domingo, 16 de novembro de 2014

Textão no FB sobre negacionistas do clima. - Eduardo Viveiros de Castro

Quem increpa de "aquecimentistas" os cientistas do clima (e a opinião pública que os leva a sério) que estão na origem da massa crescente de observações empíricas e projeções matemáticas sobre os processos de transformação antrópica do sistema Terra, introduz subrepticiamente, com este rótulo, a sugestão de que se trata de gente que ~deseja~ que o planeta aqueça; que não só "acha" que ele está aquecendo, mas que acha isso ótimo. Não, não é verdade que eles achem isso ótimo... Eles acham isso péssimo, catastrófico; e uma boa parte deles entende que tais processos só serão desacelerados, e seus efeitos mitigados, se sobrevierem mudanças radicais no dispositivo tecno-industrial e na axiomática teológica do capitalismo. Na mesma direção, "catastrofista" é um termo que a direita, ajudada por seus inocentes inúteis de "esquerda", utiliza para insinuar que quem afirma estarmos diante de uma catástrofe planetária está torcendo pela catástrofe, e portanto ou é um maluco apocalíptico, ou é um espertalhão que pretende convencer a plebe de que tal catástrofe é iminente (não, ela não é "iminente", ela já está acontecendo) e assim descolar uma graninha com essa patranha. Não, não é verdade que aqueles que falam em catástrofe sejam "a favor" da catástrofe... Exceto no sentido de que eles entendem que estamos diante de processos para os quais o adjetivo "catastrófico" está em vias de se transformar em um delicado eufemismo, e que é preciso agir para interromper tais processos, mitigá-los, e revertê-los na estreita medida do ainda possível.
Aqueles que chamamos de "negacionistas", e que se auto-intitulam "céticos do clima", são chamados de negacionistas por nós — i.e. por aqueles que coincidem com a posição majoritária na comunidade acadêmica especializada — porque estes cientistas ou pseudo-cientistas negacionistas, seja por uma vaidade profissional elevada ao narcisismo psicótico, seja, frequentemente, por pura venalidade (muitos estão a soldo das indústrias do petróleo e de outras megacorporações criminosas), negam o que sabem perfeitamente ser certo, ou, para ser preciso, altissimamente provável. Não são "céticos", portanto; são, exatamente, negacionistas — trabalham para que a opinião pública ignore conclusões cientificas laboriosamente consolidadas; estimulam a paralisia, a (in)decisão de que nada se faça para mitigar os efeitos do aquecimento global. Desprezam, no mínimo, o elementar princípio da precaução. Na verdade, são eles os verdadeiros aquecimentistas e catastrofistas, pois colaboram ativamente para a progressão do aquecimento global e para a produção da catástrofe. São cúmplices, por imperícia ou por malícia, do presente estado de coisas. Devem portanto ser combatidos e contestados em todas as frentes, contextos e ocasiões.
E existem enfim os que chamarei de indiferentistas, posição compreensível quando se trata da população "em geral", cujo acesso à informação é restringido de todas as maneiras possíveis — mas a ficha vai acabar caindo, como já está caindo agora, quando (um exemplo entre centenas) a água começa a não cair mais do céu e as torneiras secam —, mas posição absolutamente inadmissível quando se trata de universitários, de estudiosos das ciências relacionadas ao sistema Terra, ou simplesmente de gente em condições de compreender a literatura especializada — senão no detalhe técnico fino, ao menos por ter a capacidade cultural e intelectual de sopesar os critérios de legitimação dos discursos científicos em circulação. Os indiferentistas estão muito próximos em espírito dos negacionistas, pois compartilham da mesma opção pela inação, da mesma adesão ao status quo. Estão do mesmo lado que estes na guerra pela Terra. Do lado da Exxon, da Shell, da BP, da Monsanto, da Bayer, da Nestlé, da Vale, da Odebrecht e da Camargo Corrêa.
UnlikeUnlike ·  · 
  • Deborah Danowski Exato. Por isso eu aceitaria de bom grado que outros se juntassem a nós que vamos questionar cara a cara gente como o Luiz Carlos Molion e seus anfitriões nas universidade brasileiras. Cada uma dessas aparições públicas dos negacionistas, quando aplaudida pela plateia que prefere permanecer na ignorancia, contribui para facilitar a indiferença de parte da sociedade. Não deixem essas aparicoes passarem em branco.
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  • Deborah Danowski Meu comentário acima foi mesmo um chamado, para que todos se envolvam, pois a indiferença e o negacionismo a que o Eduardose referiu é criminoso.
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  • Louis Forline Vale a pena ler DOUBT IS THERE PRODUCT: HOW INDUSTRY'S ASSAULT ON SCIENCE THREATENS YOUR HEALTH de David Michaels. Tem um capítulo sobre cientistas mercenários que ajudam a ofuscar a realidade.
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  • Renata Lins O mundo segundo a Monsanto é leitura muito instrutiva tb.
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  • Alexandre Araújo Costa As aparições desses calhordas não podem passar em brancas nuvens.

