.

      À MESA COM FRIDA KAHLO


      FICÇÃO TEÓRICA - Silviano Santiago

      Estadão - 24/11/2012


      Quadrinhos


      PIRATAS DO TIETÊ      LAERTE

      LAERTE
      DAIQUIRI      CACO GALHARDO

      CACO GALHARDO
      NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES

      FERNANDO GONSALES
      NÍQUEL NÁUSEA      FERNANDO GONSALES

      FERNANDO GONSALES
      PRETO NO BRANCO      ALLAN SIEBER

      ALLAN SIEBER
      QUASE NADA      FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ

      FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ
      HAGAR      DIK BROWNE

      HORA DO CAFÉ      ALVES

      Alves

      A trava dos sentimentos - José Castello


      O Globo - 24/11/2012

      TALVEZ SE POSSA
      PENSAR NA POESIA
      COMO UM VÃO.
      ALGO QUE SEGURA
      OS SENTIMENTOS
      FÁCEIS PARA QUE
      OUTROS OCUPEM
      SEU LUGAR


      Não é fácil lidar com sentimentos
      sem transformá-los em pesadas
      placas de prensa e reduzilos
      à máscara lamentável dos
      clichês. Sentimentos têm, quase
      sempre, uma aparência fácil:
      brotam espontaneamente, às golfadas, e escorrem
      molhados dos olhos. Difícil é enfrentálos
      a seco. Mais difícil ainda, observá-los como
      travas que, em vez de expressar, bloqueiam
      a experiência.

      Tal me parece ser o projeto do poeta Eucanaã
      Ferraz em “Sentimental” (Companhia das
      Letras). Está em um poema como “Romântica”:
      preferimos tomar a vida como um filme.
      “Quantos de nós quereriam viver não a vida/
      mas o filme, quando a vida não é vida/ e não
      se morre na morte...” ele constata. Quantos de
      nós preferimos “viver sem viver”: sob as ordens
      de um destino previamente escrito
      (script), entre bandos “que matam sem matar”,
      entre “bravos que no fim se vingam”. Uma vida
      sem vida.

      Preferimos, sim, os sentimentos fáceis.
      Aqueles que em vez de libertar, funcionam como
      travas, que seguram o que preferimos não
      sentir. Sentimentos prontos: tão mais fáceis.
      Em outro poema, “Les romanciers étrangers”,
      uma mulher implora por um beijo, mas o homem
      o nega. “Firme e frio, disse que não”. Ela
      se pergunta: “Mas como ele conseguia/ ser assim,
      intransponível?” Aos seus olhos, o homem
      é uma pedra. Só no fim, “ela entende/
      que tudo foi bem pior:/ porque a pedra não
      era ele,/ porque a pedra era ela mesma”. Apesar
      das lágrimas, pedra. “Sim, ela era a pedra
      dele/ em que ele a transformara”. Sentimentos
      nem sempre estão onde julgamos. Uma lágrima
      — o poeta sugere — pode ser insensível.
      Um “não”, guardar muito mais calor.

      Não devemos nos enganar com as impressões
      mecânicas. Está no título de outro
      poema: “A beleza é uma ferida que nos atinge”.
      Nele, uma aranha se desloca de um poema de
      Ferreira Gullar para um poema de Alberto
      Martins. “Não posso dizer que veio em carne/
      e osso, não ouso dizer que veio/ em alma e corpo”.
      A beleza pode estar numa aranha que anda,
      sem que possamos entender seus motivos.
      “Sem que eu, a testemunha,/ saiba, digamos, interpretá-
      la”. A aranha (nojenta) expressa a dança
      dos sentimentos: eles se movem no escuro,
      dão saltos imprevisíveis e escapam a toda compreensão.
      A aranha ameaça e fere: ela nos atinge.
      Permanecemos em silêncio,
      com a beleza de sua dança,
      ainda que repulsiva. Vá se entender
      o que sentimos.

