domingo, 24 de março de 2013

Inferno - Dan Brown , Fernanda Abreu e Fabiano Morais

folha de são paulo

IMAGINAÇÃO
prosa, poesia e tradução
Inferno
DAN BROWNFERNANDA ABREUFABIANO MORAISTRADUÇÃOAs lembranças se materializaram lentamente, como bolhas vindo à tona da escuridão de um poço sem fundo.
Uma mulher com o rosto coberto por um véu.
Robert Langdon olhava para ela do outro lado de um rio cujas águas agitadas corriam vermelhas, tingidas de sangue. De frente para ele, na margem oposta, a mulher o encarava, imóvel, solene. Trazia na mão uma faixa azul, uma tainia, que ergueu em homenagem ao mar de cadáveres aos seus pés. O cheiro da morte pairava por toda parte.
Busca, sussurrou a mulher. E encontrarás.
Langdon ouviu as palavras como se ela as tivesse pronunciado dentro de sua cabeça. "Quem é você?", perguntou ele, sem que sua voz produzisse som algum.
O tempo urge, sussurrou ela. Busca e encontrarás.
Langdon deu um passo à frente, em direção ao rio, mas então viu que as águas, além de ensanguentadas, eram profundas demais para que ele as atravessasse. Quando tornou a erguer os olhos para a mulher de véu, os corpos aos seus pés tinham se multiplicado. Eram agora centenas, milhares talvez, alguns ainda vivos, contorcendo-se de agonia, padecendo mortes inimagináveis... consumidos pelo fogo, enterrados em fezes, devorando uns aos outros. Podia ouvir os lamentos humanos ecoarem acima da água.
A mulher se moveu em sua direção com as mãos esguias estendidas, como quem pede ajuda.
"Quem é você?!", gritou Langdon outra vez.
Em resposta, a mulher levou a mão ao rosto e ergueu lentamente o véu. Sua beleza era arrebatadora, porém ela era mais velha do que Langdon imaginara: 60 e poucos anos talvez, altiva e forte, como uma estátua atemporal. Tinha um maxilar anguloso, de aspecto severo, olhos penetrantes e intensos e longos cabelos grisalhos, cujos cachos lhe caíam em cascata sobre os ombros. Um amuleto de lápis-lazúli pendia de seu pescoço - uma serpente solitária enroscada em um bastão.
Langdon teve a sensação de que a conhecia, de que confiava nela. Mas como? Por quê?
Ela então apontou para duas pernas que brotavam da terra, se contorcendo. Aparentemente eram de alguma pobre alma enterrada até a cintura, de cabeça para baixo. Uma letra solitária escrita com lama se destacava na coxa pálida do homem: R.
R?, pensou Langdon, intrigado. R de... Robert? Será que esse... sou eu?
O rosto da mulher nada revelava. Busca e encontrarás, repetiu ela.
Subitamente, ela começou a irradiar uma luz branca... cada vez mais forte. Todo o seu corpo começou a vibrar com intensidade e, então, com um estrondo repentino, ela explodiu em mil faíscas.
Langdon acordou sobressaltado, aos gritos.
Estava sozinho no quarto iluminado. O cheiro pungente de álcool hospitalar pairava no ar. Ali perto bipes de máquina soavam em discreta sintonia com o ritmo de seu coração. Tentou mover o braço direito, mas uma dor lancinante o impediu. Olhou para baixo e viu que um cateter intravenoso repuxava a pele de seu antebraço.
Sua pulsação se acelerou e as máquinas acompanharam o ritmo, passando a emitir bipes mais rápidos.
Onde estou? O que aconteceu?
A nuca de Langdon latejava, uma dor torturante. Com cautela, ele ergueu o braço livre e tocou o couro cabeludo, tentando localizar a origem da dor de cabeça. Sob os cabelos emaranhados, encontrou as extremidades duras de uns dez pontos incrustados de sangue seco.
Fechou os olhos e tentou se lembrar de algum acidente.
Nada. Branco total.
Pense.
Apenas escuridão.
Um homem com roupa cirúrgica entrou apressado, aparentemente alertado pela aceleração dos bipes do monitor cardíaco de Langdon. Tinha barba desgrenhada, bigode cerrado e olhos bondosos que irradiavam uma calma atenciosa por baixo das sobrancelhas revoltas.
- O que... o que houve? - Langdon conseguiu perguntar. - Eu sofri algum acidente?
O barbudo levou um dedo aos lábios e tornou a sair às pressas para chamar alguém no corredor.
Langdon virou a cabeça, mas o movimento fez uma pontada de dor atravessar seu crânio. Respirou fundo várias vezes e esperou a dor passar. Então, com cuidado e de forma metódica, examinou o ambiente estéril ao seu redor.
O quarto de hospital continha uma cama só. Não havia flores. Não havia cartões. Viu as próprias roupas em cima de um balcão próximo ao leito, dobradas dentro de um saco plástico transparente. Estavam cobertas de sangue.
Meu Deus. Deve ter sido grave.
Langdon girou a cabeça bem devagar em direção à janela ao lado da cama. Estava escuro lá fora. Era noite. A única coisa que ele conseguia ver no vidro era o próprio reflexo: um desconhecido abatido, pálido e exausto, ligado a tubos e fios e cercado por equipamentos hospitalares.
Ouviu vozes se aproximando pelo corredor e tornou a olhar para o quarto. O médico voltou, dessa vez acompanhado por uma mulher.
Ela parecia ter 30 e poucos anos. Usava roupa cirúrgica azul e tinha os cabelos louros presos em um rabo de cavalo grosso que balançava ao ritmo de seus passos.
- Sou a doutora Sienna Brooks - apresentou-se, abrindo um sorriso para Langdon ao entrar. - Vou trabalhar com o dr. Marconi hoje à noite.
Langdon assentiu com um débil meneio de cabeça.
Alta e graciosa, a dra. Brooks se movia com a desenvoltura assertiva de uma atleta. Mesmo com aquela roupa folgada, conservava uma elegância esguia. Por mais que Langdon não percebesse nenhum traço de maquiagem, sua pele tinha uma suavidade incomum, a única mácula era uma pinta minúscula logo acima dos lábios. Os olhos, de um tom castanho suave, pareciam estranhamente penetrantes, como se houvessem testemunhado experiências de rara profundidade para alguém tão jovem.
- O dr. Marconi não fala inglês muito bem, então me pediu que preenchesse sua ficha de admissão - disse ela, sentando-se ao seu lado. Voltou a sorrir.
- Obrigado.
- Certo - começou ela, assumindo um tom de voz sério. - Qual é o seu nome?
Ele precisou de alguns instantes.
- Robert... Langdon.
Ela apontou uma lanterninha para seus olhos.
- Profissão?
Ele respondeu ainda mais devagar:
- Professor universitário. História da Arte... e Simbologia. Em Harvard.
A dra. Brooks baixou a lanterna, mostrando-se surpresa. O médico de sobrancelhas revoltas pareceu igualmente espantado.
- O senhor é americano?
Langdon a encarou com um olhar intrigado.
- É só que... - Ela hesitou. - O senhor não tinha documento nenhum quando chegou. Como estava de paletó de tweed da Harris e sapatos sociais, imaginamos que fosse britânico.
- Eu sou americano - assegurou-lhe Langdon, exausto demais para explicar sua preferência por alfaiataria de qualidade.
- Está sentindo alguma dor?
- Na cabeça - respondeu Langdon, o latejar em seu crânio agravado pelo brilho forte da lanterna. Felizmente, a médica a guardou no bolso e pegou seu pulso, para medir os batimentos. - O senhor acordou gritando - falou. - Consegue se lembrar por quê?
Langdon voltou a ter um lampejo da estranha visão da mulher de véu, cercada de corpos em agonia. Busca e encontrarás.
- Tive um pesadelo.
- Sobre o quê?
Langdon lhe contou.
A dra. Brooks manteve uma expressão neutra enquanto fazia anotações numa prancheta.
- Alguma ideia do que possa ter provocado uma visão tão apavorante?
Langdon vasculhou a memória e então balançou a cabeça, que latejou em protesto.
- Muito bem, Sr. Langdon - disse ela, sem parar de escrever -, agora vou fazer alguma perguntas de rotina. Que dia da semana é hoje?
Langdon pensou por alguns instantes.
- Sábado. Eu me lembro de estar andando pelo campus hoje mais cedo... de participar de um simpósio à tarde e depois... acho que essa é a última coisa de que me lembro. Eu levei um tombo?
- Já vamos falar sobre isso. O senhor sabe onde está?
Langdon deu seu melhor palpite:
- No Hospital Geral de Massachusetts?
A dra. Brooks fez outra anotação.
- Existe alguém para quem devamos telefonar avisando? Mulher? Filhos?
- Ninguém - respondeu Langdon sem precisar pensar.
Sempre gostara da solidão e da independência que sua vida de solteiro lhe oferecia, embora precisasse admitir que, nas condições em que se encontrava, preferiria ter um rosto conhecido ao seu lado.
- Eu poderia telefonar para alguns colegas, mas não vejo necessidade.
Quando a dra. Brooks terminou de medir o pulso de Langdon, o médico mais velho se aproximou. Alisando as sobrancelhas revoltas, sacou um pequeno gravador do bolso e o mostrou à colega. Ela assentiu, indicando que entendera, e voltou a encarar o paciente.
- Sr. Langdon, quando chegou hoje mais cedo, o senhor estava murmurando repetidamente uma coisa.
Ela lançou um olhar ao dr. Marconi, que ergueu o gravador digital e apertou um botão.
Uma gravação começou a tocar e Langdon ouviu a própria voz grogue balbuciar repetidas vezes a mesma frase: "Ve... sorry. Ve... sorry."
- Me parece - continuou a doutora - que o senhor estava dizendo "Very sorry. Very sorry".
Langdon concordou, embora não se lembrasse de nada daquilo.
A dra. Brooks o fitou com um olhar tão intenso que chegava a ser perturbador.
- Tem alguma ideia de por que diria isso? O que o senhor lamenta tanto?
Enquanto se esforçava para tentar lembrar, Langdon tornou a ver a mulher de rosto velado parada à margem de um rio vermelho-sangue, cercada de corpos. Sentiu outra vez o fedor da morte.

