domingo, 2 de dezembro de 2012

Os solares - Martha Medeiros

O Globo 02/12/2012


“Não vejo o solar como alguém espalhafatoso. Pode ser
discreto no agir, mas tem uma luz íntima que cintila, que se
manifesta nos impulsos criativos, nas ideias que magnetizam”



Quando pequena, sentia um orgulho bobo de ser de Leão, só porque o planeta regente desse signo era o sol. Fora esse detalhe, não sabia nada sobre astrologia, mas agora passei a levar o assunto mais a sério e reconheci de vez o dinamismo relacionado ao astro rei.

Sou mais verão do que inverno, mais mar do que campo, mais diurna do que noturna. Intensamente solar, e isso é, antes de tudo, uma sorte, pois sem essa energia vital eu provavelmente teria tido um destino mais sombrio. Ainda assim, conheço outros “solares” que são de Touro, Libra, Gêmeos e demais signos – é uma característica que, mesmo quem não a herdou do cosmos, pode e deve desenvolver. Gente é pra brilhar, já dizia outro leonino.

Não vou continuar me referindo aos astros, pois não é minha praia. Minha praia é Ipanema, Maresias, Mole, Sancho, Porto de Galinhas, Espelho, Ferradurinha, Quatro Ilhas e demais paraísos distribuídos por esse Brasil cuja orla é um exagero de radiante. Quando penso que minha cidade preferida fora do país é Londres, fico até ressabiada com este meu perfil camaleônico, capaz de me fazer sentir em casa num lugar cujo sol não é visita constante. Mas é preciso passear por todos os pontos antagônicos da nossa personalidade – ninguém é uma coisa só. Também tenho meu lado cachecol e botas, mas se fosse obrigada a escolher apenas uma de mim, nunca mais descalçaria o chinelo de dedos.

Não vejo o solar como alguém espalhafatoso. Pode ser discreto no agir, mas ele tem uma luz íntima que cintila, que se manifesta nos seus impulsos criativos, nas suas ideias que magnetizam. Ele não precisa de extravagâncias para atrair. É uma pessoa que naturalmente se dilata, que abre espaço para o novo, que circula por várias tribos, que faz do seu prazer de estar vivo uma natural ferramenta de sedução.

O solar tem seus momentos de introspecção, normal. Não há quem não precise de um recolhimento para recarregar baterias, fazer balanços, conectar-se consigo próprio. Mas ele volta, sempre volta, e vem ainda mais expressivo em sua vibração espontânea.

Há pessoas que possuem uma nuvem preta pairando sobre a cabeça. São criaturas carregadas, pesadas – a gente percebe só de olhar. Uma tempestade está sempre prestes a desabar sobre elas. Respeito-as, ninguém é assim porque quer, mas considero uma bobeira defender o azedume como traço de inteligência. Os pessimistas se acham mais profundos que os alegres. Não são.

“She’s only happy in the sun”, canta Ben Harper, e faço de conta que ele se inspirou em mim, mesmo sem eu saber quem é “she” – pode ser a iguana do cara, vá saber. Que seja: iguana, toque aqui.



Sol combina com erotismo (que tons de cinza, o que), com bom humor, com leveza, com sorriso luminoso, com água cristalina, com calor, música, cores, vida. Quando ele se põe, me ponho junto, mas não apago: no escuro, me dedico aos vagalumes.