      Eucanaã nos fala da teimosia
      como uma estratégia para o
      sentir. “Olhos fechados para a
      evidência,/ quis entender
      aquilo que se recusava/ a seu
      alcance”. A sensatez (banal)
      sugere que aceitemos os desejos
      imediatos e as ilusões automáticas.
      A poesia se esquiva
      dessas facilidades. “O amigo, em Lisboa, pergunta
      o que quero de Lisboa:/ nada, respondo,
      não quero senão o que não vem nos postais”. Os
      postais enquadram a beleza. O poeta, porém,
      pensa em objetos mais densos, mas “como trazê-
      los”? Ao amigo (Alberto Martins?) ele, enfim,
      responde: “não vale a pena trazer nada, que daí
      só trazemos, sem dar conta/ o que nos parte/ o
      que nos corta”. Um postal é uma faca, que mata
      o que se viveu.

      Continuo a avançar através dos versos desafiadores
      de Eucanaã. Uma beleza que trepida e
      que me empurra para fora de mim. “Vagueio
      desacordado de tudo/ e sobretudo em desacordo
      comigo”, ele escreve. Na Vista Chinesa, diante
      do cenário magnífico, o poeta desconfia outra
      vez do que sente. “Achei que/
      em meu coração a tristeza era
      mesquinha”. Tristeza de amor,
      que o cenário (o real) devora,
      empurrando para o lugar dolorido
      das ilusões. Escreve: “Era
      uma tarde chinesa, tarde de
      mim sem você,/ quando vi que
      nós dois juntos não valíamos”.
      Mas não é só poeta que está
      em descompasso com o que
      sente. Também o leitor — eu,
      pelo menos, me sinto assim —
      percebe-se alijado do miolo dos poemas, como
      alguém que os rondasse, sem penetrá-los. Talvez
      essa seja a marca da poesia: a leitura como
      ronda. Talvez, a respeito da poesia, eu possa repetir
      o que Eucanaã escreve a respeito dos leões:
      “amar um leão é não poder amá-lo”. É aceitar
      o gozo da distância. Em “El labirinto de la soledad”,
      ele fala de Yuri Gagarin que, em 1961, ao
      subir pela primeira vez ao espaço, exclamou:
      “A Terra é azul”. Descreve um Yuri que, de volta
      à Terra, tornou-se um homem sensível, que
      “chorava/ nos museus, teatros, diante da televisão”.
      Alguns decretaram que ele enlouquecera,
      “mas sua mulher assegurava/ que ele apenas
      voltara sentimental”. Voltou à Terra não
      místico, ou religioso, mas tomado por uma
      “ternura devastadora”. Depois de ver a cor verdadeira
      da Terra, o que mais poderia sentir?

      A viagem através dos sentimentos, porém,
      esbarra (termina) em sua própria casca. Como
      decifrá-los? Como interpretá-los? Não será o
      mais difícil apenas aceitá-los? Depois de declarar
      que “a Terra é azul”, Yuri passa a dizer
      tautologias como “a leveza é leve”. Só um poeta
      (Eucanaã) para encontrar na repetição a brecha
      para a beleza. Ele escreve: “Desde o início,/
      quiseram caçá-lo; uma pena; Yuri voltou
      vivo/ e não nos contou como é a morte”.

      Rememora, enfim, seu vínculo amoroso
      com a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen,
      falecida em 2004, que conheceu através
      de outro poeta, Gastão Cruz. Novo deslocamento:
      a poesia se transporta para a voz. “A
      hora como que se curvava/ quando Sophia falava,
      e então/ todas as palavras eram números
      mágicos”. No poema seguinte, em que dialoga
      com o poeta Antonio Cicero, aponta um paradoxo:
      “Repare, Cicero, que os copos se tornam/
      mais leves quando cheios de vinho”. O
      vinho se apresenta como metáfora para o poema.
      Termina: “Repare que o mesmo se dá conosco:
      o peso/ faz-se leve em nós se um verso
      nos acontece”. Algo nos é arrancado. O poema
      não está onde deveria estar e por isso o nome,
      “poeta”, parece uma falsificação.

      Não, a poesia não se origina dos sentimentos
      automáticos. É mais uma lâmina (Cabral) que
      os retalha e expõe. O poema arranca algo do
      poeta, em vez de lhe dar. Escreve Eucanaã: “é o
      que digo;/ se sou, sou-o/ incompletamente”.
      Talvez se possa pensar na poesia como um
      vão. Uma rachadura. Algo que segura os sentimentos
      fáceis para que outros, mais dolorosos
      e menos sentimentais, ocupem seu lugar. 