    Missão "impossível" - Rodrigo Mindlin Loeb

    folha de são paulo

    ARQUIVO ABERTO
    memórias que viram histórias
    São Paulo, 1999
    RODRIGO MINDLIN LOEBEra uma das inúmeras manhãs de sol, céu azul sobre os morros que acompanham o Vale do Paraíba. Na Barra Bonita, após um café da manhã finalizado com uma sugestão de meu avô Juca (como o conheci), uma gemada na xícara com gotas de café, cada um foi vestir seu traje de sol e andamos pelo gramado.
    À nossa frente, a frondosa seringueira, com sua grande copa. A piscina azul à direita, palco de muita diversão, com o totem de madeira esculpido por Adão Pinheiro, artista de Olinda.
    No meio do trajeto paramos para dar um oi a minha avó Guita, que tomava sol, maiô e óculos escuros. Nós íamos mais adiante, depois da seringueira, atrás da casa de brincar de madeira e telhado de sapé.
    Caminhamos, meu avô conversando comigo (que não tinha chegado nem perto de completar a minha primeira década vivida). Ia pensando em como aquilo era livre, leve, divertido, tomar um banho de sol nu. Cada um deitado de um lado, meu avô lendo o jornal, logo uma curta soneca, eu mergulhado em minhas reflexões e viagens. Silêncio.
    Vi sempre nos meus avós, Guita e Juca, essa liberdade em relação à vida, às pessoas, ao convívio e à intensidade com que atravessavam as décadas que se seguiram, ao mesmo tempo em que eu atravessava as minhas primeiras. Essa experiência me permitiu sentir que as afinidades, as amizades, as possibilidades são atemporais, com a mesma liberdade. Sempre as pessoas, de fato acolhidas pelos livros.
    A parede da biblioteca à esquerda, uma estante ocupando tudo, interrompida por dois elementos distintos dos livros, uma lareira revestida de cerâmica "paraíba" marrom, geométrica, e mais à direita, um armário-bar, com os licores, whiskies, o Carpano que Guita adorava tomar com gelo, as pequenas taças de vodca, que ficava no freezer para ganhar viscosidade.
    Os sofás, as poltronas de Guita e José, as poltronas Mole, de onde pude observar as muitas pessoas que passaram pela casa de meus avós.
    A biblioteca já se expandia, quando comecei a frequentá-la, para um pavilhão no jardim, de dois andares, mezanino com um vazio em metade da planta e uma passarela metálica em L acompanhando e acessando as estantes repletas de livros.
    Um pavilhão lindamente desenhado pelo Flávio, arquiteto e filho de tia Esther, irmã tão querida de meu avô Juca. Anos depois, na década de 80, Flávio desenhou outro pavilhão iria dominar o jardim aonde jogávamos futebol sempre que a oportunidade se apresentava.
    A biblioteca continuou crescendo, ganhou territórios do outro lado da rua, entre eles um apartamento que pude algumas vezes visitar para escolher livros que me interessassem e que não iriam permanecer no corpo da biblioteca.
    No final de 1999, recém-retornado de Londres, depois de dois anos de pós-graduação, fui convidado pelo meu avô para uma conversa.
    Na saleta anexa à sala de jantar, com a estante de Proust, a poltrona de descanso, nos sentamos.
    O tom era ao mesmo tempo empolgado e solene: "Vamos doar a coleção Brasiliana da Biblioteca à Universidade de São Paulo. A Fundação Lampadia/Vitae decidiu dedicar os seus últimos recursos financeiros para a construção de uma sede, e com chave de ouro, encerrar suas atividades. A USP poderá ceder o uso de um terreno e nós iremos buscar recursos para viabilizar a construção e a operação para os 99 anos seguintes a sua instalação, pois no centésimo ano, o patrimônio será incorporado pela Universidade de São Paulo. Queremos que o projeto de arquitetura seja feito por você, pelo Eduardo de Almeida e pelo Flávio".
    Entendi a empolgação e o tom solene, primeiro, que sonho incrível!, depois, que missão quase "impossível"!
    Mais de uma década se passou, muitos momentos de silêncio ao lado de meu avô Juca, como aquele dos banhos de sol. Nasceram Mhira e Rhavi, meus filhos. Morreram Arnaldo, Esther, Guita e em seguida José, István, meu vital sogro Gil.
    Nunca duvidei. Inaugura a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, patrimônio público, cheia de liberdade, leveza e alegria, cheia de silêncio.

      Literatura própria Como desoxidar o português macaense - RÉGIS BONVICINO

      folha de são paulo

      DIÁRIO DE MACAU
      o mapa da cultura
      A língua portuguesa em Macau é hoje uma realidade meramente institucional da administração pública.
      Embora tenha sido colônia de Portugal por mais de 400 anos, Macau -que desde 1999 é região administrativa especial da China, sob gestão conjunta, em termos jurídicos, de Pequim e de Lisboa até 2049 (e sob gestão chinesa na prática, pois seus principais administradores são nomeados pelo governo chinês)- dá ao português apenas um status oficial.
      Em Macau, o idioma limita-se às placas e aos nomes das ruas, travessas e becos e nos letreiros de lojas. Há, no máximo, 8.000 de seus falantes e, entre eles, poucos são chineses, em uma população de 600 mil habitantes.
      Mas na abertura da 2ª edição do Festival Literário de Macau, realizado entre 10 e 16 deste mês, falou-se um bocadinho em português -com seus mais variados sotaques.
      Um debate sobre as perspectivas dos escritores em um mundo globalizado trouxe a fala crítica de Luis Cardoso, do Timor-Leste, que classificou o atual estágio de internacionalização da literatura como mero "fait divers", fato pitoresco, reafirmando, em contrapartida, sua importância para a vida cultural de cada país.
      Também participaram desse debate e de outras mesas do encontro José Eduardo Agualusa (Angola), Bi Feiyu (China continental), Valter Hugo Mãe (Portugal), a colunista da Folha Vanessa Barbara e Mauro Munhoz, diretor da Flip.
      A abertura do festival deu-se no edifício do Centro de Ciência, inaugurado em 2010. O prédio, um conjunto de 14 unidades sob a forma de uma espiral ascendente, à beira-mar, é assinado pelo arquiteto sino-americano I.M.Pei, autor da pirâmide do Museu do Louvre.
      CONTRAPONTO AOS CASSINOS
      O festival, dirigido pelo jornalista português Ricardo Pinto, constitui-se em uma tentativa de criar uma literatura macaense de língua portuguesa, e de ser, ao mesmo tempo, um contraponto ao perfil comercial da cidade, que recebe, segundo dados oficiais, 28 milhões de turistas por ano, vindos, sobretudo, da China continental.
      Os cassinos de Macau são os maiores do mundo, superando os de Las Vegas, nos EUA, em termos de faturamento. No hotel onde estive havia um deles, aberto 24 horas. Metade dos frequentadores é composta por jovens. Para os jovens chineses, ir a um cassino equivale a ir a um grande show de rock.
      O festival foi pensado para que houvesse articulação entre o evento e a vida local. Por isso, realizou-se uma feira de livros, além de palestras em escolas. Um dos locais mais importantes da cidade é a Livraria Portuguesa, de rua, de propriedade do governo chinês, mas sob administração do próprio Ricardo Pinto.
      CAMÕES E PESSANHA
      A lenda repete que Luiz de Camões (c. 1524-80) escreveu, em Macau, cantos de "Os Lusíadas". Em um deles, Camões anota a existência da Grande Muralha da China, antes mesmo dos mapas de cartografia. Em outro, ele descreve o comércio da Nau do Trato, prata fina e especiaria, de Macau.
      No Jardim dos Pombos Brancos, no centro da cidade, próximo às ruínas da Igreja de São Paulo, onde ele residiu, segundo essa mesma lenda, em uma gruta, há hoje uma estátua do autor de "Os Lusíadas".
      Diante de sua estátua, percebe-se a importância simbólica absoluta de Macau para a língua. No Cemitério de São Miguel, jaz o túmulo de outro grande poeta, Camilo Pessanha (1867-1926), que foi juiz de direito em Macau, onde escreveu "Clepsidra" (1920) e onde morreu.
      Sua casa não existe mais. No local se encontra hoje um dos prédios do banco HSBC, no Leal Senado, praça central da cidade. Se a visita à estátua de Camões remete ao nascimento fabuloso da língua, a visita à campa de Pessanha registra seu declínio: "Floriram por engano as rosas bravas /No Inverno...". O português existe quase por engano nesta península.
      REMINISCÊNCIA CHINESA
      O Jardim de Lou Lim Ieoc é o único jardim em estilo Suzhou. Imita a natureza (água, terra, fogo e ar). Suas pedras sofrem o desgaste do tempo e adquirem aspectos escultóricos fabulares. Há lagos com carpas e flores de lótus. Há uma única trilha, em forma de serpente, por onde se caminha, porque os "maus espíritos se deslocam em linha reta". Ele é a maior reminiscência tipicamente chinesa em Macau.
      O Festival Literário tenta tornar o português uma língua viva de novo, para que ela, ao contrário deste Jardim, não permaneça na condição de mera recordação, bela, mas decorativa e isolada.
      Régis Bonvicino viajou a convite do Festival Literário de Macau.