Escritor mesmo - Martha Medeiros

ZERO HORA 16/11/2014

Sempre me considerei uma mulher adaptável. Me convide para um baile na corte ou um churrasco na laje, e me sentirei em casa pelo simples fato de estar bem assentada em mim. O que vier eu destrincho, desdobro.

 Isso até outro dia, quando voltei a frequentar a única espécie de roda que me faz tremer na base: a dos festivais literários. No início correu tudo bem, conversei com colegas que conhecia de vista ou de nome, rimos muito, viramos uma turma, mas houve um momento em que os astros deram uma pirueta nos céus e desconfiguraram a cena: sem entender como, fui parar numa mesa de restaurante com três figurões da literatura com quem nunca havia interagido antes. Calma, qual o espanto? É só participar do papo, você já fez isso mil vezes.
Aí é que está. O papo foi sobre as variadas vertentes do judaísmo. A filosofia alemã do século 18. Os mais influentes documentários políticos da história. As consequências da xenofobia francesa para a economia. Quando escutei um deles declarar furioso “Nem arrastado eu moraria em Paris”, pedi licença, me levantei e fui ao encontro de uma blogueira divertida que amaria estudar em Paris, casar em Paris, ser infeliz em Paris.
Há gente que vive de escrever e há os escritores mesmo. Aqueles da mesa eram escritores mesmo. Alto padrão intelectual. Colecionadores de prêmios. Catedráticos viajados, virtuoses da língua, candidatos fortíssimos à Academia Brasileira de Letras. Eu? Uma penetra. Mesmo.
Esse episódio me fez lembrar uma conversa que tive com um amigo da adolescência que convive comigo desde sempre, sabe a gaiata que sou, e que me disse que muita gente que não me conhece pensa que, se me levar a um restaurante, vai ter que enfrentar essa mesma discussão filosófico-cultural. Dei risada. Ele me olhou bem sério e disse que não era brincadeira: escritores assustam, ele garantiu. Quase chorando, perguntei: isso significa que estou ferrada? Ele me abraçou e disse: está, amiga. Se quiser sair e namorar, entre no Facebook e procure a turma da praia, do colégio, do clube, do bairro, aqueles que conviveram com você antes de você ter dado certo.
Fiquei tão desolada que ele me pagou outra cerveja.
Era machista sua avaliação, mas, quando me vi cercada pelo grupo erudito, entendi. Se aquela era a imagem que se fazia dos escritores, coitados de nós. Estávamos em maus lençóis. Quem se aproximasse acreditaria estar condenado a debates e palestras até durante o bem-bom.

Há os escritores mesmo, cuja sabedoria sobressai desde o aperitivo até a sobremesa (e têm todo o meu respeito), e há aqueles que apenas tiveram o privilégio de publicar seus textos e que dão pitacos sobre cultura pop, cinema, viagens, televisão, futebol, encrencas, roubadas, amores, alegrias, assumindo o mundanismo que os constitui. Não sou uma escritora mesmo. Não sou nada que mereça o “mesmo” como reforço. Meio baile na corte, meio churrasco na laje. Mesmo, mesmo, bem intencionada – e só.

Genialidade - Eduardo Almeida Reis

Genialidade


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 16/11/2014



Inteligência é uma coisa, genialidade é algo muito diferente. Roberto Irineu, José Roberto e João Roberto Marinho são rapazes inteligentes. Conheço Roberto Irineu. Jantei em sua casa, a convite, no ano de mil novecentos e antigamente. Se os três são inteligentes, sua rede de tevê é genial e vem de inventar uma forma de se livrar dos velhos jornalistas sem recorrer às demissões.