Uma nova estrela na vizinhança - Clovis Rossi


Violência à parte, o México começa a superar o Brasil como país em em ascensão na região
O México que trocou ontem de presidente começa a equiparar-se ao Brasil e até a superá-lo no papel de novo garoto de ouro no quarteirão latino-americano.
De ouro em termos: a violência, a palavra que mais aparece associada a México na mídia internacional, ofusca o brilho. Mas, se a comparação é com o Brasil, ambos estão empatadíssimos nesse infame torneio: a taxa de homicídios em cada um deles está em intoleráveis 22 a 23 por 100 mil habitantes.
Se há empate nesse quesito, passemos adiante.
É significativo que a revista "The Economist" -a que retratou o Brasil na capa como um foguete, não faz tanto tempo- tenha dedicado extensa reportagem na semana passada à "ascensão do México".
A revista faz a comparação direta com o Brasil, ao lembrar que o México cresceu mais que o Brasil em 2011 (3,9% a 2,7%) e voltará a fazê-lo este ano (3,8% a 1,5%, de acordo com a mais recente previsão da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico).
Outra comparação é feita por Shannon O'Neill (Council on Foreign Relations), uma das mais lúcidas analistas de América Latina:
"O Brasil teve seu momento uns dois anos atrás. Hoje, o México está realmente ganhando momento, e poderia estar na iminência de algo diferente".
O'Neill cita dados mexicanos que são também encontrados em análises sobre o Brasil: "O México é agora uma nação de classe média. Nos últimos 15 anos, a classe média do México cresceu até englobar cerca de metade da população. Essas famílias possuem casas e carros, enviam seus dois filhos [média por casal, hoje] para as melhores escolas que podem pagar e compram os produtos mais novos".
Vale para o México, vale para o Brasil, exceto talvez no quesito mandar os filhos para as melhores escolas. No Brasil, a nova classe média não parece estar em condições de pagar as boas escolas particulares, e as públicas raramente entram na relação das melhores.
Por isso mesmo, O'Neill acha que a ascensão da classe média mexicana é mais sólida que a brasileira.
Outra comparação favorável ao México: o Banco Mundial, em seu ranking de facilidade para fazer negócios, põe o México em 35º lugar, ao passo que o Brasil vai para o fim da fila, o 127º entre 183 países.
A "Economist" lembra outras vantagens mexicanas: o México já é o maior exportador mundial de televisões de tela plana (sonho de consumo da nova classe média brasileira), de BlackBerrys e do combinado refrigerador/freezer, além de estar subindo no ranking global em automóveis e na área aeroespacial.
Falemos também das sombras, de novo na boca de Shannon O'Neill: "O México tem alguns grandes nós a superar, como seu decrépito setor energético, setores econômicos concentrados [e ineficientes], falta de uma base ampla de financiamento, problemas que o Brasil já enfrentou, até certo ponto".
A ver como esse ascendente México combina com o presidente Peña Nieto, de um partido, o Revolucionário Institucional, tido há anos como antítese da modernidade.

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    Mestra do adeus (Dolores Duran) - Carlos Herculano Lopes‏

    Livro do jornalista Rodrigo Faour resgata a trajetória de Dolores Duran, autora de pérolas da música romântica brasileira. Mulher à frente de seu tempo, a artista morreu aos 29 anos 



    Carlos Herculano Lopes
    Estado de Minas: 02/12/2012 


    Dolores Duran morreu em 1959, mas deixou para o Brasil clássicos como Castigo e Fim de caso
    Dolores Duran não foi cantora de tanto sucesso quanto estrelas de sua geração, a exemplo de Dalva de Oliveira, Ângela Maria e Maysa. Mas essa carioca deixou sua marca inconfundível na história da MPB. Bambas como Milton Nascimento, Carlos Lyra e Elis Regina interpretaram canções dela. Morta em 1959, aos 29 anos, Dolores é a mulher que teve mais composições gravadas na história da música brasileira. A obra da autora dos clássicos Castigo, Fim de caso e A noite do meu bem ganhou cerca de 800 regravações. 

    O jornalista Rodrigo Faour, autor de exaustiva pesquisa sobre a artista, acaba de lançar o livro Dolores Duran – A noite a as canções de uma mulher fascinante. A ideia de contar a vida da compositora e intérprete surgiu há dois anos, enquanto ele organizava a caixa Os anos dourados de Dolores Duran para a gravadora EMI. “Certo dia, mostrei o trabalho para a minha mãe e ela disse: ‘Isso está mais para livro. Por que você não escreve?’”, relembra o jornalista, autor de História sexual da MPB (2006).

    Desafio aceito, Rodrigo arregaçou as mangas. Não foi uma tarefa fácil, mas valeu a pena, pois as surpresas aumentavam à medida que o autor mergulhava na história de Adileia Silva da Rocha, que encantaria o Brasil e o mundo como Dolores Duran. 

    “Até hoje, ninguém conhecia bem a mulher Dolores. Aliás, não se conhecia nem a cantora, logo esquecida. Só as músicas dela eram ouvidas. A cada depoimento, a cada nota de jornal, surgia uma novidade que revelava a mulher que não era bonita, mas carismática, fascinante e à frente do seu tempo”, diz Faour. 

    O jornalista elege Castigo como “a obra-prima atemporal de Dolores”. E lembra que a artista foi, realmente, precoce: aos 16 anos, metia-se a cantar em clubes e na rádio da cidade fluminense de Duque de Caxias, onde morava com a família. Não demorou muito para ela fazer sucesso nas boates da Zona Sul carioca. Aquela menina pobre, filha de nordestinos, tinha tudo para acontecer depressa.

    COMUNISTA Fascinado pela personagem, Rodrigo Faour revela: apesar de ter estudado até a 5ª série, Dolores era intelectualizada, lia grandes escritores e falava várias línguas. “Politizada, ela chegou a ser simpatizante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Como se não bastasse, era boa cozinheira e amiga generosa. Sedutora e namoradeira, não foi uma presa fácil para os homens. Na maioria das vezes, Dolores os escolhia e os descartava quando percebia que não estavam correspondendo”, diz o biógrafo.