        A verdade e o recalque

        folha de são paulo

        Os crimes do Estado se repetem como farsa
        MARIA RITA KEHLQue tudo "continue assim", isto é a catástrofe.
        Walter Benjamin
        Hoje se comemora o Dia Internacional do Direito à Verdade. A data foi escolhida pela ONU em dezembro de 2010 para lembrar o assassinato do defensor de direitos humanos em El Salvador, monsenhor Oscar Romero, em 24 de março de 1980. A relação estabelecida pela resolução da ONU entre dignidade humana e direito à verdade fez com que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) decidisse comemorá-la nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
        "A verdade liberta", proclamou ao telefone meu amigo, o psicoterapeuta Nelson Motta Mello, ao saudar a formação da CNV, em maio de 2012. Poupo o leitor do debate sobre o estatuto ontológico da verdade, que nem Cristo (nem Lacan) respondeu a contento.
        Se não nos é possível estabelecer com precisão o que é a verdade, não há dificuldade em entender os efeitos da sua falta -ou da sua interdição- tanto na vida psíquica quanto na dinâmica social. A psicanálise freudiana poderia ser entendida, "lato sensu", como uma metapsicologia do direito à verdade psíquica.
        Foi no final do século 19, quando a moral da nova classe emergente na Europa impunha o silêncio sobre as representações da vida sexual, que Freud anunciou sua hipótese a respeito do sofrimento histérico: "A histérica sofre de reminiscências". As enigmáticas crises de conversão das histéricas não passavam, para o inventor da psicanálise, de tentativas de dizer com o corpo verdades que estavam impedidas de recordar em pensamento e anunciar na fala.
        O discurso corporal da histeria é composto de fragmentos recalcados de lembranças e/ou fantasias sexuais interditadas, que buscam expressão através do sintoma. Aos poucos, Freud compreendeu que o estatuto da "verdade" de suas pacientes histéricas nem sempre correspondia ao senso comum: o que o tratamento psicanalítico revela são fragmentos da verdade psíquica, cujas conexões com os fatos objetivos da vida passam por caminhos singulares e tortuosos.
        É que o recalcado só pode chegar à consciência através das formações secundárias, que deformam a marca primordial do vivido (inacessível ao próprio sujeito) para se adequar às formas corriqueiras da linguagem. Apesar das dificuldades de interpretação e das limitações da técnica nos primórdios da psicanálise, a possibilidade de expressar a fantasia recalcada revelou que a verdade psíquica é capaz de libertar o neurótico das repetições sintomáticas.
        Em 1914 Freud estabeleceu, em "Recordar, Repetir, Elaborar", uma importante relação entre o esquecimento promovido pelo recalque e a repetição do sintoma neurótico: a compulsão à repetição seria a maneira enviesada que o neurótico encontra para tentar trazer à consciência uma cena, uma fantasia ou um pensamento, recalcado.
        O sintoma seria movido pela compulsão à repetição de um trauma e/ou de um gozo interditado, a cumprir duas funções antagônicas, a de promover um retorno em ato do que foi esquecido e permitir, ao mesmo tempo, um simulacro do prazer proibido. Ao dar vazão ao recalcado, os sintomas constituem o "modo de recordar" encontrado pelo neurótico. Contra a dobradinha patológica esquecimento/sintoma, Freud propôs a elaboração do trauma.
        Tal necessidade de elaboração pode ser observada tanto nas modalidades individuais de retorno do sofrimento psíquico individual quanto nas repetições de fatos violentos e traumáticos que marcam as sociedades governadas com base na supressão da experiência histórica.
        TOTALITARISMO Todos os Estados totalitários se apoiam na supressão do direito à informação. Só assim conseguem silenciar, pelo menos por um tempo, a propagação das violações, dos abusos, das violências contra o cidadão praticadas em "nome da ordem", a revelar que na vida social não há direito perdido que não tenha sido usurpado por alguém. Falta de liberdades, de direitos e de acesso à informação são elementos fundamentais na consolidação do terrorismo de Estado.
        Se o estabelecimento da verdade histórica, nas democracias, está sujeito a permanente debate, o direito de acesso a ela deve ser incontestável. A garantia do direito à verdade opõe-se à imposição de uma versão monolítica, característica dos regimes autoritários de todos os matizes. Ela exige a restauração da memória social, estabelecida no debate cotidiano e sempre exposta a reformulações, a depender das novas evidências trazidas à luz por ativistas políticos e pesquisadores.
        Este é o estatuto da verdade buscada pela CNV: além da revelação objetiva dos crimes praticados por agentes do Estado contra militantes políticos, estudantes, camponeses, indígenas, jornalistas, professores, cientistas, artistas e tantos outros -cuja prova está documentada em arquivos públicos, muitos deles considerados ultrassecretos-, o relatório final produzido pela comissão pode restaurar um importante capítulo da experiência política brasileira.
        A verdade social não é ponto de chegada, é processo. Sua elaboração depende do acesso a informações, mesmo as mais tenebrosas, mesmo aquelas capazes de desestabilizar o poder e que, por isso, se convencionou que deveriam ser mantidas em segredo. Se o reconhecimento dos fatos que um dia se tentou apagar não costuma trazer boas notícias, em contrapartida a supressão da verdade histórica produz sintomas sociais gravíssimos -a começar pela repetição patológica de erros e crimes passados.
        Melhor encarar as velhas más notícias e transformar a vivência bruta em experiência coletiva, no sentido proposto por Walter Benjamin. Para isso é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada, capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em experiência coletiva. "Para que se (re)conheça, para que nunca mais aconteça."
        Freud poderia ter lido Marx a respeito das repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história. Se o sintoma neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintomas sociais. O Brasil ainda sofre com os efeitos da falta de acesso à verdade dos períodos vergonhosos de sua história, desde a escravidão até a ditadura militar. O modo como a ditadura negociou sua dissolução com a sociedade brasileira -uma negociação entre quem tinha as armas na mão e quem até então estivera sob a mira delas- funcionou como um verdadeiro convite ao esquecimento.
        O apagamento rápido (e forçado) dos crimes da ditadura lembra os efeitos perversos do esquecimento dos crimes da escravidão. No segundo caso, a falta de reconhecimento do estatuto criminoso de três séculos de escravidão impediu a promoção de políticas de reparação às populações afrodescendentes recém-libertas do cativeiro. Os sintomas do esquecimento estão aí até hoje, na perpetuação muitas vezes impune do trabalho escravo em fábricas e fazendas, a lembrar a advertência de Nabuco de que a prática continuada da escravidão perverteria a elite brasileira.
        Não é absurdo pensar que o Brasil, país do esquecimento fácil, do perdão concedido antes por covardia e complacência do que por efeito de rigorosas negociações, seja um país incapaz de superar sua violência social originária. Os sintomas da brutalidade consentida ressurgem nas execuções policiais que vitimam jovens nas periferias de São Paulo, nas favelas do Rio e em todas as outras grandes cidades brasileiras. Ressurge nos assassinatos de defensores da floresta e pequenos agricultores, por jagunços e policiais a mando de grandes grileiros de terras.
        E se repete como farsa em episódios recentes, como o da bomba lançada no dia 7 contra a sede da OAB do Rio de Janeiro, acompanhada das mesmas ameaças sinistras com que agentes da repressão tentaram intimidar os que articulavam, na década de 1980, a volta do Estado de Direito. Ou nas acusações de militares da reserva contra investigações conduzidas pela CNV, como se fosse o trabalho da comissão, e não os abusos cometidos no passado, o que mancha a imagem das Forças Armadas.
        Ou ainda em artigos como os de Contardo Calligaris, colunista da Folha, que conjeturou sobre a suposta conveniência de torturar alguém, sem levar em consideração que a comunidade internacional já decidiu que a tortura é crime de lesa-humanidade.
        ARTE Só a arte nomeia os crimes silenciados no Brasil. As instalações de Cildo Meireles e Nuno Ramos. O teatro da Companhia do Latão, d'Opovoempé e outros grupos corajosos. O rap de Mano Brown e outros manos; faixas dos últimos CDs de Caetano Veloso e de Chico Buarque. Os filmes de Sérgio Bianchi, Rubens Rewald e, recentemente, do pernambucano Kleber Mendonça Filho.
        Muitos comentários elogiosos a "O Som ao Redor" se referiram ao contato inevitável que a vida
        urbana promove com os ruídos emitidos pelos vizinhos, que nem as muralhas protetoras dos grandes condomínios conseguem isolar. Sim, os barulhos inconvenientes da vida na cidade geram tensão e desconforto num filme de enredo aparentemente banal.
        Mas essa não é a razão da grandeza do filme, que a crítica foi unânime em elogiar. Poucos críticos compreenderam o tema do retorno do recalcado, revelado na cena final, em que os dois seguranças da rua são chamados cordialmente pelo patriarca para executar um desafeto na fazenda -à antiga maneira dos senhores de engenho- e, na contramão da lógica da dominação cordial, revelam ter vindo cobrar o antigo assassinato de seu pai ("por causa de uma cerca...").
        A última cena ilumina as razões da inclusão de uma foto de representantes das ligas camponesas, organizada nas décadas de 50 e 60 e dizimadas pela ditadura, inserida entre as imagens que compõem a abertura do filme. No último segundo do filme, um estampido forte -foi tiro ou o rojão da moça insone contra o cachorro do vizinho?- vem revelar a verdadeira natureza do incômodo som ao redor, metáfora de velhas brutalidades, jamais elaboradas ou reparadas, que estão na origem da história da luta pela terra e na base do eterno poder do mais forte no Brasil.

          À espera dos bárbaros

          folha de são paulo

          País permanece sem estratégia antiterror
          MÁRIO CHIMANOVITCHRESUMO Palco de importantes eventos internacionais nos próximos anos, o Brasil ainda não possui legislação de combate ao terrorismo. Entre a vulnerabilidade e o risco de criminalizar movimentos sociais, governo e Congresso permanecem inertes, sem priorizar tramitação de projetos e cooperação internacional.
          Prestes a sediar importantes eventos internacionais, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, o Brasil ainda não tem um projeto de lei que defina o combate ao terrorismo. Especialistas ouvidos sobre a questão, que pedem para não ser identificados, alertam que o Brasil, muito embora mantenha neutralidade em conflitos internacionais - sobretudo no Oriente Médio -, nem por isso pode se considerar imune a atentados terroristas que tenham como alvo não o Brasil propriamente, mas qualquer uma das delegações que aqui se fizerem representar.
          Setores de Inteligência e Segurança do governo e das Forças Armadas manifestam preocupação com a falta de tempo para a elaboração da legislação. Há hoje seis projetos tratando do tema em análise na Câmara dos Deputados. O mais antigo é de 1991, e o mais recente foi apresentado em 2012.
          Na prática, nada tipifica hoje o terrorismo no nosso Código Penal. O único instrumento legal disponível é herança do regime militar: a Lei de Segurança Nacional (LSN), que por pouco não foi aplicada pelo Ministério Público Federal para denunciar o MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra) por invadir e depredar a Câmara em 6 de junho de 2006.
          O assunto, apesar da urgência, não é livre de controvérsias, mas é pleno de evasivas e reticências. Abertamente, ninguém no governo federal fala sobre o tema. Nos bastidores, os especialistas relembram que a Argentina vivia situação similar na década de 90, quando foi alvo de dois atentados a bomba que atingiram a embaixada de Israel em Buenos Aires e a AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina), provocando mais de uma centena de mortos.
          O projeto de lei mais recente (PL 4674/12) é de autoria do deputado Walter Feldman (PSDB-SP). Define como terrorismo crimes que lesem ou exponham perigos à vida, à integridade física, à liberdade de locomoção ou ao patrimônio das pessoas. Atentados contra aviões, embarcações, plataformas em alto-mar e materiais nucleares também serão considerados atos de terror, assim como seu financiamento e preparação.
          "Infelizmente, o instrumento mais avançado de que dispomos ainda é a LSN. Mas as questões político-ideológicas complicaram o debate da questão", diz Feldman. "Hoje vivemos sob um estado democrático, e nada mais justo do que nos livrarmos desse entulho autoritário e elaborarmos um instrumento que assegure a segurança e a tranquilidade de que a Nação necessitará, notadamente como hospedeira de grandes eventos internacionais". Ele recorda que a ONU tem recomendado aos estados-membros que adotem legislações específicas sobre o tema.
          Ex-vice-presidente da Comissão de Segurança e Combate ao Crime Organizado na Câmara Federal, o ex-deputado Raul Jungmann (PPS-PE), insiste em que o Brasil precisa debater o tema, mas admite que a definição do que é terrorismo é por si complexa e pode resvalar para a criminalização de movimentos sociais. Nas palavras de Jungmann, "jamais se poderiam confundir protestos, ainda que por meios equivocados, com atos de terrorismo".
          Esse é o nó górdio que paralisa os governos petistas na discussão do assunto: o temor do possível enquadramento de movimentos como o MST, historicamente ligado ao PT. "Uma nova legislação, minimamente eficaz, fatalmente enquadraria como crime de terrorismo a invasão e depredação do Congresso ou a destruição de laboratórios e plantações da Monsanto em Goiás, em 2003", avalia um especialista da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), em Brasília, que pediu para não ser identificado. Ele enfatiza que "esse é um vespeiro que nem o ex-presidente Lula nem a presidente Dilma Rousseff se atreveram a cutucar".
          Prova da refração oficial ao assunto é o tratamento do anteprojeto de lei que tipifica o crime de terrorismo e o seu financiamento, elaborado sob a égide da SAEI (Secretaria de Acompanhamento e Estudos Institucionais) do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) da Presidência da República.
          O projeto, de 2006, foi elaborado por determinação da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDEN), através da constituição de um grupo de trabalho integrado por "notáveis" ligados às áreas de inteligência e segurança. O documento, considerado bastante avançado por especialistas, seguiu para análise do Ministério da Justiça para análise e ali permanece até hoje. Nunca chegou ao Congresso.
          COOPERAÇÃO O governo brasileiro também tem se mostrado avesso a uma cooperação internacional mais íntima na prevenção do terrorismo. Segundo o jornalista Reinaldo Galhardo, autor do livro "Fundamentalismo Islâmico e seus Efeitos Globais: O Brasil na Rota do Terror" [AllPrint, 2012], em 2008 o governo norte-americano propôs ao Planalto a montagem de uma agência especial antiterror:
          "Haveria escritórios em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, e o Brasil receberia tecnologia de ponta e recursos financeiros", revela Galhardo. "Seria instalado um moderno centro de operações e inteligência capaz de monitorar qualquer elemento suspeito de atividade ou ligação com terrorismo que desembarcasse no país."
          Segundo Galhardo, o assunto "não prosperou". Ele enfatiza que, na prática, o que acontece é as instituições manterem rígidas visões não-cooperativas sobre o assunto:
          "O que há são ações de cunho individual por parte de instituições cujas forças deveriam estar unidas por um objetivo comum", afirma o pesquisador, lembrando que o então comandante geral da Polícia Militar de São Paulo, coronel Roberto Antônio Diniz, admitiu em entrevista que a PM paulista tem estreitado seus contatos com o Departamento de Defesa dos EUA.
          Galhardo obteve ainda a informação de que, em 2008, oficiais da PM paulista fizeram um curso de treinamento de táticas antiterror: "Treinamento e operações foram realizadas nas florestas de El Salvador, envolvendo monitoramento in loco das Farc (Forças Armadas Revolucionárias Colombianas) na própria selva da Colômbia", afirma Galhardo. Para ele, a experiência, patrocinada pelos norte-americanos, demonstra a preocupação de que as Farc sirvam de braço de apoio ao ingresso de terroristas estrangeiros no Brasil através de nossas extensas fronteiras.
          O capitão de mar-e-guerra José Alberto Cunha Couto, que por 13 anos chefiou a SAEI, pondera que o Brasil, com seus 190 milhões de habitantes, praticamente 80% de urbanização e expressivas colônias de imigrantes implantadas há décadas, não poderia deixar de evidenciar vulnerabilidades:
          "Existem aqui centenas de alvos para ataques terroristas. Os mais evidentes seriam de três tipos: atentados de grande visibilidade política a embaixadas, autoridades estrangeiras, figuras ou instituições; atentados capazes de criar sérias dificuldades econômicas, como destruição de linhas de transmissão de Itaipu, bombas em vias importantes, refinarias de petróleo, aeroportos etc.", afirma. "Atentados com potencial de ferir ou matar significativo número de pessoas, colocação de venenos em represas, adulteração de remédios e ataques para gerar pânico em concentrações humanas, como estádios e áreas de jogos", conclui.
          Essas preocupações são corroboradas por estudiosos estrangeiros como o professor Gabriel Weimann, especialista em terrorismo da Universidade de Haifa, em Israel. Ele assevera que é muito possível que o Brasil venha a se tornar um alvo preferencial do terrorismo "devido a sua posição econômica privilegiada, ao fato de que irá sediar grandes eventos esportivos e à sua grave exclusão social".
          "O Brasil tem populações frustradas e infelizes, que se sentem alienadas. Essa situação configura um território explorável pelas organizações terroristas que recrutam pessoas com esse perfil", adverte Weimann, alertando para a nova fase em que se encontra a Al Qaeda, após a morte de Osama bin Laden. Seu substituto, Ayman al Zawahiri, segundo ele, é mais sofisticado do que seu antecessor. "A Al Qaeda precisa demonstrar que ainda é capaz de atuar e ser mais perigosa. "A Primavera Árabe e o vácuo político criado pelos acontecimentos que gerou podem ser o cenário ideal para o seu ressurgimento", conclui.