      Nelson Prudêncio. Nas pistas e na sala de aula, um vencedor

      O Globo - 24/11/2012

      Nhenhenhém - JORGE BASTOS MORENO



      O Globo - 24/11/2012

      Laser de dentista vira opção para quem teme as brocas


      Eficiência de aparelho melhorou, mas preço é barreira para popularização
      Tratamento de cárie e outros problemas pode dispensar uso da anestesia; ainda não dá para tratar canal com ele
      Victor Moriyama/Folhapress
      Norival Ianoni, 71, que tem fobia de dentista, após tratamento com laser em consultório em SP
      Norival Ianoni, 71, que tem fobia de dentista, após tratamento com laser em consultório em SP
      FRANCISCO ZAIDENCOLABORAÇÃO PARA A FOLHAPacientes que nunca se acostumaram ao barulho do "motorzinho" quando vão ao dentista estão começando a contar com uma nova opção no país: lasers que fazem parte do serviço das brocas.
      A tecnologia, conhecida como laser Er:YAG, tem mostrado bons resultados no tratamento de cáries, por exemplo, mas ainda não substitui aparelhos convencionais em vários procedimentos, afirmam especialistas.
      Em si, o uso de lasers em tratamentos odontológicos não é novidade -em 1992, chegava ao país o primeiro modelo de aparelho para esse fim. Entretanto, a tecnologia não pegou, e quase todos os profissionais mantiveram o uso das incômodas brocas.
      A causa do fracasso do laser, segundo odontologistas, deveu-se ao fato de a antiga ferramenta ser lenta e menos precisa, porque sua potência era relativamente baixa.
      Já os novos modelos funcionam em alta potência, proporcionando mais precisão em tratamentos como remoção de cáries, tártaro e placa bacteriana, diz o odontologista Gil Puglisi, que tem o Er:YAG há um ano e meio.
      Para Rodrigo Bueno de Moraes, consultor da ABO (Associação Brasileira de Odontologia), as versões mais recentes do laser trazem vantagens consideráveis. Mas ele alerta: "O aparelho ainda precisa de aprimoramento".
      Os defensores da tecnologia argumentam que, do ponto de vista do paciente, o conforto e a ausência da dor acabam pesando em favor do laser. "Em 85% dos casos, o paciente não precisa de anestesia", afirma Puglisi.
      NO BOLSO
      Como o laser custa cerca de US$ 70 mil, ainda há pouca demanda por ele entre os dentistas -ainda é considerado um aparelho "elitista", de acordo com Moraes. Segundo Puglisi, uma obturação sai por R$ 700.
      O laser funciona por meio da combinação de seu feixe com um jato de água. Ele causa um aquecimento rápido e superficial na parte mineralizada do dente e faz a água virar vapor, criando microexplosões que removem o tecido com lesões.
      De acordo com Ângela Toshie Araki, pesquisadora da USP que estuda a ação do Er:YAG, em determinados casos ainda é necessário o uso da broca, pois o laser não consegue fazer todo os tipos de tratamentos dentários.
      Por isso, para a professora, o laser ainda é considerado "coadjuvante". Em tratamentos de canal, por exemplo, ele não consegue fazer o trabalho. Entretanto, "reduz o número de bactérias em 99%" para que, em seguida, a broca seja utilizada. Segundo Araki, há chances de que o uso do laser se torne mais amplo no futuro.
      O aposentado Norival Ianoni, 71, diz que o uso da tecnologia o ajudou a vencer o medo de dentista -é que, após uma injeção traumatizante quando criança, Ianoni se tornou um daqueles pacientes aterrorizados com o tratamento dentário.
      "Eu tenho pavor, deito na cadeira e começo a tremer", explica. Recém-adepto do Er:YAG, o aposentado afirma que agora vai tranquilo ao consultório. Seu tratamento ainda vai durar dois meses.

        PAULO SANT’ANA - Ave, Verissimo!

        Zero Hora 24/11/2012

        Fomos todos impactados durante a semana com a notícia de que o companheiro Luis Fernando Verissimo estava internado em estado gravíssimo.

        Fui para o barbeiro, e a RBS TV confirmou a notícia. Quando dá na televisão, é porque a coisa está feia.