    Boêmia, Dolores Duran gostava de terminar as noites no bar bebendo com os amigos, mesmo no ambiente conservador dos anos 1950. Numa daqueles inícios de manhã, a Bochecha, como era chamada pelos íntimos, chegou em casa. Brincou com a filha, Maria Fernanda. Depois, chamou a empregada e disse a frase que entrou para a história: “Rita, querida, estou muito cansada. Vou para a cama e não quero ser incomodada. Se alguém telefonar, não me chame. Quero dormir até morrer!”.

    No outro dia, Rita a encontrou morta. As especulações de que Dolores havia se suicidado, alimentadas por suas últimas palavras, espalharam-se pelo país. Mas elas se revelaram infundadas: o coração calou a mulher que compôs Castigo. 

    DOLORES DURAN
    A noite e as canções de uma mulher fascinante
    De Rodrigo Faour
    Record, 558 páginas, R$ 49,90

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    Novo salmo 23 - AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA‏

    Novo salmo 23 


    AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
    Estado de Minas: 02/12/2012

    Todo mundo sabe o salmo 23 de cor. Até porque a primeira coisa que São Pedro diz a quem quer entrar no céu é isto: “Meu filho, recite aí o salmo 23…”.

    E se você teve, como eu, a chance de saber a Bíblia praticamente de cor, poderá dizer com o júbilo dos remidos:

    “O senhor é o meu pastor

    E nada me faltará

    Deitar-me faz em verdes pastos

    Guia-me mansamente a águas tranquilas

    Refrigera a minha alma

    Guia-me pelas veredas da justiça

    Por amor ao seu nome

    Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte

    Não temeria mal algum

    Porque tu estás comigo

    O teu cajado e tua vara me consolam

    Preparas uma mesa perante mim

    Na presença dos meus inimigos

    Unges meu cabelo com óleo

    E meu cálice transborda

    Certamente que a bondade e misericórdia

    Me seguirão por todos os dias 

    E eu habitarei a casa do Senhor por longos dias”

    Estou pondo isso aqui de memória. Podem crer. Talvez haja uma ou outra pequena diferença no texto, de acordo com o tradutor da Bíblia. Mas, pelo que viram, minha entrada no reino dos céus é tranquila. 

    Outro dia, esse salmo me veio à mente e me ocorreram duas coisas sobre ele. A primeira é que todas as imagens do texto correspondem à vida agrária e pastoril do antigos judeus: ali se fala de pastor, dos pastos verdes, daquele cajado que o pastor usava para conduzir o rebanho e há também algumas referências mais específicas. Por exemplo, aquele “vale da sombra da morte”, dizem os exegetas, não é uma simples imagem, mas seria um vale terrível que se tinha que atravessar. E aquela menção ao óleo que unge a cabeça vem de um ritual de abençoar o eleito.

    Mas não foi só isso o que me ocorreu. E sim um contraponto com o mundo moderno. David, que era rei, experimentou, quando apascentava seus carneiros, aquela vida pastoril e agrária. Era natural que sua poesia retratasse esse cenário. Mas a pergunta que não pode calar é: como ele faria esse salmo hoje?

    Procurei em vão, por minha biblioteca, a Bíblia em “Nova tradução na linguagem de hoje”, que reduziu o vocabulário de 8,38 mil palavras para 4,39 mil. Queria ver como está lá o salmo 23. Como não a achei, fiquei matutando: como será que, em tempos de globalização e internet, o nosso harpista e rei David recitaria seu poema? Claro que ele trocaria a harpa por uma guitarra. Mas acho que iria mais longe e talvez dissesse:
        
    O computador é meu pastor e nada me faltará

    Ele está comigo no escritório, nos verdes pastos ou no banheiro

    E o levo aos restaurantes e estações de águas

    Ele me tranquiliza e angustia

    Me incrimina junto à Justiça e pacifica os amigos do Facebook

    Com ele nem penso na morte

    E não temerei mal algum

    Porque a internet, o Google e o iPad

    Me consolam

    Conectado na rede, nem me dou conta dos inimigos

    Não preciso comer nem beber

    Sou um ungido, uma celebridade eletrônica

    E curtindo a pós-modernidade, 

    Habitarei as redes sociais por longos dias.

    MARTHA MEDEIROS - O pensamento nas pernas

    Zero Hora 02/12/2012

    Sempre acreditei que, se eu quisesse transformar alguma coisa, teria antes que passar por uma racionalização profunda e, posteriormente, por uma compreensão dos fatos. Ou seja, primeiro, pensar bastante para, então, compreender.

    Cumprindo essas duas etapas, atingiria a serenidade buscada, fosse nas questões amorosas, familiares, profissionais, existenciais. A compreensão, como num passe de mágica, soltaria os fios enovelados e só então eu poderia me modificar.

    Acontece que pensar demais cansa. Afirmo com a experiência de uma maratonista cerebral: eu vivia sempre no módulo on, com o cérebro ligado na tomada, descansando só quando dormia, e ainda assim com um olho fechado e outro aberto. Se pensar conduzia à compreensão, bora pensar, para poder entender. Sem entender, acreditava que meu barco ficaria à deriva, noites e dias sob as intempéries, sem atracar em lugar algum.