            Um otimista cético [Albert Hirschman (1915-2012)] - Fernando Henrique Cardoso

            folha de são paulo

            Albert Hirschman (1915-2012), algumas lembranças esparsas
            FERNANDO HENRIQUE CARDOSORESUMO Morto em dezembro, aos 97 anos, o economista americano nascido na Alemanha Albert O. Hirschman notabilizou-se pelo otimismo e pela ajuda a milhares de artistas e intelectuais para fugir da França nazificada. O ex-presidente FHC rememora momentos em que privou com Hirschman e sua mulher, Sarah, seus amigos.
            A notícia da morte de um amigo é sempre desagradável. Por mais que se espere, por mais que se saiba que a pessoa já pouco responde aos estímulos e por mais agnóstico que alguém seja, sempre estamos à busca de algum milagre, uma melhora inesperada. Quando soube por Roberto Schwarz, outro amigo e admirador de Albert Hirschman, de sua morte, confesso que meu coração se fez pequeno, encolheu.
            A notícia chegou meses depois de outra, mais surpreendentemente ainda, dando conta de que a querida Sarah também se havia ido. Senti como se um pedaço de minha própria história estivesse desaparecendo, tão grande foi a influência do casal sobre mim, minha mulher, Ruth, e sobre alguns amigos próximos.
            Albert Hirschman foi uma figura notável. Discreto, de uma vaidade envergonhada, tratando de não assumir seu esplendor intelectual, deixou germinando sementes na cabeça de gerações de intelectuais nos Estados Unidos, na Europa e principalmente na América Latina. Sua figura humana, gentil e persuasiva, deixava, quase sem que se percebesse, marcas profundas nas pessoas que com ele conviviam ou pensavam haver convivido, tão grande havia sido a influência de seus escritos.
            Conto um episódio, para exemplificar. Certa vez eu estava em Nova York com meu filho, Paulo Henrique, e um colaborador, o diplomata Tarcísio Costa, quando resolvi visitar o casal Hirschman. Ambos se dispuseram imediatamente a me acompanhar. Tarcísio lera trabalhos de Albert, que o influenciaram na elaboração de seu doutorado em Cambridge. Paulo tinha apenas a memória de quando era criança, no Chile, e adolescente no Brasil quando cruzara com ele. Queríamos vê-lo, mais do que para reverenciá-lo -pois Albert sempre manteve distância da bajulação-, para desfrutar do prazer da conversa.
            Qual não foi nossa surpresa ao chegar a sua casa em Princeton (a mesma casa a que acorri tantas vezes nas oportunidades em que nos anos 1970 fui "fellow" do Institute for Advanced Study) ao vê-lo elegantemente trajado, sorridente, mas pouco propenso a falar. A doença já havia feito seus efeitos devastadores sobre o espírito daquela figura luminar. Não obstante, deu-nos prazer sentir que em sua quase mudez, continuava com o olhar expressivo e vez por outra murmurava algo quase irônico a respeito do que conversávamos.
            Num dado momento eu recordava que em 2004 fizera uma palestra por ocasião da graduação de estudantes de Brown, entre os quais se formava um neto de Hirschman, e o avô assistia à cerimônia. Sem saber do neto nem da presença do avô, apoiei-me em seus conceitos de "voice", "exit" and "loyalty" para justificar minha interpretação sobre acontecimentos políticos no Brasil.
            Ao ouvir-me contar a história e a referência a seus conceitos Albert abriu um sorriso. Em seguida me perguntou o que eu fazia na Universidade Brown, ao que contestei: "Sou 'professor at large'". "O que é isso?", retrucou. "Ah, são professores que não têm obrigações regulares de dar aulas, fazem alguns seminários e, de vez em raro, dão uma aula magna." Hirschman sorriu novamente e meneou a cabeça com alegria. Era do que ele gostava. Nunca apreciara dar demasiadas aulas nem falar muito...
            Não obstante, como seu ilustre biógrafo Jeremy Adelman corretamente assinala, Albert Hirschman era um "bricoleur" de palavras, se extasiava quando as via usadas apropriadamente, e, sobretudo -gosto raro- se deliciava com os palíndromos, com as palavras que guardam o mesmo sentido se as frases são lidas de trás para frente como de frente para adiante. E isso ele fazia com os vários idiomas que lhes eram familiares.
            Conhecia a gramática das línguas que usava, tinha o prazer estético de bem escrevê-las, mas a pronúncia denunciava a raiz germânica de quem as falava. Salvo no francês em que às vezes conversávamos e, talvez, no italiano, de que ele tanto gostava, mas que eu nunca o ouvi falando. Nos escritos, entretanto, era mestre. E corrigia o dos outros, como fez comigo algumas vezes, sem falar dos contínuos ensinamentos e correções de minha precária gramática inglesa.
            Lembro-me bem certa vez, creio que em Atlanta, em um encontro da Lasa (Latin American Studies Association) em que eu fiz de improviso (mas estudado...) uma conferência em espanhol sobre "O consumo da teoria da dependência nos Estados Unidos". Albert, com seu jeito amável de fazer correções, comentou comigo diante de Sarah: que bom você só uma vez trocou o verbo haver por ser...
            INOVAÇÃO Esse intelectual preciosista, sempre afim com a busca do belo, foi também um inovador. Não é o momento para fazer um balanço das inúmeras contribuições de Hirschman ao pensamento contemporâneo. Mas cabe ressaltar, no que diz respeito à América Latina, que sua visão abriu caminhos. Desde sua estada na Colômbia, Hirschman lutou contra o que ele chamava de "fracassomania", o pessimismo larvar que dificulta perceber as mudanças que estão ocorrendo.
            Tinha, como no título de um de seus livros escritos posteriormente a sua estada em Bogotá, "a bias for hope". Tanto quanto chamar a atenção para o inesperado de ver em países "subdesenvolvidos" ilhas de excelência e modernidade (como ele mostrou, por exemplo, ao falar de uma companhia local de aviação), insistiu em manter o otimismo como perspectiva mais auspiciosa.
            Quando todos nós, intelectuais da região, inspirados por modelos ocidentais, víamos obstáculos ao desenvolvimento, Hirschman escreveu um famoso artigo sobre os "obstáculos para enxergar o desenvolvimento". Contrariando a noção estabelecida de que a busca de equilíbrios seria a pré-condição para o desenvolvimento, Albert Hirschman insistia em que às vezes são os desequilíbrios que desencadeiam necessidades de investimento e põem em marcha sequências positivas. Estas podem se encadear "para frente" ("forward linkages") ou para trás ("backward linkages") levando a sucessivas transformações positivas.
            A existência de recursos naturais inexplorados, por exemplo, pode suscitar inovações tecnológicas que levem a sua valorização, a despeito da penúria de capitais. No livro "Strategies for Economic Development", de 1958, Hirschman expõe suas idéias sobre desenvolvimento econômico de maneira muito criativa.
            A primeira oportunidade que tive de estar com Albert Hirschman foi no apartamento de Alfred Stepan em Nova York, em 1964, quando Stepan era jovem assistente do departamento de ciência política na Columbia e Hirschman professor em Harvard. Encontrei-o novamente mais tarde, em Santiago do Chile, lá pela segunda metade dos anos 1960.
            Em certos círculos intelectuais -algo críticos das teorias estruturalistas sobre o desenvolvimento econômico desenvolvidas pela Comissão Econômica da América Latina (Cepal), órgão da ONU- predominava na época a visão de que as cidades do "Terceiro Mundo" estavam cercadas por uma maré de populações "marginais". Faltaria ao capitalismo do subdesenvolvimento a capacidade dinâmica de absorvê-las.
            Estavam na moda na AL as "grandes teorias" a respeito de um peculiar "capitalismo dependente", a que Enzo Faletto e eu nos opúnhamos. Achávamos que, se as situações eram de dependência, o capitalismo, entretanto, era o mesmo, com desdobramentos específicos nos países menos desenvolvidos, mas não essencialmente distinto de como se manifestava no Primeiro Mundo.
            No afã de substantivar nossas interpretações, escrevi com um então jovem intelectual mexicano, o hoje embaixador José Luis Reyna, um artigo comparando a estrutura do emprego na América Latina, nos EEUU e na Europa. Mostrávamos que as tendências de diminuição do emprego no setor agrário, sua expansão limitada no setor industrial e acelerada dos serviços, se variavam de intensidade na comparação, não destoavam quanto à direção. Portanto, era precitado sustentar a ideia de que havia obstáculos estruturais à inclusão social na América Latina.
            Dei o artigo a Hirschman, que, regressando aos Estados Unidos, de lá me enviou uma carta encorajadora, na qual dizia com generosidade que nossas mentes eram irmãs... Exagerava, por certo, mas aumentou muito a confiança que eu tinha na minha visão crítica, mas não pessimista, quanto às possibilidades de transformação das economias e sociedades latino-americanas.
            Lévi-Strauss, em um de seus escritos, diz que antes de começar a escrever algum livro de maior fôlego relê autores que o inspiram e cita o "Dezoito Brumário de Napoleão Bonaparte", de Marx. Pois bem, mal comparando e já me desculpando pelo que poderia parecer pretensão, digo com sinceridade: foram incontáveis as vezes nas quais reli algum capítulo de Albert Hirschman para preparar um artigo ou uma conferência.
            Sempre procurei conter ímpetos de cair na tentação de lançar mão de interpretações baseadas em "grandes teorias" da história e das ciências sociais ou de me apoiar em "certezas" derivadas de leis gerais da evolução humana ou mesmo, mais modestamente, das regularidades com as quais nos defrontamos na história. A precaução de evitar a crença no inevitável e de abrir espaço para o inesperado busquei-a nas leituras de Albert Hirschman, que mais amava uma dialética sem sínteses do que o automatismo de "leis" de comprovação duvidosa. Não por acaso insistiu tantas vezes em manter certa dúvida metódica, como Descartes, e preferiu apresentar suas interpretações como possibilidades e não como certezas. Favorecia o "possibilismo" para escapar da armadilha das interpretações mecânicas dos acontecimentos.
            OTIMISMO CÉTICO Um otimismo cético, se assim posso qualificar, permeou a vida e as obras de Albert Hirschman. Ele sempre procurou olhar temas que pareciam laterais ou tomar fatos que pareciam únicos ou que estivessem isolados do curso geral das coisas para, através deles, iluminar um processo mais amplo, dando mais importância às interpretações com sentido do que a regularidades sensaboronas. Era como se fosse um seguidor de Max Weber, sem o ser, pois nada mais distante da sensibilidade de Albert do que pertencer a uma "escola".
            Por isso, no prefácio de um de seus livros traduzidos ao português, "Auto-Subversão", comparei-o aos pintores flamengos do século 15 e 16, Memling ou Van Eyck, que ao pintar, por exemplo, um retrato, pintavam também miniaturas nos cantos da tela e estas desvendavam todo o contexto, fosse uma paisagem rural ou a vista de uma cidade.
            Assim são muitas das obras de Hirschman: nelas os assuntos se apresentam como se fossem menores, embora desenvolvidos com precisão, leveza e graça. Ao terminar a leitura fica-nos, entretanto, a impressão correta de que as análises, sugestões e metáforas permitiram compreender processos muito mais amplos do que parecia ser quando iniciamos a leitura. Por trás da aparente singeleza descobre-se uma explicação sofisticada, como se fosse ao acaso, ao modo do que Robert Merton chamava uma "serendipity".
            Assim, por exemplo, sua explicação de como foi possível combinar protesto e fuga ("voice" e "exit") na luta dos berlinenses pela volta à democracia. E há inúmeros outros achados, que parecem se referir a coisas de menor importância e que, de repente, o leitor percebe que se trata de instrumentos heurísticos extraordinários, como, noutro exemplo, sua metáfora sobre o "efeito túnel".
            SAUDADE Por fim, cabe uma palavra de saudade a esse grande homem cuja vida intelectual não foi maior, por grande que tenha sido, do que o restante de sua biografia. Sua resistência ao nazismo, sua coragem pessoal ao se envolver na resistência, sua sagacidade ao perceber que diante da barbárie nazista não cabia "voice", mas "exit", não para desistir e se acomodar, mas para juntar forças e continuar lutando, são provas disso. Um homem de nosso tempo, mas talhado com o espírito dos grandes renascentistas e que somava a essas qualidades as de um ser humano doce e afetivo.
            Era assim que se relacionava com sua Sarah e com as filhas queridas. Assim foi também nos momentos de sofrimento pela morte de uma delas e, sem que se possa saber ao certo se do fato tomou consciência, como teria sido pela brusca perda de quem poderia ter ficado com ele até ao último suspiro, mas deixou-nos antecipadamente. E também com os amigos para os quais sua palavra de estímulo e de simpatia nunca faltou.