        Estou fazendo a barba e não me sai da cabeça o Verissimo em sérios apuros.

        Interessante como a gente fica tomado de afeição por colegas. Essa nossa profissão liga-nos umbilicalmente aos veículos em que trabalhamos. Parece que criamos uma nova família.

        E na minha aflição pelo estado do Verissimo é que pude perceber então como prezo a ele, principalmente prezo-o como cronista, como necessário e imprescindível à imprensa. Eu também estava chocado porque tinha a impressão de que iria morrer antes dele, pelo simples fato de que tinha menos saúde que ele.

        Felizmente, com uma certa melhora que o Verissimo teve na UTI, parece que vai acontecer mesmo o que previ: morrerei antes dele.

        O que mais chama a atenção na personalidade do Verissimo é a sua facilidade em escrever talentosamente, enquanto para falar ele se revela quase impotente, difícil arrancar uma frase dos seus lábios.

        Pela tarde, na companhia do governador Tarso Genro, fui ao Hospital Moinhos de Vento, onde ficamos sabendo dos médicos e da Fernanda, filha do Verissimo, que ele já reagia melhor ao tratamento de urgência.

        Saímos de lá rezando pelo grande cronista, ele haveria de sair-se bem de mais essa.

        Esta idade de mais de 70 anos é delicada. Os órgãos já estão gastos, qualquer acidente na saúde causa pânico no paciente.

        Assim é a vida. Quem passa dos 70 entra na faixa perigosa.

        E chamou a atenção a repercussão que a doença do Verissimo teve em todo o país.

        De uns tempos para cá, valorizou-se na sociedade o papel dos jornalistas.

        E o Verissimo é pedra 90 do jornalismo.

        CLÁUDIA LAITANO - O afeto que se encerra

        Zero Hora - 24/11/2012

        A certa altura do documentário Caro Francis (2008), a viúva Sonia Nolasco lê uma carta em que Paulo Francis (1930 – 1997) narra a um amigo os últimos dias da gata Alzira e seu desconsolo diante da morte iminente do bichinho. É um trecho emocionante do filme, mas é inevitável sentir algum desconforto quando nos damos conta de que o próprio jornalista, se consultado, provavelmente não teria autorizado uma exposição tão escancarada da sua intimidade.

        Podemos imaginar Paulo Francis desafiando inimigos, ridicularizando adversários, ou mesmo saindo no tapa com algum desafeto depois de um ou dois uísques a mais, mas dificilmente chorando – e menos ainda pela morte de um gato. A sua revelia, desfez-se em um par de minutos de um filme boa parte da imagem cínica e durona cultivada ao longo de 40 anos de jornalismo macho alfa.

        A cantora americana Fiona Apple, 35 anos, situa-se mais ou menos no extremo oposto no espectro da sensibilidade à flor da pele. Dona de olhos tristes e canções mais melancólicas ainda, Fiona transformou a própria fragilidade na matéria viva que recheia a maior parte das letras que compõe.

        Como muitos artistas que surgiram a partir dos anos 90, a cantora confessa inseguranças e desajustes íntimos com a mesma desenvoltura com que um Hemingway (ou um Paulo Francis...) se vangloriaria das grandes conquistas. Sem medo de ser infeliz, a cantora é um retrato bastante emblemático da sensibilidade artística de boa parte da sua geração.

        Não chega a ser surpreendente, portanto, que Fiona Apple tenha decidido cancelar sua turnê na América Latina (Porto Alegre, inclusive) para ficar ao lado da cachorra Janet naqueles que podem ser seus últimos meses de vida. Escrita à mão e postada em uma rede social, a carta comove até mesmo aqueles que nunca tiveram um cachorro (como eu) ou pertencem àquela parcela da humanidade que se identifica mais com a independência felina do que com a fidelidade irrevogável dos cães (idem).

        Isso porque a justificativa de Fiona para o cancelamento da turnê acabou se tornando menos um testemunho, como tantos outros, a respeito da amizade por um bicho de estimação do que um tocante depoimento sobre a proximidade da morte de alguém querido e a forma mais apropriada de viver esse momento.