    Tanta coisa serve de cais: um casamento, uma promoção, uma cura, um projeto, uma bolada, um filho. Estamos sempre indo ao encontro de alguma coisa sensacional que ainda não sabemos o que é nem se iremos encontrar mesmo.

    Pois, diante desse imenso ponto de interrogação que é o futuro de todos nós, reformulei minhas crenças: estou me dando o direito de não pensar tanto, de me cobrar menos ainda, e deixar para compreender depois. Desisti de atracar o barco e resolvi aproveitar a paisagem.

    Primeiro mude, a compreensão virá depois. É mais ou menos o que a filosofia de Nietzche sugere. Ninguém muda apenas através do pensamento. A transformação meramente intelectual é uma presunção, não existe de fato. É preciso colocar o pensamento nas pernas e agir. O corpo é que nos leva para uma nova vida, e não a razão, diz o filósofo num texto chamado “A favor da crítica”.

    Recentemente os integrantes do programa Saia Justa discutiram o que é drama e o que é tragédia, e chegaram à conclusão de que o drama te encarcera, enquanto a tragédia, por mais dolorosa que seja, te coloca em movimento: você sai dela diferente. Do drama você não sai: você fica remoendo, remoendo, remoendo. Excesso de racionalização engessa o sentimento e não te leva pra fora, pra frente.

    De Nietzche a Saia Justa é um salto e tanto, reconheço, mas toda filosofia é bem-vinda, seja acadêmica ou de mesa de bar, de programa de tevê, de coluna de jornal. Estamos aqui para aquilo que os intelectuais rejeitam que se fale em público (mas falo baixinho: ser feliz). E a felicidade não é uma ilha paradisíaca onde nosso barco um dia atracará. A felicidade não é terra firme: ela é o próprio mar.

    Passamos uma vida perseguindo a felicidade, sem reparar que ela está justamente na perseguição. O pensamento nas pernas. O movimento. A ação. Não há muito a compreender além disso.