Demissão é sempre um problema: o demitido fica furioso, vai trabalhar na rede concorrente e pode exigir na Justiça indenizações vultosas, quase sempre com sucesso. Daí, a genialidade da ideia para se livrar dos velhos funcionários. Foi o que tentaram com o José Raimundo, repórter de meia idade, barba e cabelos grisalhos, incumbindo-o de fazer matéria durante vários dias na Chapada Diamantina, região lindíssima no centro da Bahia.

Caminhadas de várias horas durante vários dias, trilhas perigosíssimas, jararacas das mais venenosas, calor infernal, escaladas próprias para alpinistas profissionais, tudo terminando com uma “deliciosa” moqueca de jaca. No duro, mesmo: moqueca feita com o fruto da jaqueira. Vi o programa numa tarde de sábado, fumando belo Cohiba, e até agora não sei como o repórter resistiu. As trilhas e as escaladas foram feitas para atletas de 20 anos e a moqueca de jaca é pavorosa em qualquer idade.

Nem se diga que a tentativa de homicídio foi a primeira, porque a mesmíssima rede tentou matar o repórter Ernesto Paglia há dois meses, quando o incumbiu de passar cinco dias acampado na Ilha Queimada Grande, a 35 quilômetros do litoral paulista. Cinco dias acampado numa ilha soam como férias, salvo na Queimada Grande, onde há milhares de jararacas-ilhoas, a Bothrops insularis, serpente sui generis adaptada à vida arborícola e semi-arborícola, cujo veneno é estudado pelo Instituto Butantã, mas seu antídoto é pouco fabricado pois a serpente só existe na pequena ilha, na qual, em rigor, só os pesquisadores podem desembarcar: eles, o Paglia e um heroico cameraman. Veneno poderosíssimo, que mata a pessoa em duas horas pela falência geral dos órgãos. E dizer que o Paglia foi eleito pelos telespectadores, numa enquete feita pela Globo há cerca de 20 anos, o mais admirado repórter da rede.

Se dispensado, passaria a trabalhar para a concorrência arrastando com ele milhões de admiradores. Picado pela Bothrops insularis, renderia outra matéria e sepultamento concorridíssimo: se há coisa que brasileiro adora é velório de celebridade.

Amor
“Se for boa como é feia, deve ser ótima cronista” foi o comentário cruel de um jovem jornalista, quando informado de que Martha Medeiros passaria a escrever no seu jornal. Acontece que a gaúcha nascida em 1961, casada, mãe de duas filhas, nada tem de feia e é realmente boa cronista, autora de mais de 20 livros de poesias, crônicas, peças de teatro e um guia de viagem ao Chile, onde morou com o publicitário Luiz Telmo de Oliveira Ramos, seu marido e senhor.

Em outubro, Martha publicou na revista do O Globo uma crônica sobre o amor, texto filosófico, que não me cabe analisar ou resumir, mas me permite perguntar ao leitor: existe sexo sem amor? Não me refiro ao sexo profissional de garotas e garotos de programa, dos “atores” dos filmes pornográficos (existe a indústria do filme pornô) originalíssimos, Playboy, Sexy Hot, For Man (adult male human), este último sem incluir mulher (female adult), estrelado somente por cidadãos musculosos e travestis providos de aparelhos reprodutores externos.

Quando pergunto se pode existir sexo sem amor me refiro somente ao macho e à fêmea da espécie, cavalheiro e dama normais, que se encontram regular e frequentemente para transar continuadas vezes, sem que exista amor dele por ela ou dela por ele. Pergunto e respondo: existe. Deve ser qualquer coisa relacionada com o olfato, até porque dispensa muitos banhos e me lembra frase de amigo que enricou no boom da bolsa de 70 e sumiu do mapa: “Lavou demais, tem gosto de cotovelo”.

Psicanalista lacaniano muito famoso no Rio d’antanho, US$ 200 por sessão que às vezes durava cinco minutos, me disse que Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981), seu guru, sustentava a tese de que não existem relações sexuais, o que significa dizer que as pessoas se “relacionam” consigo mesmas. De repente, o sexo sem amor se enquadra na teoria lacaniana. Resta explicar por que só funciona com alguns casais não necessariamente casados, muito antes pelo contrário, aliás.