        “Não serei aquela pessoa que coloca a carreira acima do amor e da amizade. Vou ficar em casa, ao lado da minha mais antiga e querida amiga, fazendo com que ela se sinta confortável, confortada, segura, importante”, diz Fiona na longa carta em que conta como encontrou Janet em um parque, 13 anos antes, machucada e abandonada, e como as duas tornaram-se inseparáveis nos anos seguintes.

        Muitos fãs devem ter achado esquisito cancelar uma turnê por causa de um cachorro, muito estranho até mesmo para a excêntrica Fiona. Mas intimamente, amantes de cachorro ou não, todos sabemos que ela fez a coisa certa. Diante de um afeto que se vai, não existem fortes nem fracos, cínicos ou frágeis, mas apenas nossa precária e atônita humanidade – e o tanto de amor que conseguimos aprender a dividir.

        A luta contra a Aids - Julio Abramczyk


        PLANTÃO MÉDICO
        JULIO ABRAMCZYK - julio@uol.com
        A luta contra a Aids
        O DIA Mundial de Luta contra a Aids será celebrado na semana que vem. Pouco depois dos primeiros casos, em 1981, nos EUA, não havia um único país aonde a nova e desconhecida doença não tivesse chegado.
        O mundo entrou em pânico, com a perspectiva de a doença explodir epidemicamente. Parecia a repetição da Peste Negra, no século 14, que devastou a Europa.
        Diferentemente da peste, identificada e controlada apenas séculos depois, poucas décadas foram necessárias para colocar um freio à expansão da Aids.
        Isso se deve, em parte, à pressão de grupos de apoio aos pacientes, que passaram a exigir das autoridades medicamentos para tratar e controlar a doença.
        Em 1987 surgiu o primeiro tratamento, com o AZT. Hoje, são vários os remédios, como tenofovir, lamivulina, efavirenz e etravirina, distribuídos pelo SUS. Ainda não há cura total, mas os remédios controlam a evolução da doença, o que permite boa qualidade de vida.
        Segundo a Unaids, órgão das Nações Unidas, tem sido observada queda de 50% de novas infecções pelo HIV em 25 países. No Brasil, o Ministério da Saúde estima em 530 mil os portadores do vírus HIV, dos quais 135 mil não sabem ter o vírus. Desconhecendo a doença, chegarão muito tarde para o tratamento.
        Daí a importância da detecção precoce e da campanha promovida pelo Ministério da Saúde nos postos de saúde, com testes gratuitos.

          Educação, petróleo e liberdade - João Paulo


          Educação, petróleo e liberdade 


           "Quem defende a educação deveria saber que está do lado da maior das revoluções."


          João Paulo ‏


          Estado de Minas: 24/11/2012 


          Para Paulo Freire, tão importante quanto ler palavras é ler criticamente o mundo

          Falar em educação no Brasil é um jeito cabotino ou ingênuo de querer ser bacana. Afinal, todo mundo é a favor da educação, de mais verbas para o setor, de melhor avaliação do que está sendo feito, de uma distribuição mais equilibrada das oportunidades. Além disso, é uma forma de defender princípios universais, como a importância do mérito, a valorização do esforço, o primado do conhecimento, a dissolução dos preconceitos. E tem mais: a educação é nossa saída para o desenvolvimento, para a igualdade, para a superação dos problemas que nos afligem há séculos. Quem é contra este programa?

          O recente debate em torno da distribuição dos royalties do petróleo aproveitou de todos esses consensos para defender que a riqueza que dorme sob o sal deveria ser direcionada à educação de qualidade para todos. Se você quer convencer o outro de suas boas intenções, basta dizer que tudo será investido na educação. No sentido inverso, sempre que se quer fugir de análises políticas mais responsáveis, o mais fácil é jogar tudo nas costas da carência da educação em nossa realidade: nossos pecados de alma e nossos impulsos antirrepublicanos são todos decorrentes de sua falta: corrupção, autoritarismo, impunidade.

          Em outras palavras, o uso duplo da educação, como saída para nossos males e explicação para nossas mazelas, nada mais é que um desvio ideológico explícito. A culpa da pobreza é dos pobres, que não estão aptos para os novos tempos (afinal, os empregos estão aí, o que falta é qualificação), e os defeitos sociais são consequência do estágio ainda incipiente do processo de formação cultural, e não resultado direto do encastelamento de interesses privados no coração do Estado e de suas práticas. 