    Entrevista Tina Brown - Raul Juste Lores


    Homem se sente ameaçado diante de mulher forte
    Diretora da "Newsweek" vem ao Brasil para a conferência Women in the World, que desde 2010 debate direitos igualitários
    RAUL JUSTE LORESDE NOVA YORKLendária editora das revistas "Vanity Fair" e "New Yorker", atual diretora da "Newsweek" e criadora do site Daily Beast, a jornalista Tina Brown chega ao Brasil pelo seu lado ativista.
    Ela vem para realizar a conferência Women in the World [Mulheres no mundo], que lançou em 2010 para debater desafios de direitos igualitários e educação para mulheres no planeta.
    Desde a primeira conferência, Brown reuniu de ativistas africanas e asiáticas a celebridades amigas, como Hillary Clinton, Meryl Streep e Angelina Jolie.
    "Fico muito estimulada quando escuto as mulheres de países onde cada direito ainda precisa ser batalhado. Acho que as americanas ficaram complacentes, mais passivas, já não marcham mais", diz a britânica naturalizada americana.
    Ela recebeu a Folha na sede do conglomerado IAC, o icônico primeiro prédio do arquiteto Frank Gehry em Nova York, atrás do High Line.
    Folha - Um dos temas na campanha presidencial americana foi a chamada "guerra contra as mulheres" de alguns candidatos conservadores. Ainda é guerra?
    Tina Brown - Esta eleição se tornou muito importante porque a Corte Suprema está a apenas um juiz de mudar a maioria que sustenta a aprovação do aborto. Mais um juiz conservador e a lei pode ser revertida.
    Mulheres podem achar os EUA uma terra de oportunidades, de abertura, de se vestir como quiser, falar o que quiser, mas havia esse risco de um grande salto para trás na política reprodutiva.
    Nós nem marchamos mais sobre políticas contraceptivas. Liberdades podem ser demolidas e desaparecer muito rapidamente.
    Ainda temos talebans texanos tentando interferir na saúde da mulher.
    As mulheres ocidentais estão lutando menos?
    Nunca me vi como feminista, mas vendo o que acontece aqui e no Egito penso que deveríamos estar fazendo muito mais. Uma ativista liberiana riu de nós, perguntando, "onde estão as mulheres americanas, que não estão marchando para a Casa Branca?".
    De Angela Merkel a Dilma Rousseff, é comum subordinados e mesmo a mídia se referirem a elas como mulheres duras ou "damas de ferro". As mulheres se endurecem muito nesses cargos?
    Thatcher era uma mulher muito calorosa pessoalmente, sexy, sedutora, eu a conheci. Mas os adjetivos são sempre pejorativos.
    Demos uma capa sobre trabalhos militares pesados e a estrela da reportagem era uma mulher que descia de um helicóptero em operações de risco de resgate.
    Ela é divorciada, tem um filho de dez anos. Ela me contou que, quando a reportagem saiu, seu ex-marido ligou para ela e disse que ainda bem que não eram mais casados. Disse que sentia que seu 'órgão' pareceria menor depois disso. O sucesso dela encolhia sua masculinidade. Incrível como os homens ainda se sentem ameaçados diante de mulheres fortes.
    Mas os homens não estão mudando?
    Olha, precisamos de aliados e normalmente eles são bons pais. O pai da [paquistanesa que sofreu um atentado] Malala a apoiou para estudar. Parte do movimento é de pais mais iluminados, homens que lutam pelos direitos femininos. As mães nesses países não têm direitos.
    Ainda há resistência a uma mulher presidente nos EUA? Ou Hillary pode ser?
    Vocês já têm a sua, incrível, nós nada ainda. Trágico que não tenhamos. Foi mais fácil eleger um afroamericano que uma mulher. E ela deveria ter sido antes dele, era a hora dela. Ela teria sido uma grande presidente.
    Os EUA deveriam exigir mais respeito aos direitos das mulheres de aliados como Arábia Saudita e Egito?
    O mais importante é não ser culturalmente desastrado, como foi o governo Bush. E nisso os EUA vão muito mal. Chegar em um país e tentar impor, sai tudo errado.
    As americanas são obcecadas com a ideia de que as sauditas não possam dirigir. Mas, para elas, o acesso à educação é muito importante. Não poder usar um tailleur não é tão relevante para elas. Não dá pra consertar de fora, nós não conseguimos consertar nem nosso próprio país.
    A redação do "New York Times" é dirigida por uma mulher e Arianna Huffington e você estão entre as mais poderosas mulheres da mídia. Há menos machismo?
    Está um pouquinho mais equilibrado, mas onde estão as mulheres na presidência dos meios de comunicação? Só lembro da Marissa Meyer, do Yahoo. Mulheres recebem muito mais escrutínio que homens. Hillary foi atirada no lixo pela mídia, foi muito maltratada. Somos muito analisadas, criticadas.
    Michelle Obama precisa ser muito cuidadosa e evitar qualquer polêmica. Ela só pode cuidar da sua horta, fazer campanha para que as pessoas se exercitem mais.
    Ela deve ficar louca por não poder falar de nada mais substantivo, mas seria uma gritaria se ela falasse.
    O que espera ver no Brasil?
    Essa conferência que estamos fazendo é bem internacional, tem grandes mulheres e todo o mundo compartilhando histórias. As mulheres saem dali querendo fazer revoluções. Nizan Guanaes me ajudou a levar a conferência para o Brasil. E vocês têm mulheres incríveis.
    Em tempos que, com qualquer probleminha, as pessoas vão chorar no sofá da Oprah, acho incrível mulheres que sofreram tanto, como Dilma e Michelle Bachelet, virarem presidentes na América do Sul.
    Negócios no Brasil à vista?
    Adoraria ter o Daily Beast em português. Farei contatos. A 'Newsweek' tem uma marca forte no Brasil e já decidimos que, das três sucursais que manteremos no mundo, a do Rio é uma delas. Mac Margolis é um grande correspondente.
    Com o fim da versão impressa da "Newsweek", quais são seus planos para o digital?
    Agora o que queremos é ter mais e mais assinantes no tablet e no celular. É um tempo de muitos desafios para a mídia. Decidimos que não dava para continuar no impresso. Custava US$ 40 milhões só para imprimir a "Newsweek". Era um atraso gastar todo esse dinheiro quando as pessoas queriam ler online.
    Vivemos um período muito turbulento, a mídia foi atingida duramente por todos os lados.
    Todo mundo quer saber como fazer dinheiro, como fazer o negócio ser sólido financeiramente.
    Sou otimista aqui em casa, a audiência do Daily Beast cresceu 85% em um ano e esperamos ter um público de 400, 500 mil usuários pagos na "Newsweek" digital.
    A "Newsweek" é mais global, mais reflexiva, analítica, o Daily Beast é mais imediatista, rápido, divertido.
    Como vai pagar essa operação?
    Teremos patrocínio para a "Newsweek" no iPad e teremos um medidor de acesso. Quem ler diversas reportagens vai poder pagar pelo que consumir. Não dá para distribuir seu trabalho de graça. É um erro que a imprensa já cometeu antes.