O mundo é uma bola
No dia 16 de novembro de 1908, como aprendi na Wikipédia, o médium Zélio Fernandino de Moraes incorporou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, dando início ao Culto de Umbanda, religião nascida no Rio de Janeiro. Originalmente, congeminava elementos espíritas e bantos, estes já plasmados sobre elementos jeje-iorubas, mas hoje se apresenta segmentada em variados cultos caracterizados por influências muito diversas: indigenistas, catolicistas, esotéricas, cabalísticas etc.

Em 1945, fundação da Unesco. Vira e mexe falo da fundação da Unesco, sinal de que foi mesmo fundada. Em 1980, Louis Althusser, filósofo francês, estrangula sua mulher. Houve quem achasse que Louis teve um surto psicótico, mas há que tomar todo o cuidado com os filósofos, sobretudo com aquele bagulho que azurra, rebusna, orneja como filósofa petista. Bons, mesmo, são os philosophos que não estrangulam suas companheiras e nunca acreditaram no PT.

Ruminanças
“Não se corrige a quem se enforca, corrigem-se os outros pelo seu exemplo” (Montaigne, 1533-1592).

EM DIA COM A PSICANáLISE » Simplesmente viver

Regina Teixeira da Costa - reginacosta@uai.com.br
Estado de Minas: 16/11/2014 



É tão comum atualmente as pessoas se queixarem da falta de tempo, que, às vezes, me pergunto, mesmo sabendo a resposta, se o tempo agora passa mais rápido que antes. Todo mundo corre tanto e nem sempre chega a algum lugar. Às vezes, a correria é mesmo para não chegar.

O tempo é um problema. Talvez o maior de todos, porque acaba com tudo e com a gente também. E pensar nisso é angustiante e insuportável, porém, tratando-se de alguma coisa inegável, é impossível nunca pensar sobre.

O mal-estar existencial que todo ser falante experimenta em algum grau deve-se justamente ao fato de a vida andar nos trilhos da morte. Nosso horizonte é finito.

Por onde quer que andemos neste mundo, o destino final está traçado, e é inegociável. Então, para continuar a vida, é preciso deixar de lado essa certeza, caso contrário, ficaríamos paralisados, pensando que, se é assim, para que tanta luta? A resposta não é difícil, para sobreviver e até lá não temos escolha: é uma luta. E se bem lutada vale a pena.

A questão da falta de tempo constante se deve aos excessos e a um estilo de vida que adotamos nos tempos da pós-modernidade. Para estarmos atualizados, precisamos lidar com muita informação, um excesso de estímulos constantes e uma demanda que nos pressiona constantemente para um mais ainda.

Uma demanda tão grande e uma promessa de felicidade total que nos seduz. Somos desejantes e a estrutura do desejo é querer sempre o que falta. E sempre haverá falta, no melhor dos casos, pois ela nos faz continuar e desejar. Assim, basta que nos apontem alguma coisa para nos completar, para suspender o mal-estar, e a tendência do ingênuo é cair de cabeça... sem pensar.

É muito fácil deixar-se seduzir pelo mercado de ofertas. Em caso de querermos abraçar o mundo, atender a todos os convites, estar em todos os lugares, comprar tantas novidades e coisas lindas, embarcar em todas as viagens e fazer tudo o que a vontade caprichosa manda e viver sem perder nada, aí, nesses casos muito comuns, a vida é curta mesmo.

Por outro lado, as escolhas produzem a perda. Não as fazendo, ficamos em cima do muro, paralisados. E querendo tudo ficamos no excesso, que é impossível de realizar. E esse excesso é marca de nosso tempo. Excesso de consumo, de trabalho, de entretenimento, de obrigações, informações, malhação, viagens, alimentação, de agradar e atender a todos, das redes sociais como estímulo onipresente. Vivemos no tempo da oferta, do mercado capitalista que não para de funcionar nunca.

E esse excesso é vivido como ansiedade, sem que nos demos conta de que a ansiedade é gerada por ele. Por querermos coisas demais, por um resto de insatisfação causado pela perda ao fazer um recorte a nosso modo. Pensamos na perda de não poder experimentar de tudo que nos é oferecido, passando ao sofrimento de sempre estarmos atrasados, em falta, em dívida... Compramos o gato de olho no peixe.