          Educação, no entanto, não é uma palavra unívoca nem uma ação isenta de conflitos. As mesmas pessoas que defendem a educação (quase sempre para os outros, pois já se julgam educadas) combatem greves por melhoria de salário de professores, defendem a volta do boletim como forma de controle, são favoráveis à expulsão de alunos com problemas de aprendizagem da sala de seus filhos, atacam as políticas de cotas sob o argumento inepto de que se trata de um racismo de rebote, são defensoras da ligação íntima do ensino com as demandas de mercado e demonizam a pesquisa em ciências humanas e filosofia como sendo poesia inútil. 

          Falar de educação no Brasil, por isso, não é uma tarefa fácil, já que se trata de território minado pelos interesses. A primeira dificuldade está na própria definição do que a palavra evoca. Historicamente, educação tem significado no país um processo de aposta na via da subjetividade para alcançar resultados que são sociais. Ou seja, pela via da aprendizagem formal seria possível universalizar valores morais e políticos que traduziriam interesses gerais. Por meio do ensino, as pessoas aprenderiam a viver em sociedade, ao mesmo tempo em que se capacitariam para o trabalho e a consequente mobilidade social decorrente de seu esforço pessoal.

          Hierarquia e servilismo
           Seria bom, se fosse verdade. Nunca foi assim. Na realidade, o sistema educacional, seja ele público ou privado (com aporte significativo de recursos públicos desde a criação das escolas religiosas, que ganhavam terrenos e isenção de impostos), funcionou muito mais na garantia da exclusão de classes do que no processo de inclusão. O sistema educacional brasileiro foi moldado como um retrato da sociedade, com hierarquias, racismo, machismo, estratégias de separação e um potente aparato ideológico de reprodução pouco crítica de uma determinada visão de mundo. Além disso, no aspecto profissional, a história foi sempre de servilismo aos interesses do sistema econômico, igualmente concentrador e denodadamente cego em seus objetivos. Em vez de garantir subjetivamente a cidadania, a educação brasileira ia na via inversa de sustentar publicamente os interesses privados.

          Essa história durou séculos e foi deixando marcas na legislação (a primeira garantia de ensino público gratuito, em 1824, só contemplava cidadãos, o que deixava de fora a maior parte da sociedade e os escravos) chegando ao século 20, com a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1961, sonho de várias gerações de educadores. Ainda que gestada a partir das ideias do nacional-desenvolvimentismo, a legislação, ao mesmo tempo em que atendia a necessidade de qualificação das pessoas para o desafio econômico, tinha como pano de fundo a ideia de que era possível subverter as desigualdades a partir de um política redistributiva em termos de oportunidades de mobilidade social.

          Sempre ligada à história de seu tempo, a educação sofreu sob a ditadura militar uma torção em direção ao autoritarismo e aos interesses explícitos do projeto de crescimento econômico. Houve resistência, sobretudo nas universidades públicas. No entanto, numa onda que depois ganharia novo alento na década de 90, a ligação entre produção e ensino, traduzida no conceito de “capital humano”, uma versão mais moderninha do já hediondo “recursos humanos”, se tornou caminho prioritário em termos de investimento público.

          Além da escola A situação hoje traz alguns elementos novos no caminho da democratização do acesso, mas ainda patina no que diz respeito à consideração filosófica e política da questão. É preciso destacar que a escola vem com o tempo perdendo a hegemonia que a considerava o lugar por excelência das trocas educacionais. A crise da institucionalidade da escola, percebida como terreno insuficiente para dar conta das desigualdades sociais, em vez de jogar contra ela, vem amadurecendo-a para exercer um novo papel político e a articulação com a sociedade, o que nem todos ainda perceberam. Se há uma escola nova a caminho, ela vem menos do setor produtivo com suas exigências de treinamento do que dos movimentos sociais com sua luta por reconhecimento e expressão.