      RAIO-X TINA BROWN
      Origem: Jornalista e escritora britânica naturalizada americana
      Cargo: Editora-chefe da "Newsweek" e do site "The Daily Beast"
      Obra: "Diana - Crônicas Íntimas" (Ediouro, 2007)
      Iniciativa: Conferências "Women in the World" (Mulheres no Mundo)

      A paixão errada - Ivan Finotti


      Fábio Seixas, meu colega de Folha, nunca foi fã de carros. Gostava mesmo era de futebol. Jogava como zagueiro, comprava a revista "Placar" e colecionava as figurinhas "Futebol Cards" do chiclete Ping Pong. Pensou em fazer medicina esportiva, mas escolheu jornalismo justamente para escrever sobre futebol.

      Só que nunca trabalhou com isso. Logo que entrou no caderno de esportes, foi destacado para cobrir a Fórmula Indy. E, em seguida, passou sete anos viajando o mundo para acompanhar o circo da Fórmula 1 e relatar o noticiário dos pilotos nas páginas deste jornal.
      Marcelo Justo/Folhapress
      Fabio Seixas, com seu Gordini, no Autodromo de Interlagos
      Fabio Seixas, com seu Gordini, no Autodromo de Interlagos
      Em 2003, no autódromo de Interlagos, bateu o olho num carrinho arredondado azul-calcinha. Gamou na hora. Era um Gordini 2 1965, de 40 cavalos de potência, "40 hp de pura emoção", conforme dizia o slogan publicitário da época.
      O carango estava lá para participar de um desfile de carros antigos, e Seixas logo deu um jeito de dar uma volta com ele pela pista do autódromo. Conversou com o dono, ligou para a patroa pedindo permissão e comprou o dito cujo.
      O amor cresceu. Fábio criou o site www.gordini.com.br, em que conta a história do carro, explica que o Dauphine e o Gordini são irmãos e posta fotos do modelão.
      O Dauphine francês foi lançado pela Renault em 1956. A intenção era concorrer com o Fusca, e o sucesso foi imediato.
      Chegou ao Brasil no final de 1959, pelas mãos da Willys. Tinha três marchas, 31 hp de potência e atingia 115 km/h.
      O Gordini, de 1962, foi uma evolução do Dauphine, capitaneada na França pelo mecânico Amadeo Gordini. O visual era o mesmo, porém tinha quatro marchas e os tais "40 hp de pura emoção". E possuía acabamento bem mais luxuoso.
      Desde o ano passado, entretanto, Fábio anda saudoso. Foi trabalhar na sucursal carioca da Folha e, por isso, tem visto pouco sua paixão.
      "A cada 15 dias, meu pai anda com ele pela cidade, para não estragar."
      Mas por que não levou o Gordini para o Rio, ora bolas?
      "Com aquela maresia? Nem morto!"
      Folhapress
      Ivan Finotti é assistente de edição da revista 'Serafina' e jornalista cultural há 20 anos. Recebeu o prêmio Esso de criação gráfica como editor do 'Folhateen' em 2008. Passou ainda por jornais como 'O Estado de S.Paulo', 'Diário de S.Paulo' e 'Notícias Populares' e revistas como 'SuperInteressante'. É co-autor da biografia 'Maldito', sobre Zé do Caixão, e dono de um Maverick 74. Escreve aos domingos, a cada duas semanas, no caderno 'Veículos'.