E quando sobra tempo, ficamos incomodados sem saber ficar à toa. Mesmo porque a TV ou as infindáveis séries do Netflix estão aí para garantir nossa ocupação. Parar pra pensar... nem pensar! Claro que um pouco de tudo é bom, mas não a ponto de não olhar o céu, as nuvens passando, respirar fundo calmamente e aceitar que a vida é breve e, por isso mesmo, deveria ser vivida com mais gosto, paciência e menor pressa. E menos coisas!

Acho que o segredo são cortes e costuras. Reduzir os excessos cirurgicamente por se tratarem de um tipo de gozo, um gozo do pior. Um gozo mortífero que nos alucina o ritmo tornando a vida um desvario alienado.

Diferente do prazer é uma aflição continuada que não passa, porque estamos sempre sobrecarregados de demandas para atender, sem tempo para o sossego, o pensar, o contemplar. Sem poder dizer a palavrinha mágica: não. Sem simplesmente viver alguns momentos, sem compromisso, sem compras, sem obrigatoriedades e exigências. Simplesmente viver.  

A história perde a batalha

CIÊNCIA » A história perde a batalha Estudo de imagens mostra que cinco dos seis patrimônios mundiais da humanidade na Síria foram severamente danificados pela guerra civil no país

Paloma Oliveto
Estado de Minas: 16/11/2014



Aleppo, uma das mais antigas cidades ainda habitadas pela humanidade, é uma das mais atingidas pela guerra: construções de 4 mil anos destruídas  (Karam Al-Masri/AFP)
Aleppo, uma das mais antigas cidades ainda habitadas pela humanidade, é uma das mais atingidas pela guerra: construções de 4 mil anos destruídas


Uma guerra que já ceifou quase 200 mil pessoas também é responsável por varrer do mapa tesouros arquitetônicos e históricos que pertencem a toda a humanidade. Imagens de satélite em alta resolução analisadas por cientistas da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), organização não governamental e sem vínculos políticos, revelou que somente um dos seis patrimônios mundiais localizados na Síria não foi seriamente danificado pelo sangrento conflito civil, em curso desde 2011. Algumas estruturas históricas de locais como Aleppo, uma das mais antigas cidades do mundo, foram reduzidas a pó.

A análise da AAAS é a primeira a se aprofundar sobre a extensão dos danos aos patrimônios culturais sírios e foi realizada em conjunto pela Universidade da Pensilvânia, pelo Instituto Smithsonian e pela Força-Tarefa do Patrimônio Sírio. As imagens feitas do espaço comprovam o que pesquisadores já haviam constatado em visitas in loco a alguns dos sítios. Susan Wolfinbarger, diretora de Tecnologias Geoespaciais e do Projeto Direitos Humanos da AAAS, diz que apenas a Cidade Antiga de Damasco (parte da capital que inclui o mercado e os bairros muçulmano, cristão e judeu) parece não ter sofrido avarias. Estruturas históricas de outros cinco locais, incluindo mesquitas, escolas e prédios governamentais e civis, foram afetadas e, em alguns casos, destruídas. “A cidade antiga, porém, também pode ter sofrido danos que não foram capturados pelas imagens por satélite”, observa Wolfinbarger.

Um dos locais mais abalados pela guerra civil é Aleppo, cidade que não sai do noticiário internacional por ser a segunda maior do país e ter uma posição estratégica no mapa sírio, sendo um ponto de passagem para a Turquia. Fundado no segundo milênio antes de Cristo, esse é um dos mais antigos centros urbanos ainda habitados da humanidade e, até 2011, encantava turistas com seus bazares, mesquitas e igrejas cristãs, além de um muro finalizado no século 12, mas iniciado muito tempo antes: há pelo menos 4 mil anos.

Tudo isso, agora, é escombro. “Nas imagens de satélite, a destruição massiva é óbvia por toda a cidade, especialmente na Cidade Antiga, Patrimônio Mundial da Humanidade”, lamenta Wolfinbarger. Entre as estruturas destruídas, estão mesquitas e madrasas (escolas do Corão), incluindo a Grande Mesquita, uma belíssima edificação fundada em 715. O majestoso Hotel Carlton, o caravançarai (estabelecimento típico de hospedagem do Oriente Médio) Khan Qurt Bey, a Mesquita de Khusruwiye e o mercado Suq al-Madina, entre muitos outros prédios e construções históricas ao norte e ao sul da citadela, também sucumbiram.