          Nesse contexto, falar de educação é falar de política e de modelo de sociedade. Não deixa por isso de ser motivo de satisfação a concessão do título de Patrono da Educação Brasileira a Paulo Freire (1921-1997), em decreto de 13 de abril . As ideias do educador estão mais atuais que nunca e ainda mais urgentes. O que se observa com relação a Paulo Freire é muito semelhante ao que se percebe em relação à educação: há um consenso que esconde a radicalidade. Assim como todos são a favor da educação (mesmo que não digam de que educação estão falando), todos defendem a alfabetização de adultos e a educação popular realizada por Freire em países de todo o mundo. No entanto, quando se trata de avançar para uma educação que mude as relações sociais, a história é outra.

          Para o autor da Pedagogia do oprimido, educação era a prática da liberdade, um ato de conhecimento e de aproximação crítica da realidade, não um treinamento para realizar tarefas mais ou menos complicadas. Para garantir que todo homem e mulher pudessem realizar o que tinham de melhor em si, era necessário mudar a escola e, em consequência, a realidade à sua volta. O processo de libertação não era algo que se dava fora do sujeito. O opressor não está apenas no mundo exterior, mas habita cada um de nós. Educar, por isso, é libertar para a solidariedade, não para a competição que hoje cerca a educação e a define. 

          Como escreveu Paulo Freire em seu livro-testamento, À sombra desta mangueira: “No esforço de manter viva a esperança indispensável à alegria na escola, educadoras e educadores, não importa o que ensinem, deveriam analisar sempre as idas e vindas da realidade social. Idas e vindas que viabilizam maior ou menor razão de esperança”. Ninguém se educa sozinho nem fora do mundo. Educar é conviver com os outros e com o mundo. Sobretudo para se irmanar com o outro e para transformar o mundo. 

          Quem defende a educação deveria saber que está do lado da maior das revoluções.

          Aposentação - Walter Ceneviva


          WALTER CENEVIVA
          Aposentação
          O fato de todos serem iguais perante a lei não impede que a própria lei crie diversos caminhos ao definir o direito
          HÁ PESSOAS que anseiam, para que chegue o dia em que poderão aposentar-se, ou seja, afastar-se de seu trabalho remunerado (na atividade privada ou pública), tendo direito de receber proventos próprios de sua condição de aposentado.
          Este, durante o tempo de serviço, sofreu descontos destinados ao caixa de instituições oficiais garantidoras, em tese, dessa retribuição.
          O limite para a aposentadoria, no serviço público (servidores de entidades governamentais) ou na iniciativa privada (trabalhadores com relação de emprego), chega aos setenta anos de idade.
          Nem sempre é assim, conforme sabem todos os que trabalham. A Constituição estabelece a forçada aposentadoria, aos setenta anos para o servidor público (art. 40). Este, queira ou não queira, sofre a aposentação expulsória. Essa forma áspera de dizer as coisas serve para mostrar que o fato de todos serem iguais perante a lei (art. 5º), não impede que a própria lei crie diversos caminhos, ao definir o direito.
          Há muitas alternativas na busca das soluções. As mulheres, por exemplo, querem, com muita justiça, oportunidades iguais às dos homens, mas podem aposentar-se mais jovens que a idade imposta ao sexo masculino.
          A solução legal é justa. Respeita, fora do vínculo profissional, a diferença das atribuições delas, no trato do lar e da família. A pluralidade das situações é, a rigor, ilimitada, conforme se vê do tratamento diferenciado para melhor, para os parlamentares, homens e mulheres. Sua aposentadoria é proporcional ao tempo de exercício do mandato, dure este o tempo que durar.
          Outro exemplo, colhido no direito brasileiro, é dos tabeliães e registradores públicos. Não precisam aposentar-se aos 70 anos. São agentes públicos, mas não servidores públicos. A exceção vem da interpretação que o Poder Judiciário deu ao art. 40 da Carta Magna, combinado com seus arts. 37 e 236 e com a mudança vinda com a EC n° 41, tendo, assim, estrita legalidade.
          Exemplo atualíssimo é o do ministro Ayres Britto, do STF (Supremo Tribunal Federal). Foi alcançado pela aposentadoria compulsória aos 70 anos, quando sua cultura e capacidade profissional mostram que teria condição de continuar na tarefa, por muito tempo. Nesta coluna referi o caso do ministro Celso de Mello, para afirmar que seria lamentável se confirmasse a vontade de pedir aposentação antes dos 70 anos. Trata-se de magistrado exemplar, que tem dado contribuição muito qualificada nos julgamentos do STF, do qual é o decano.
          Tomo o exemplo da Corte Suprema dos Estados Unidos, para o cargo vitalício. Sabe-se, porém, que a permanência estendida gera situações negativas, quando o magistrado não tem condições de trabalho, compatíveis com suas tarefas em face das mudanças que a vida impõe.
          Mesmo em se sabendo que, com os progressos da ciência, é comum, ver homens e mulheres com mais de 70 anos, em plena forma, o adiamento da aposentadoria, nos tribunais, tem um lado a considerar: impede a abertura de novas vagas, nas promoções. Daí a conveniência do meio termo, que considere a velocidade das transformações da vida moderna.
          A preocupação que fica no ar está na dosagem da mudança e no tempo dela, pois não há dúvida quanto à necessidade do ajuste, a ser enfrentado. Logo.