              A ordem de Francisco - A Companhia de Jesus volta ao centro do poder

              folha de são paulo
              ALDO PEREIRA
              RESUMO A ordem dos jesuítas, a que pertence o papa Francisco, marcou a história por sua devoção ao saber e pela presença em conturbações como a Reforma e os desdobramentos socioeconômicos dos descobrimentos. No entanto, em quase 500 anos, só agora tem sua importância reconhecida no pontificado.
              Nos mais renomados dicionários de línguas europeias, verbetes correspondentes a "jesuíta" incluem acepções como esta, do "Houaiss": "Que ou aquele que é dado a intrigas; dissimulado, hipócrita". O registro não teria surpreendido os fundadores da Companhia de Jesus pela irreverência, mas a palavra em si os intrigaria: eles próprios nunca se chamaram de jesuítas.
              Na tomada de Pamplona por invasores franceses em 1520, por pouco uma bala de canhão não decepou a perna direita do libertino e aventureiro fidalgo Inácio de Loyola (1491-1556). Durante meses de penosa convalescença num castelo, sua única distração foi ler um livro sobre a vida de Jesus e outro de biografias de santos. Estas conjugavam dois estilos em moda: hagiografia e romance de cavalaria.
              Impressionado, Loyola doou espada e adaga como ex-votos à Virgem de Montserrat, na Catalunha, e se deu a mendicância, autoflagelação e estudo. Peregrinou, vagueou e, em Paris, diria ter tido uma visão na qual Jesus ouvia Deus lhe determinar que chamasse Loyola a servi-los. Decidiu ordenar-se padre.
              Quando se ordenaram em Bolonha, em 1537, Loyola e discípulos cogitavam criar uma ordem própria alicerçada em certos princípios do etos militar: treinamento rigoroso, obediência incondicional ao superior e ao papa, observância intransigente dos votos de pobreza e castidade (a ordem nunca admitiria mulheres).
              A instituição formalizou-se em Roma, três anos depois, com aprovação explícita do papa Paulo 3º, seguida de eleição de Loyola como superior-geral. (Quando substantivo, o termo "general" denota noutras línguas europeias a patente militar; quando adjetivo, denota "geral". Em português, os jesuítas optaram pelo título "superior-geral", mas os seguidores de Loyola o tratavam como "general".)
              Loyola morreu aos 65 anos, em 1556. Tinha sido tão poderoso e imperioso que a ele se atribuiu o epíteto pejorativo de "Papa Negro", em alusão à cor da batina preta (contrastante com a branca do papa) e a maquinações malignas que desafetos lhe atribuíam.
              No início a Companhia assistiria o Santo Ofício (Inquisição) que os dominicanos vinham exercendo desde 1480. Mas o mundo legado por Loyola impunha outras prioridades. Em segredo reprimido pela Inquisição, a elite científica europeia descobrira a redondeza do mundo. Combinado com progressos da astronomia, navegação, engenharia naval e artilharia (Galileu vendia serviços especializados de balística), esse conhecimento redistribuiria os poderes do mundo.
              Em paralelo com o ouro, itens como especiarias, açúcar e escravos revolucionaram o comércio de commodities e a alquimia bancária. "Player" nesse jogo, a Santa Sé logo destacaria os diligentes jesuítas para exploração e defesa de seus interesses.
              Dois outros fatores complicavam a concorrência: a ebulição intelectual advinda da industrialização da escrita, processo iniciado por Gutenberg pouco mais de um século antes, e o ódio sectário deflagrado pela Reforma protestante.
              Um dos primeiros sucessos foi o de Francisco Xavier no Japão. Ele obteve do senhor feudal Omura Sumitada, a quem batizara, direitos proprietários sobre o porto de Nagasaki. Por ali transitaria o rendoso comércio do Portugal católico com o Japão.
              Em 1572, Gregório 13 (o do calendário) concedeu à Companhia o privilégio exclusivo de operações bancárias. Para ganhar know-how, a Companhia se associou a organizações de judeus, muitos dos quais, para trânsito mais fácil, se diziam cristãos-novos e adotavam nomes não judeus. Exemplo, o donatário Fernão Pereira Pestana de Loronha, erroneamente registrado na história do Brasil como Fernando de Noronha (c. 1470-1540).
              Além desse expediente, judeus perseguidos pelos reis católicos de Portugal e Espanha tinham migrado para a Holanda com seus
              saberes de comércio, relações internacionais e capital. Menos de um século depois, a Holanda despontava nos oceanos como potência rival da Inglaterra, da Espanha, da França e de Portugal. Algum papel para os jesuítas nesse novo episódio do comércio colonial?
              O necessário sigilo de muitas atividades da Companhia na época tem favorecido confuso retrato dela, mistura de fatos com inferências e hipóteses que vão do plausível ao paranoide. Que ligações teria havido, se alguma, entre jesuítas e a Companhia Holandesa da Índia Oriental, a Companhia Holandesa da Índia Ocidental, o Bank of the Manhattan Company (hoje JPMorgan Chase & Co.), negócios da família Rotschild e o banco suíço Lombard Odier Darier Hentsch, que marca presença hoje também em Hong Kong?
              Que papel teria tido a Companhia, se é que teve, na invasão da Itália por Napoleão e na decisão de ele prender o papa Pio 6º, que morreria no cárcere mês e meio depois? Mistérios possivelmente espessados por delírios conspiratórios. Mas em que medida?
              EDUCAÇÃO Na visão abrangente dos jesuítas, logo sobressairia também a importância da educação, que os protestantes vinham mostrando ser instrumento eficaz de doutrinação e colonização. Antes, a diretriz católica favorecera o obscurantismo, com perseguição de cientistas e racionalistas. Era crime capital traduzir a Bíblia do latim para vernáculos.
              O teólogo John Wycliffe (c. 1330-1384), que desafiara a proibição com ajuda de colaboradores, escapou. Mas, 44 anos depois de morto, a Igreja o condenou e mandou esparzir num rio as cinzas de seu esqueleto, que ela tinha mandado exumar e incinerar.
              Em contraste com louvações católicas da pobreza, o etos protestante valorizava a educação e o enriquecimento advindo dela. A princípio relutante, Loyola ao morrer reconhecera essa opção e comprometera sua Companhia com a vocação educativa que ainda hoje ela prioriza.
              EXPULSÃO No século 18, o poder econômico e político da Companhia acabou por colocá-la em conflito com realezas coloniais europeias, mesmo as católicas. A linha antiescravagista da Companhia escasseava e encarecia os braços necessários ao trabalho em minas e canaviais.
              Em 1758, o Marquês de Pombal, que governava Portugal para o vacilante rei José 1º, expulsou do império os jesuítas. França e Espanha logo o imitaram. Tão resoluta insubordinação convenceu o papa Clemente 13 a dissolver a Companhia, mas ele morreu na véspera do dia em que baixaria a decisão. Envenenamento continua sendo hipótese não provada.
              Clemente 14, sucessor de Clemente 13, conduziu o caso com mais prudência. Após quatro anos de manobras diplomáticas, emitiu um breve (breve é forma simplificada de bula) que determinava a extinção da Companhia. Imediato confisco dos bens e precavido encarceramento do superior-geral Lorenzo Ricci facilitaram o cumprimento da decisão.
              Mas a morte do papa no mês seguinte gerou especulações que, como no caso de seu antecessor, continuam tão controvertidas quanto as que adviriam da morte de Ricci, dois meses depois. (Entre risadas, na semana passada o papa Francisco revelou à imprensa ter rejeitado a sugestão de, como fiau a Clemente 14, ele optar por chamar-se Clemente 15.)
              A reconciliação entre o papado e a Companhia sobreviria em 1814. Mas no século 19 e primeiras décadas do 20, jesuítas se viram expulsos e até martirizados em numerosos países: Alemanha, Áustria, Bélgica, China, Equador, Espanha, França, Galícia (ucraniana), Itália, Madagascar, México, Portugal, Rússia, Síria, Suíça.
              HOJE Em números redondos, a Companhia congrega, em mais de cem países, uns 14 mil sacerdotes, 2.000 irmãos (membros leigos) e 4.000 escolásticos (termo que corresponde ao de seminaristas). Já foram mais: em meados do século 20 a ordem compreendia pelo menos 26 mil membros. Tipicamente, a formação de um padre jesuíta leva 15-20 anos, ou mais, o que dificulta a reposição do efetivo.
              Rancores subsistem, mas aos poucos a cinza se espessa por cima das brasas. Hoje o mundo já não se pergunta tanto o que é e o que faz a Companhia, mas o que ela fará do poder aumentado que agora assume com o espírito do padre-general pairando sobre o trono milenar dos papas.