      Rainha de Marte - Giuliana Miranda


      Brasileira de 50 anos ajudou a Nasa a pousar todos os seus jipes no planeta vermelho e já prepara missão para tentar trazer amostras de lá
      Moacyr Lopes Júnior/Folhapress
      Jacqueline Lyra, da Nasa, fala durante evento em SP
      Jacqueline Lyra, da Nasa, fala durante evento em SP
      GIULIANA MIRANDADE SÃO PAULO
      Na madrugada do último dia 6 de agosto, em Pasadena, na Califórnia, dezenas de cientistas da Nasa acompanhavam apreensivos a chegada do jipe-robô Curiosity ao solo de Marte. A imagem desse time comemorando o sucesso da aterrissagem com gritos e abraços correu o mundo. Uma brasileira, no entanto, preferiu não estar lá.
      "Resolvi deixar espaço para a nova geração. Eu já vivi tudo isso, agora chegou a vez da renovação", diz a engenheira carioca Jacqueline Lyra, 50, que chefiou o controle de temperatura da missão, mas escolheu assistir à chegada do jipe longe dos holofotes, com a família e outros cientistas no Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia).
      Funcionária da Nasa há 24 anos, Jacqueline é uma espécie de rainha de Marte.
      Das oito sondas que conseguiram realizar a difícil aterrissagem no planeta vermelho, quatro tiveram a participação dela: o pequeno Sojourner, em 1997, os robôs gêmeos Spirit e Opportunity, em 2004, e agora o Curiosity.
      Da primeira vez que "chegou" ao planeta vermelho, em 1997, Jacqueline deu um jeito de levar um pouquinho do Brasil até lá. Ela virou notícia ao colocar o samba "Coisinha do Pai" para tocar em plena superfície marciana.
      "A Jackie é extremamente talentosa, e as pessoas na Nasa têm um carinho muito grande por ela. Ela tem um jeitinho brasileiro que faz toda a diferença", diz Paulo de Souza, cientista brasileiro que trabalha em projetos da Nasa ligados à Marte.
      Mesmo não estando fisicamente nos laboratórios da agência, Souza, que hoje é professor na Universidade da Tasmânia (Austrália), diz que é como se a equipe dos projetos ligados a Marte fosse uma "grande família", com todos torcendo pelo sucesso dos companheiros.
      UM ANO DEPOIS
      Na última terça-feira, exatamente um ano após o lançamento de sua última empreitada, o Curiosity, a engenheira esteve no Brasil para falar do projeto, no evento LatinDisplay, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
      Marte é considerado o Triângulo das Bermudas do Sistema Solar, com mais de dois terços das missões com destino ao planeta tendo se perdido pelo caminho ou simplesmente não funcionando ao chegar lá.
      Por isso, o jipão atual da Nasa, que é do mesmo tamanho de um utilitário aqui da Terra, é tão importante. São dez instrumentos e 17 câmeras esmiuçando o lugar em busca de pistas de que possa ter existido vida por lá.
      "Eu fico arrepiada toda vez que vejo o vídeo do pouso e penso no desafio que foi chegar até lá", conta Jacqueline, em uma conversa em que o leve sotaque carioca se mistura a expressões em inglês.
      A ida para os EUA, feita em 1981, era para durar apenas um mês, mas acabou se estendendo até hoje.
      "Eu queria ser astronauta, fazer algo ligado ao espaço. Para isso, eu sabia que precisava entrar em uma faculdade de engenharia aeroespacial. Mas no Brasil, no fim da década de 1970, não havia opções para uma mulher que quisesse fazer isso. Os institutos militares, que tinham cursos da área, não aceitavam meninas", explica.
      EXPERIMENTO
      Como tinha um irmão que morava nos EUA, Jacqueline decidiu passar uma pequena temporada com ele para "ver como era" a vida por lá. Acabou ficando, formando-se pelo Instituto de Tecnologia de Nova York e, em 1988, entrando para os quadros da Nasa.
      No Laboratório de Propulsão a Jato da agência, dedicou boa parte de seu trabalho ao planeta vermelho, com exceção de um breve período focando em Saturno.
      A engenheira fala com empolgação do projeto do Curiosity, mas diz que agora os esforços estão mesmo concentrados na próxima missão marciana, que deve acontecer entre 2018 e 2020.
      "O grande sonho é conseguir trazer de volta à Terra alguma amostra de material."
      Sobre os boatos que rondam o próximo anúncio da missão, descrito como "revolucionário" por fontes da Nasa, a carioca desconversa.
      "Também estou curiosa para saber do que se trata."

      Recriando o Universo - Marcelo Gleiser


      Como simular o passado num acelerador? Basta lembrar da infância quente e densa do nosso Universo
      A cosmologia apresenta um problema de ordem prática um tanto complicado: fica difícil fazer experiências com outros universos no laboratório. Temos o nosso único exemplo e basta. O jeito é estudar as suas propriedades -os tipos de matéria que existem nele, a sua temperatura, o seu tamanho, a sua história- e tentar criar explicações plausíveis que as justifiquem.
      Alguns físicos chegaram até a especular se seria possível criar um miniuniverso no laboratório. Infelizmente, isso não parece viável.
      Universos como o nosso, que têm um momento de origem, carregam com eles a marca do seu passado no que chamamos de "singularidade", em que o tempo começa (o t=0 do relógio cósmico) e o espaço é um ponto de volume zero.
      O problema é que, como as leis da física deixam de fazer sentido na singularidade, não sabemos como lidar com ela. Temos de nos contentar com o nosso único Cosmo, estudando-o da melhor forma possível.
      Existem duas formas de estudar as propriedades do Universo: recolhendo informação diretamente, pela observação dos objetos que podemos detectar (estrelas, galáxias, buracos negros), e simulando tais propriedades no laboratório.
      Não podemos criar universos na bancada, mas podemos recriar partes da história cósmica. Esses "laboratórios" são de dois tipos: colisores de partículas, como o europeu LHC (Grande Colisor de Hádrons), na Suíça, onde foi descoberto o bóson de Higgs em julho, e simulações em computadores.
      Como simular o passado cósmico num acelerador de partículas? Basta lembrar que, segundo o modelo do Big Bang, nosso Universo teve uma infância muito quente e densa, em que a matéria que hoje constitui galáxias, planetas e pessoas estava ainda separada em seus componentes mais fundamentais: elétrons e quarks. (Quarks são os integrantes dos prótons e nêutrons.)
      Isso porque as ligações entre as partículas de matéria só ocorrem quando não existem forças capazes de separá-las. No passado cósmico, o calor era tão intenso, e a densidade de partículas tão grande (feito um trem da Central do Brasil no final da tarde), que era impossível, que quarks se juntassem para formar um próton, ou que prótons e elétrons se juntassem para formar um átomo de hidrogênio.
      Prótons só se formam em torno de um milionésimo de segundo após o "bang", enquanto átomos só se formam 400 mil anos após o "bang".
      Quando cientistas do LHC colidem prótons contra prótons (ou átomos) viajando perto da velocidade da luz, as energias das colisões são tão intensas que reproduzem, por frações de segundo, condições semelhantes às que existiam quando o Cosmo tinha apenas milionésimos de segundo de existência.
      Com isso, os físicos viajam ao passado e estudam a infância cósmica de forma controlada. Resultados recentes mostram que algumas partículas que escapam da região da colisão viajando em sentidos opostos mantêm uma estranha ligação entre si: fazem caminhos iguais, como se uma soubesse da outra.
      Esse efeito, talvez o emaranhamento da física atômica, não havia sido visto ainda nas colisões de partículas. Ao estudarmos a Natureza com novas ferramentas, o inusitado parece ser inevitável.