          O Japão e o crime - Alexandre Vidal Porto


          ALEXANDRE VIDAL PORTO
          O Japão e o crime
          A Justiça penal severa é determinante para a baixa criminalidade no Japão, onde não se tolera o crime
          Os índices de criminalidade no Japão são dos mais baixos entre os países desenvolvidos. Segundo relatório divulgado pelo Ministério da Justiça local, o total de crimes cometidos no país apresenta queda pelo nono ano consecutivo.
          Em termos de qualidade de vida, isso faz diferença. Na noite em que começaram a queimar ônibus em Florianópolis, eu saí para jantar com amigos em Tóquio.
          Enquanto, no Brasil, pessoas se trancavam em casa com medo da violência, eu caminhava sozinho, na madrugada, por um dos maiores parques da cidade. Cruzei com atletas noturnos e casais namorando nos bancos. Todos tranquilos.
          Percebi que, naquela noite, experimentava um prazer que os brasileiros de minha geração não tinham mais. No Japão, a Justiça penal severa é fator determinante para a baixa criminalidade. Mais de 90% dos processos criminais iniciados acabam em condenação.
          Tal severidade é criticada por organizações de direitos humanos. Mas a noção de que o criminoso tem uma dívida com a sociedade e deve pagá-la é arraigada. A população japonesa é intolerante com o crime.
          Cerca de 85% são a favor da pena de morte. Neste ano, até o momento, sete pessoas foram executadas pela Justiça do país.
          As condições nos presídios são consideradas dignas. Não há problema de superlotação.
          Porém o regime disciplinar é draconiano. Existem regras sobre a utilização de banheiros e a arrumação das celas. Todos os horários dos presos são cronometrados. Visitas de familiares e comunicação com o mundo exterior são limitadas e monitoradas. Violações são punidas com rigor.
          Há acusações de abusos e de brutalidade policial contra detentos no Japão. As autoridades judiciárias alegam que a rigidez das penas e o controle estrito da ordem contribuem para a segurança da população carcerária e ajudam seu processo de reintegração à sociedade.
          Entre os japoneses, parece haver o entendimento claro de que a finalidade das prisões é preparar os detentos para reintegrarem-se à sociedade. Os recursos investidos no sistema prisional são vistos como investimento social.
          Os presos trabalham duro por salários reduzidos e são obrigados a cumprir programas de capacitação. O objetivo é devolver à sociedade um cidadão produtivo e autossuficiente.
          O Ministério da Justiça japonês pretende celebrar dez anos de redução na taxa nacional de criminalidade. Com esse fim, seu relatório anual incluiu capítulo especial com propostas para a diminuição do número de reincidentes, como, por exemplo, programas de auxílio para a obtenção de emprego estável e moradia fixa, fatores decisivos na definição no índice de reincidência criminal.
          Em qualquer país do mundo, a redução da criminalidade exige a implementação eficiente de políticas públicas de qualidade.
          Isso é lógico. É esse o preço a pagar para caminhar em segurança na cidade onde se vive. Falhas na elaboração ou na prática dessas políticas tornam o combate à criminalidade bem mais custoso. E quem paga o preço é a população.
          ALEXANDRE VIDAL PORTO é escritor e diplomata. Este artigo reflete apenas as opiniões do autor.
          @vidalporto