              Conceitos de 'liberal' e 'conservador' têm limites

              folha de são paulo

              ANÁLISE
              RODRIGO COPPE CALDEIRAESPECIAL PARA A FOLHAO papa Francisco tem aquele carisma de que a igreja lança mão nos momentos em que mais necessita.
              Bergoglio, com toda a liberdade que o caracteriza, é um sinal da experiência multissecular da igreja de Roma. Abraça, beija e fala com os fiéis demonstrando uma proximidade admirável.
              A sua elevação ao trono de Pedro parece ressoar positivamente num país como o Brasil, onde o número dos que se declaram católicos cai progressivamente.
              A pesquisa Datafolha aponta que 74% dos entrevistados avaliaram como "ótima" a eleição do papa argentino. Contudo, a alta aprovação da eleição de Bergoglio -cargo mais representativo da igreja e que tem como uma de suas funções zelar pela doutrina- vem acompanhada de posições que, em sua maioria, contrapõem as defendidas pela instituição católica.
              Nota-se, por exemplo, alta aprovação do uso da pílula anticoncepcional e aprovação razoável da "pílula do dia seguinte".
              Por outro lado, observa-se que muitos a favor do uso da camisinha não se posicionam favoravelmente à legalização do casamento gay.
              Outros tantos a favor do divórcio posicionam-se contra a liberação do aborto. Legalização da união de pessoas do mesmo sexo, aborto e uso de anticoncepcionais são temas que geralmente aparecem juntos nesse intrincado debate.
              Contudo, é preciso atentar para o fato de que são práticas entendidas com pesos diferentes pelos brasileiros.
              Uma mulher, por exemplo, pode defender o reconhecimento do casamento civil de pessoas do mesmo sexo, mas negar o aborto em qualquer circunstância.
              Isso demonstra que temas que parecem caminhar juntos -especialmente quando se observa uma agenda liberalizante que cresce na América Latina- são entendidos e avaliados de maneiras diferentes pelos brasileiros.
              Conceitos como "liberal" e "conservador" demonstram os seus limites operacionais no campo fluido da moral.
              Os brasileiros, atravessados pela vaga da destradicionalização crescente e testemunhas da emergência de um "mercado de sentido" variado -não apenas religioso, por sinal- que ganha impulso nas últimas décadas, expressam sua sensibilidade moral de formas diferentes.
              Os posicionamentos morais exprimem-se de maneira subjetiva e individualizada, mergulhados na multiplicidade de concatenações, combinações e ajustes. Sem um fiador único.
              Tal característica perpassa o campo religioso brasileiro e é sentida profundamente no catolicismo: 58% dos entrevistados pelo Datafolha se declararam católicos.
              Muitos responderam diferentemente às perguntas, inclusive assumindo posições que vão de encontro às oficiais da Igreja Católica.
              A homogeneidade aparente se dilui nos inúmeros graus de adesão à instituição. "Ser católico", como dizia o saudoso Antônio Flávio Pierucci, "é fácil".
              E completa: "Reside nisso parte da força do catolicismo, mas grande parte também de sua fraqueza".

                Visíveis para si mesmo - MARTHA MEDEIROS

                ZERO HORA - 24/03/2013

                Ficar sozinho não é estar abandonado, ao contrário: é encontro dos mais sagrados
                Se você fosse um super-herói, qual o poder que gostaria de ter? Pergunta clássica, resposta clássica: 99% das pessoas gostariam de ficar invisíveis. É o desejo também do senhor Y, o enigmático personagem de O Homem Visível, de Chuck Klosterman, livro que mistura ficção científica, bizarrice e suspense numa trama que, ainda que inverossímil, prende o leitor e faz refletir.

                Y trabalhou num projeto ultrassecreto do governo americano e acabou desenvolvendo uma tecnologia de camuflagem ele criou uma espécie de segunda pele que o torna invisível. Com que propósito? Entrar na casa de pessoas que morem sozinhas e, sem ser percebido, vê-las em sua rotina comum. O obcecado Y acredita que uma pessoa é 100% autêntica apenas quando ninguém a está observando.

                Ah, super Y. Além de invisível, você lê pensamentos? Acredito no mesmo que você. Sozinha não finjo, não disfarço, não retruco, não provoco, não julgo, não condeno, não sumo, não volto. Sozinha não há céu que me rejeite – assim encerra um poema que escrevi certa vez sobre o benefício da solidão.

                Não que sejamos todos uns falsos ao sair pela porta de casa, mas é indiscutível que, assim que entra um vizinho no elevador, você automaticamente aciona um dispositivo que produz um sorriso e um comentário sobre o clima, quando na verdade está morta de sono e preferiria continuar calada. Uma atuação inofensiva e gentil, mas, ainda assim, uma atuação. É preciso contracenar.

                No entanto, em suas visitas secretas a homens e mulheres que se acreditavam em total privacidade dentro de seus apartamentos, Y repara que elas não se sentem tão relaxadas como deveriam. Ele se dá conta de que as pessoas não consideram o tempo que passam sozinhas como parte de suas vidas. Diz o personagem: “Sempre me senti mais vivo quando estava sozinho, porque esses eram os únicos momentos que não sentia medo de ter minhas ações examinadas e interpretadas. O que acabei descobrindo é que as pessoas precisam que suas ações sejam examinadas e interpretadas, para acreditar que o que fazem tem importância”.

                É preocupante. Hoje, as pessoas só confirmam sua existência quando estão em público. No entanto, creio que é justamente quando estamos misturados aos demais que nos tornamos invisíveis.

                Acabamos infiltrados na manada e compartilhamos opiniões originadas do senso comum, tudo pela ansiedade de fazer parte de alguma coisa. Já ao nos concedermos momentos de isolamento, entramos em real conexão com nossos desejos, processamos as experiências vividas e esculpimos silenciosamente o homem e a mulher que estamos nos tornando. Ficar sozinho não é estar abandonado, ao contrário: é encontro dos mais sagrados. Invisível para os outros, extremamente visível para si mesmo.

                É divertido ser invisível e todos nós temos esse poder, basta estar numa festa para 800 convidados, por exemplo. A visibilidade é que é rara: olhar profundamente para dentro e enxergar o que ninguém mais consegue ver. 

                Danuza Leão

                folha de são paulo

                A PEC das empregadas
                Se essa PEC não for muito bem discutida, pode acabar em desemprego
                Essa Pec das empregadas precisa ser muito discutida; como foi mal concebida, assim será difícil de ser cumprida, e aí todos vão perder.
                A intenção de dar as melhores condições à profissional, faz com que seja quase impossível que o empregador tenha meios de cumprir com as novas leis; afinal, quem vai pagar esse salário é uma pessoa física, não uma empresa.
                Vou fazer alguns comentários sobre as condições -diferentes- em que trabalham as domésticas aqui e em países mais civilizados.
                Vou falar da França e dos Estados Unidos, que são os que mais conheço. Lá, quem mora em apartamento de dois quartos e sala, é considerada privilegiada, mas nenhum deles tem área de serviço nem quarto de empregada (costuma existir uma área comunitária no prédio com várias máquinas de lavar e secar, em que cada morador paga pelo tempo que usa); uma família que vive num apartamento desses tem -quando tem- uma profissional que vem uma vez por semana, por um par de horas.
                É claro que cada um faz sua cama e lava seu prato, e a maioria come na rua; nessas cidades existem dezenas de pequenos restaurantes, e por preços mais do que razoáveis.
                Apartamentos grandes, de gente rica, têm quarto de empregada no último andar do prédio (as chamadas "chambres de bonne", que passaram a ser alugadas aos estudantes), ou no térreo, completamente separados e independentes da família para quem trabalham.
                Essas domésticas -fixas e raras- têm salario mensal, e sua carga horária é de 8 horas por dia, distribuídas assim: das 8h às 14h (portanto, 6 horas seguidas) arrumam, fazem o almoço, põem a casa em ordem. Aí param, descansam, estudam, vão ao cinema ou namoram; voltam às 19h, cuidam do jantar rapidinho (lá ninguém descasca batata nem rala cenoura nem faz refogado, porque tudo já é comprado praticamente pronto), e às 21h, trabalho encerrado.
                Mas no Brasil, muitos apartamentos de quarto e sala têm quarto de empregada, e se a profissional mora no emprego, fica difícil estipular o que é hora extra, fora o "Maria, me traz um copo de água?". E a ideia de dar auxílio creche e educação para menores de 5 anos dos empregados, é sonho de uma noite de verão, pois se os patrões mal conseguem arcar com as despesas dos próprios filhos, imagine com os da empregada.
                Quem vai empregar uma jovem com dois filhos pequenos, se tiver que pagar pela creche e educação dessas crianças? É desemprego na certa.
                Outra coisa esquecida: na maior parte das cidades do Brasil uma empregada encara duas, três horas em mais de uma condução para chegar ao trabalho, e mais duas ou três para voltar para casa, o que faz toda a diferença: o transporte público no país é trágico. Atenção: não estou dando soluções, estou mostrando as dificuldades.
                Na França, quando um casal normal, em que os dois trabalham, têm um filho, existem creches do governo (de graça) que faz com que uma babá não seja necessária, mas no Brasil? Ou a mãe larga o emprego para cuidar do filho ou tem que ser uma executiva de salário altíssimo para poder pagar uma creche particular ou uma babá em tempo integral, olha a complicação.
                Nenhum país tem os benefícios trabalhistas iguais aos do Brasil, mas isso funciona quando as carteiras das empregadas são assinadas, o que não acontece na maioria dos casos; e além da hora extra, por que não regulamentar também o trabalho por hora, fácil de ser regularizado, pois pago a cada vez que é realizado? Se essa PEC não for muito bem discutida, pode acabar em desemprego.
                P.S.: É difícil saber quem saiu pior na foto esta semana: se d. Dilma, dizendo em Roma que a culpa pelas tragédias de Petrópolis se deve às vítimas, que não quiseram sair de suas casas, ou se Cristina Kirchner, pedindo ajuda ao papa no assunto das Malvinas.