As imagens capturadas em 2011 e 2014 revelam danos severos particularmente na Grande Mesquita, no mercado e na área adjacente. O minarete do templo, construído por volta do ano 1000, foi abaixo, assim como o teto da mesquita. É possível visualizar também duas crateras na parede leste. Embora as piores avarias sejam vistas ao sul, a destruição também é evidente na parte alta da cidade, uma área que concentra edificações que vão do período mamluk ao otomano (séculos 13 a 19).

Extensão Nos outros Patrimônios Mundiais da Humanidade localizados na Síria — Cidade Antiga de Bosra, parte antiga de Palmyra, antigas vilas do Nordeste sírio e castelos de Crac des Chevaliers e Qal’at Salah El-Din — houve danos diversos. Um antigo anfiteatro romano de Bosra foi atingido por morteiros, e em sítios arqueológicos anteriormente intocados os militares abriram estradas, cortando, inclusive, o centro de uma necrópole romana em Palmyra. Segundo a Unesco, Palmyra, localizada no deserto ao norte de Damasco, “contém ruínas monumentais de uma grande cidade que já foi um dos mais importantes centros culturais do mundo antigo”, com influência da arte greco-romana e persa.

Já no castelo de Crac des Chevaliers, um dos mais conhecidos exemplos de uma fortificação das Cruzadas, as imagens mostram danos estruturais moderados, como um talho de 6m na torre sul e crateras no solo. No vilarejo de Jabel Barisha, um dos mais antigos da Síria, o satélite revelou três fortes militares novos, construídos depois do início da guerra, sendo dois dentro dos limites do parque arqueológico. “Dos nossos contatos e fontes na Síria, sabíamos que havia danos aos patrimônios mundiais”, diz Brian I. Daniels, diretor de Pesquisa e Programas do Centro de Patrimônio Cultural do Museu da Universidade da Pensilvânia. “Mas esses dados nos surpreenderam por revelarem exatamente o quão extensiva foi a destruição.”

Corine Wegener, do Instituto Smithsonian, acredita ser preciso organizar um grupo internacional de pesquisadores para estudar os danos e investigar formas de intervir na Síria. “Há esperança, e ela reside em nossos colegas sírios, porque eles são os cuidadores desses locais, sabem do valor de preservar e protegê-los para futuras gerações”, diz Wegener. “O que eles precisam de seus colegas estrangeiros é alguma ajuda para fazer isso — treinamento, materiais e outros suportes da arena internacional. É possível mitigar e prevenir danos para o patrimônio cultural mesmo no meio de conflitos.”


Militar observa danos causados na citadela de Crac des Chevaliers, um dos patrimônios da humanidade (Joseph Eid/AFP - 4/9/12)
Militar observa danos causados na citadela de Crac des Chevaliers, um dos patrimônios da humanidade


Estado Islâmico depreda a memória

A situação do Iraque também preocupa a Unesco. Desde junho, a antiga Babilônia vem sendo depredada pelo grupo Estado Islâmico, que assumiu o controle de várias faixas do território iraquiano, destruindo templos, igrejas e manuscritos em Mossul, Tikrit e outras localidades do país, por considerá-los idolátricos ou heréticos. Os jihadistas também fizeram escavações em sítios arqueológicos para vender objetos ao exterior. Funcionários de inteligência calculam que o grupo tenha obtido US$ 36 milhões vendendo artefatos roubados.

A diretora-geral da Unesco, Irinia Bokova, condenou no domingo passado, em Bagdá, a destruição “bárbara” do patrimônio cultural. “O Iraque possui milhares de templos, edifícios, sítios arqueológicos, objetos que são um tesouro para toda a humanidade”, disse. “Não podemos aceitar que esse tesouro, essa herança da civilização, seja destruído da forma mais bárbara”, completou. “Temos que agir, não há tempo a perder, porque os extremistas estão tentando apagar a identidade, porque sabem que sem uma identidade não existe memória, não há história. Pensamos que isso é uma aberração, não é aceitável”, insistiu.

Berço da civilização, com uma história que remonta a 5 mil anos, o Iraque é, com o Egito, o país que abriga os mais antigos resquícios da civilização. Bagdá foi a primeira cidade planejada do planeta, onde surgiu a escrita cuneiforme; a irrigação; a biblioteca Casa da Sabedoria, do ano 832 d.C.; e a primeira universidade árabe.