                  Marcelo Gleiser

                  folha de são paulo

                  Do nada, tudo
                  Se, em ciência, todo efeito é resultado de uma causa, qual é a causa primeira do surgimento do Cosmo?
                  NA SEMANA PASSADA, comecei uma discussão do que chamo o "problema das três origens", focando inicialmente na questão da origem da vida. Apesar de estarmos longe de saber como a matéria inerte tornou-se viva na Terra primitiva ou de como fazê-lo no laboratório, considero essa a mais fácil das três questões.
                  A origem da vida é algo que podemos estudar de fora para dentro, para ter uma visão externa e objetiva do que ocorre. Mesmo que seja impossível saber exatamente como a vida surgiu na Terra, podemos investigar os possíveis caminhos bioquímicos que levam a não vida à vida. No caso do Cosmo e da mente, as coisas são mais sutis.
                  Pelo que sabemos, todas as culturas tentaram narrar o processo da origem do mundo. Conforme exploro no livro "A Dança do Universo", os mitos de criação sugerem um número pequeno de respostas possíveis para a origem do mundo.
                  Todos pressupõem a existência de alguma divindade ou poder absoluto capaz de criar o mundo. Na maioria dos casos, esse poder absoluto é um deus ou grupo de deuses. Em alguns, o Universo é eterno, sem uma origem no tempo; já em outros, o Cosmo surge do nada, de uma tendência inerente de existir.
                  Esse nada pode ser o vazio absoluto, um ovo primordial ou a luta entre o caos e a ordem. Nem todos os mitos de criação usam uma intervenção divina ou pressupõem que o tempo começa em um momento do passado.
                  Na visão científica, a origem do Universo faz parte da cosmologia. Imediatamente, encontramos dificuldades: se, em ciência, todo efeito é resultado de uma causa, podemos voltar ao passado até chegarmos na causa primeira.
                  Mas o que causou essa causa? Aristóteles, por exemplo, usou uma divindade, "o-que-move-sem-ser-movido", que não precisa de uma causa. Ou seja, usou a intervenção divina. Como as observações atuais apontam para um Universo com um início no passado, o desafio dos modelos científicos de origem do Cosmo é justamente tentar driblar a questão da causa primeira.
                  Porém, mesmo supondo que isso seja possível, será que a resposta é aceitável ou definitiva? Se o Universo surgiu de uma flutuação quântica aleatória, resolvemos a questão da causa. No mundo quântico, processos ocorrem espontaneamente, como no decaimento de núcleos radioativos. Juntando a isso o balanço entre a energia positiva da matéria e a energia negativa da gravidade, essa flutuação pode ter energia nula: o Cosmo surge do "nada".
                  Esse é o resultado de que tanto se vangloriam Stephen Hawking, Lawrence Krauss, Mikio Kaku e outros físicos. Mas não deveriam. É óbvio que esse nada quântico é muito diferente de um nada absoluto. Qualquer modelo científico pressupõe toda uma estrutura conceitual: energia, espaço, tempo, equações, leis...
                  Fora isso, hipóteses precisam ser testáveis e não sabemos como fazer isso com uma flutuação primordial. Não podemos sair do Universo e testar outras versões no laboratório. No máximo, modelos como esse chegam a uma compatibilidade com o que observamos.
                  A questão de por que este Universo e não outro continuará em aberto. O fato de a ciência oferecer tantas respostas não significa que ela deva responder a tudo.

                    Apoio à maconha se espalha nos EUA

                    folha de são paulo

                    Segundo instituto Gallup, 49% dos americanos aprovam descriminalização da droga; em 18 Estados ela já é liberada
                    Colorado planeja um 'maconha-tour' pelo Estado, onde uso da erva é liberado para fins medicinais e recreativos
                    RAUL JUSTE LORESDE NOVA YORKO prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, anunciou que a partir do mês que vem nenhum usuário de maconha vai passar a noite na delegacia, como acontece até agora. "Será registrado, como uma infração no trânsito." "Nossos policiais poderão ser remanejados para atividades mais prioritárias", afirmou.
                    Há dois meses, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, anunciou em seu discurso anual sobre o Estado que apresentaria projeto para legalizar a maconha.
                    Ambos anúncios foram acompanhados de polêmica quase zero, sem protestos, como tem acontecido nos últimos tempos nos cantos mais liberais dos Estados Unidos.
                    Segundo o instituto Gallup, 49% dos americanos aprovam a legalização da maconha, quase o dobro do que em 1995 (25%). Assim como o casamento gay, já aprovado por 53% dos americanos, a aprovação cresce a cada ano.
                    Em novembro, os eleitores do Colorado e de Washington aprovaram em plebiscito o uso da maconha em caráter "recreativo". Os governos estaduais têm até o final deste ano para regulamentar o cultivo, a produção, a venda e a distribuição da erva.
                    Apesar de a lei federal americana considerar a maconha ilegal, o presidente Barack Obama falou à TV em dezembro que não era "prioridade" perseguir usuários de maconha nos dois Estados.
                    Em 18 Estados e no Distrito de Columbia, onde fica a capital, Washington, a maconha para uso medicinal já é legalmente liberada.
                    Por enquanto, só a DEA, a agência de combate às drogas, pediu ao secretário de Justiça e procurador-geral, Eric Holder, para que não deixe de cumprir as leis federais por cima das estaduais recém-aprovadas. Holder ainda não se pronunciou, mas poucos acham que ele contrarie Obama.
                    APOIO REPUBLICANO
                    Já há quem pense em faturar com o novo momento da maconha no país. Denver, capital do Colorado, ganhou seu primeiro clube para degustadores da erva, o Club 64, que usa o número da emenda 64, a da legalização, e pode ser frequentado por maiores de 21 anos. O setor turístico do Estado, que abriga a famosa estação de esqui de Aspen, já imagina um "maconha-tour" de simpatizantes ao Colorado.
                    Uma associação local começou um curso prático de plantio de maconha na União dos Estudantes de Tivoli, na mesma cidade.
                    Também há um componente econômico na virada de um grande opositor à erva. O líder republicano no Senado, o senador Mitch McConnell, do Kentucky, juntou-se a dois senadores democratas e a outro republicano para apresentar uma emenda que legaliza o plantio de maconha.
                    Até recentemente, McConnell dizia que a "maconha pode matar".
                    Na semana retrasada, ao apresentar sua proposta, disse que "os agricultores do Kentucky podem se beneficiar enormemente das possibilidades da produção de canabis." Em Oregon, uma lei estadual já permite plantações que servirão para a demanda do vizinho Estado de Washington, onde o consumo foi liberado.
                    AJUDA POP
                    Também como no casamento gay, a cultura pop teve seu papel em ampliar a aceitação.
                    Depois do sucesso do seriado "Weeds", onde uma dona de casa vendia a erva, em um dos filmes de maior bilheteria do ano passado no país, "Ted", o protagonista e seu amigo ursinho de pelúcia passavam fumando maconha em boa parte da história, chapados, sem julgamento. Sinal de prestígio, o diretor, Seth McFarlane, foi o apresentador do último Oscar.
                    "Estamos vivendo enorme mudança de costumes e muita gente que jamais fumou maconha acha injusto prender milhares de pessoas que fumavam um baseado. Acabaremos tratando como álcool: taxando, regulando e impedindo o acesso a menores", diz Ethan Nadelmann, diretor-executivo da Aliança para Políticas de Drogas.

                      Suzana Singer - Folha Ombudsman

                      folha de são paulo

                      Títulos desafinados
                      Manchete errada de quinta-feira não é o único exemplo grave de descompasso entre títulos e textos
                      Muita gente só lê a "Primeira Página" do jornal. Quando o dia está muito corrido, dá uma olhadinha apenas nos títulos. Daí a importância dessa vitrine, que expõe as principais notícias, as reportagens exclusivas e os melhores artigos.
                      Todo cuidado é pouco com a capa. Nem seria preciso dizer que exatidão é fundamental, mas é útil repetir depois da manchete errada de quinta-feira passada.
                      O título dizia que "Vereadores de SP aprovam fim da inspeção veicular", mas isso não é verdade. O que ficou acertado na Câmara é a dispensa de fiscalização dos carros novos, que correspondem a apenas 30% da frota, segundo estimativa publicada pela própriaFolha.
                      Vários leitores perceberam o exagero. "Você lê a manchete e fica feliz, mas, quando passa para a reportagem, percebe que não tem nada a ver. Parece até que tem dedo do Haddad no meio", disse o economista Fernando Ianda, 69.
                      Uma correção discreta, sem menção na "Primeira Página", foi publicada anteontem.
                      Se a manchete de quinta-feira soava favorável ao PT, os equívocos, no dia anterior, tiveram o efeito contrário. A chamada sobre as chuvas era "Dilma gasta só um terço da verba para tragédias", mas o texto mostrava que não era bem assim.
                      A reportagem, sobre o represamento de verbas destinadas a prevenir e a combater enchentes como as que atingiram Petrópolis, informava que a responsabilidade é dos três níveis de governo (federal, estadual e municipal).
                      O segundo parágrafo já deixava isso claro: "Só um terço da verba federal reservada para esse objetivo foi gasto no ano passado, situação causada principalmente por entraves burocráticos com Estados e municípios no repasse dos recursos e elaboração de projetos".
                      Um pouco mais à frente, os repórteres afirmavam que "o governo federal compartilha com Estados e municípios a dificuldade de usar o dinheiro reservado no orçamento para esse fim".
                      O título correto estava no caderno "Cotidiano": "País só gastou um terço da verba destinada a desastres em 2012". "O jornal decidiu imputar a culpa toda a Dilma. A escolha das palavras na capa deixou isso claro. Se a Folha vai fazer campanha contra, deveria dizer explicitamente", criticou o administrador de empresas Marcello Bloisi, 46.
                      Nessa mesma quarta-feira em que "Dilma" apareceu indevidamente na chamada de chuvas, o nome da presidente sumiu do título sobre a sua popularidade. Saiu "Aprovação do governo federal alcança 63%, indica pesquisa".
                      A notícia era o levantamento do Ibope que mostrou um recorde na avaliação do atual governo. O que havia para ser ressaltado era a presidente, candidatíssima à reeleição. Ficou a impressão de que só quando a notícia é negativa o sujeito da oração é "Dilma".
                      Títulos que não correspondem aos textos são um problema recorrente no jornal. "Ministra crê que Jango tenha sido morto" era uma das notícias principais da terça-feira em "Poder". Estava errado.
                      Maria do Rosário, da pasta de Direitos Humanos, afirmou que há "possibilidade muito clara de que o presidente João Goulart tenha sido assassinado". Entre levantar a possibilidade de algo e acreditar que aquilo aconteceu, vai uma certa distância, ignorada por quem forçou a mão ao fazer o título.
                      Uma das acusações que mais se ouvem é que a imprensa exagera para vender mais jornal, aumentar a audiência ou bater recordes de page-views. "Tenho um palpite de que a Folha só tem profissionais competentes e, por isso, sou obrigado a acreditar que os 'erros' são propositais, uma forma de buscar leitores neste momento crítico para as mídias impressas", escreveu o geólogo Luiz Antonio Pereira de Souza, 56, sobre a manchete errada.
                      A melhor forma de rebater esse tipo de afirmação é ser rigoroso com a precisão. Como diz o ditado, contra fatos, não há argumentos.

                      AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Nós, os ianomâmis‏


                      Estado de Minas: 24/03/2013 

                      Diria que são três tribos. Mas inicialmente me referirei apenas a duas: a primeira, bem primitiva: a tribo dos ianomâmis, que vivem na fronteira do Brasil e da Venezuela; a segunda é a tribo pretensamente civilizada – a dos antropólogos que vivem estudando os ianomâmis.

                      José Padilha, que já havia tratado das tribos urbanas das periferias das grandes cidades nos filmes Tropa de elite 1 e 2, decidiu esmiuçar mais duas tribos: a dos índios e a dos antropólogos. E para isso fez o documentário Segredos da tribo. É evidente que ele está se referindo não apenas aos segredos da vida dos ianomâmis, mas aos atritos dentro da tribo dos antropólogos, que, com a arrogância dos deuses, resolvem estudar superiormente os primitivos.

                      O filme é brabo. Enquanto o via, tive náuseas, vergonha por meu semelhante, tão dessemelhante de mim. Lembrava-me de quando, nos anos 1960, os ianomâmis foram redescobertos. Os jornais noticiaram o achado de uma tribo de perigosos guerreiros na selva.

                      Pois os ianomâmis viraram o prato preferido do banquete antropofágico dos antropólogos americanos e franceses. Eram uma comunidade virgem, viviam como se vivia (supõe-se) há 8 mil anos. No governo Collor, movido pela Eco 92, o território ianomâmi foi preservado – era maior do que Portugal. E muita gente achou isso um escândalo.

                      O fato é que os antropólogos, sobretudo americanos e franceses, passaram a pesquisar esses índios. O antropólogo Napoleon Chagnon se casou com uma índia de 13 anos, levou-a para  viver nos EUA, ela ficou ali, achou um disparate a civilização e voltou para a selva. Muitos acharam uma insensatez um antropólogo fazer isso. Pior foi Jacques Lizot, discípulo de Levi-Strauss, que tinha práticas homossexuais com os garotos índios. Até hoje eles fazem uns bonequinhos chamados Lizot, com o pênis ereto, acusando o francês.

                      O filme, além de mostrar algo da vida dos índios, é um cruel bate-boca entre antropólogos. E nisso José Padilha faz um documentário brilhante, que deveria ser levado em conta agora que o The New York Times e a Folha de S. Paulo falam do livro de Chagnon The noble savage.

                      O filme começa (e vocês podem ver o trailer na internet) com um índio ianomâmi mandando os brancos para os infernos. Mostra também uma reunião da Associação Americana de Antropologia em que o orador fala sobre a inveja e a vaidade entre os antropólogos, o que nos faz lembrar que nos meios acadêmicos americanos dizem que Deus criou o universo, e o Diabo criou “o colega de departamento”.

                      O assunto é polêmico. Em português, podemos ler de Jacques Lizot O círculo de fogo (Martins); de Patrick Tierney, Trevas no El Dorado (Ediouro); os livros de Chagnon e os depoimentos de ianomâmis como Kopemawa.

                      Mas tem-se uma sensação trágica. De algo que está em movimento irreversível: o civilizado invadindo, violando, transformando o primitivo. Até os cientistas foram atrás dos ianomâmis fazer pesquisas com o sangue deles, e, claro, levaram também sarampo, varíola e gripe.

                      Houve um momento em que, no Brasil, eles eram 15 mil em 255 aldeias, e na Venezuela, 12 mil. O destino dos ianomâmis é muito semelhante ao nosso. E aqui poderia ir falando sobre a terceira tribo. Essa tribo que não é mais a dos índios e dos antropólogos, mas de todos nós, brasileiros ou não, essa tribo que vai sendo invadida pela irracionalidade atroz do progresso e da devastação.

                      Quando assisti ao filme, senti-me como um ianomâmi. Impotente. E me ocorreram os versos finais de “A grande fala do índio guarani perdido na história e outras derrotas”: “Amanhece sobre as árvores da taba/ Uma voz de índio ecoa entre a neblina da floresta/ Nos quartéis, uma vez mais, os espanhóis despertam/ tocam seus clarins e seus cavalos/ e vão extrair do sangue guarani/ o ouro que decora igrejas e mulheres./ Índio, eu olho o brilho das espadas e estandartes/ o tropel empoeirado e colorido da morte/ cada vez mais perto/ e aguardo o inimigo com uma canção nos lábios/ e meu peito aberto”.

                      Desempenho do PT no governo é bem visto

                      folha de são paulo

                      DE SÃO PAULOAlvo constante de denúncias e, mais recentemente, de alguns atritos com o governo, o PT não é visto pela população brasileira como um estorvo para o desempenho da presidente Dilma Rousseff, filiada ao partido.
                      Para 55% dos entrevistados pelo Datafolha, o Partido dos Trabalhadores está ajudando o governo Dilma. Entre os que dizem que o partido ajuda, 47% afirmam que "ajuda muito". Os demais consideram que a sigla "ajuda um pouco".
                      O total de pessoas que acham o contrário disso, que o PT está atrapalhando a presidente Dilma, soma 22%.
                      Ainda que positivo por larga margem, esse índice já foi melhor para a legenda.
                      Há dez anos, quando o presidente Lula tinha somente três meses de mandato, o Datafolha fez a mesma pergunta. Naquela ocasião, 69% dos entrevistados responderam que o PT estava ajudando o ex-metalúrgico recém-eleito.
                      Por ocasião dos dez anos do PT no comando do governo federal, o Datafolha também perguntou se, na opinião dos entrevistados, a administração do partido ao longo de uma década estava sendo boa ou ruim para o país.
                      Para 72%, o governo petista está sendo bom; 13% dizem que está sendo ruim; e 9% dizem que tem sido indiferente. Outros 5% não souberam ou não quiseram responder.
                      O PT, segundo a pesquisa finalizada anteontem, é o partido da preferência de 29% dos brasileiros.
                      O PMDB aparece em segundo, mas com índice bem menor, 7,5%. O PSDB foi citado como o partido preferido por 4,5%.

                        ANÁLISE PESQUISA DATAFOLHA
                        Com segurança no emprego, brasileiro sustenta otimismo
                        Em dez anos, taxa dos que acreditam que país é um bom local para viver cresce 15 pontos percentuais
                        Sensação de estabilidade no trabalho tem salvado o governo da estagnação da economia
                        Dilma foi a única a apresentar evolução nas intenções de voto, fossem espontâneas ou estimuladas
                        MAURO PAULINODIRETOR-GERAL DO DATAFOLHAALESSANDRO JANONIDIRETOR DE PESQUISAS DO DATAFOLHAEm dez anos, a taxa de brasileiros que consideram o país um lugar ótimo ou bom para viver cresceu 15 pontos percentuais. Entre os menos escolarizados e os de menor renda, esse índice subiu na mesma proporção.
                        A mesma tendência se observa na esperança que a população revela sobre melhores condições financeiras e maior poder de compra.
                        Como mostra o Datafolha hoje, essa percepção genérica, talvez um balanço subjetivo e indireto dos dez anos do PT no poder, alimenta a alta popularidade de Dilma e, neste momento, potencializa sua candidatura à reeleição em 2014 -a presidente da República foi a única a apresentar evolução nas intenções de voto, tanto espontâneas quanto estimuladas.
                        E a base da sensação de bem-estar não se resume à perspectiva de mobilidade social, inclusão no mercado consumidor ou acesso a políticas sociais.
                        Existe uma variável de grande correlação com todos esses fatores e que nos últimos dez anos apresentou mudança contundente -o sentimento de empregabilidade do brasileiro.
                        REDUÇÃO BRUTAL
                        Em 2003, 43% da população economicamente ativa do país enxergava alguma chance de perder o emprego. Atualmente, esse índice caiu pela metade.
                        No extremo oposto, a taxa dos que descartam qualquer possibilidade de serem demitidos chega agora a 75% -um crescimento próximo a 20 pontos percentuais em dez anos. Vale a nota de que no Nordeste essa evolução supera a média nacional.
                        O medo do que significa o desemprego na vida dos brasileiros também diminuiu significativamente. Em 2003, 34% afirmavam que ficar sem trabalho era o que mais temiam. Hoje, esse índice caiu para 15%.
                        Como consequência desse cenário, apesar de acreditar no aumento da inflação, a maior parte dos entrevistados aposta numa futura diminuição do desemprego e no aumento do poder de compra dos seus salários.
                        Pelo menos no período pré-eleitoral, a sensação de segurança no mercado de trabalho tem salvado o governo federal das movimentações da oposição no terreno político e das notícias de estagnação da economia.

                          Otimismo com a economia explica aprovação de Dilma
                          51% acham que situação do país vai melhorar; só 31% temem desemprego
                          Após dois anos e três meses de mandato, Dilma faz um governo ótimo ou bom, segundo 65% dos entrevistados
                          DE SÃO PAULO
                          Para 51% dos brasileiros, a situação econômica do país vai melhorar nos próximos meses. Um contingente ainda maior, 68%, acha que sua própria situação deve evoluir.
                          O medo do desemprego pode ser considerado baixo. Apenas 31% acreditam que esse problema aumentará.
                          E a expectativa sobre a renda também é positiva: 49% acham que o poder de compra dos salários crescerá.
                          Os números, em contraste com avaliações de boa parte dos analistas de mercado, ajudam a explicar o índice recorde de popularidade da presidente Dilma Rousseff.
                          Após dois anos e três meses de mandato, Dilma faz um governo ótimo ou bom para 65% dos brasileiros. Outros 27% classificam a administração como regular. A avaliação negativa é de 7%.
                          Os dados são da pesquisa Datafolha realizada nos dias 20 e 21 de março com 2.653 entrevistas. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
                          Na pesquisa anterior com as mesmas perguntas, em dezembro do ano passado, o otimismo da população nas questões econômicas também superava o pessimismo.
                          Os índices, porém, eram mais modestos. A expectativa positiva em relação ao país, por exemplo, era 7 pontos menor. Em relação à própria situação, 11 pontos a menos.
                          O único quesito econômico pesquisado pelo Datafolha que hoje não é visto com otimismo pela maior parte da população é a inflação.
                          Para 45%, os preços tendem a subir. Outros 31% acham que a inflação ficará como está. Só 18% confiam na redução dos preços.
                          HISTÓRICO
                          O atual índice de aprovação do governo Dilma está três pontos acima do índice constatado em dezembro do ano passado, a última vez que o Datafolha havia feito esse tipo de levantamento.
                          Dilma também está melhor que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no período equivalente. Na virada de 2004 para 2005, quando Lula completava o segundo ano de mandado, o índice de aprovação do governo era 20 pontos menor que o atual.
                          Naquela época, 45% classificavam a administração de Lula como ótima ou boa. Era o recorde do petista até então. Na pesquisa seguinte, em junho de 2005, sua aprovação caiu para 35%.
                          A parte eleitoral da pesquisa Datafolha foi divulgada na edição de ontem da Folha.
                          Se a eleição para presidente da República fosse hoje, Dilma seria reeleita no primeiro turno com 58% dos votos -segundo o cenário mais provável de candidatos.
                          A ex-senadora Marina Silva, em campanha pela criação de um novo partido, ficaria em segundo lugar, com 16%. O tucano Aécio Neves alcançaria 10%, tecnicamente empatado com o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), com 6%.
                          NA TV
                          Nas últimas semanas, a presidente Dilma fez uma série de anúncios governamentais de impacto positivo.
                          Um dos mais noticiados foi a extinção do número de miseráveis listados no Cadastro Único do governo federal, resultado obtido após uma série de incrementos no alcance e nos valores pagos pelo programa Bolsa Família.
                          Outra medida relevante foi a redução dos impostos que incidem sobre os produtos da cesta básica, anunciada em rede nacional de rádio e TV.
                          Antes disso, Dilma já havia feito um pronunciamento, também em rede de TV, sobre a redução das tarifas de luz.
                          São iniciativas que ajudam a explicar o atual índice de popularidade da presidente.
                          O Datafolha fez uma pergunta para medir o impacto das realizações de Dilma. Nesse capítulo, 22% dos entrevistados dizem que ela fez pelo país mais do que eles esperavam; no final de 2012 esse índice era de 15%. A maioria (41%) diz hoje que ela fez aquilo que eles esperavam.
                          A expectativa quanto ao desempenho futuro de Dilma é positiva: 72% dizem que, daqui para a frente, ela fará um governo ótimo ou bom.
                          O sentimento de otimismo desponta ainda em outras questões formuladas pelo instituto. Na avaliação de 76%, o Brasil é um país ótimo ou bom para se viver; 87% dizem ter mais orgulho do que vergonha de ser brasileiro; 81% entendem que o país tem muita importância no mundo hoje.