        Luz vermelha - Tereza Cruvinel‏


        Estado de Minas: 02/12/2012 
        A semana promete temperaturas elevadas. Na terça-feira, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, falará na Câmara sobre a Operação Porto Seguro, que excita o campo anti-Lula pelo envolvimento da ex-chefe de gabinete do escritório da Presidência em São Paulo com uma rede que traficava influência em órgãos federais. Sua proximidade com Lula anima os praticantes do tiro ao alvo contra o ex-presidente. Na quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF), finalizando o julgamento do mensalão, decidirá sobre a perda dos mandatos dos deputados condenados. Eventos laterais, como a votação do relatório, agora desidratado, da CPI do Cachoeira, ajudam a esquentar o ambiente. E vamos assim mergulhando numa política pautada pela polícia, o Ministério Público, as CPIs e o Judiciário, e não pelo confronto de ideias e projetos.

        Começando pelo que fará o Supremo, se não houver alguma mediação entre a Corte e o Congresso, assistiremos a uma tensão entre poderes — para evitar a palavra crise — sem precedentes depois da redemocratização. Desde que o ex-ministro Cezar Peluso se aposentou em agosto, e ao antecipar a pena para o deputado João Paulo Cunha (PT-SP), nela incluiu a perda do mandato, o presidente da Câmara, Marco Maia (PT-SP), vem advertindo que a cassação é uma prerrogativa da Câmara. Simultaneamente, ganhou corpo no Supremo, já contando com cinco votos, a inclinação para determinar a perda automática dos mandatos pelos condenados. O duelo está marcado.

        Marco Maia não preconiza, com sua posição, que eles não devam ser cassados. O que ele defende é a observância do artigo 55 da Constituição, que reserva às Casas do Congresso a prerrogativa de cassar mandatos em seis situações. Em alguns casos, a decisão será da Mesa, em outros, dependerá de aprovação da maioria absoluta, por voto secreto, rito que se aplicaria ao caso de deputados condenados, com pena já transitada em julgado. Ou seja, os constituintes entenderam que os condenados devem enfrentar o processo de cassação, mas conduzido pela Câmara, e não por determinação do Supremo.

        O ministro Marco Aurélio, um dos cincos que defendem a guilhotinagem pelo Supremo, acha que esse rito não se aplica quando a cassação integra a própria pena imposta ao réu. Mas boa parte do Congresso e do meio jurídico acha que cassação não é pena. Deve ser consequência da condenação, mas aplicada pelas casas parlamentares. Se, pela primeira vez na história, o Supremo cassar mandatos, estará sobrepondo-se ao Legislativo, quebrando a independência entre os poderes. Tem se recordado, indevidamente, o caso de Chico Pinto, combativo deputado do MDB na ditadura. Em 1974, o STF, vergonhosamente, curvou-se aos generais, condenando-o a seis meses de prisão por ter chamado Augusto Pinochet, que visitava o Brasil, de ditador. Mas quem o cassou, também vergonhosamente, foi a Mesa da Câmara, controlada pelo regime.

        O presidente-relator, Joaquim Barbosa, que até aqui ganhou todas no julgamento em curso, está determinado a promover mais essa inovação. Uma evidência de que o procedimento seria inédito está no fato de que, em 2010, o Supremo condenou o deputado Natan Donadon a 13 anos e 4 meses de prisão, por formação de quadrilha e peculato em Rondônia, antes de eleger-se. Não lhe tirou o mandato nem a Câmara deu início ao processo de cassação: por conta dos recursos, não se concluiu ainda o trânsito em julgado. Mas fará isso, quando for a hora.

        O que pode acontecer se, na quarta-feira, o STF determinar a perda de mandato pelos deputados João Paulo Cunha, Valdemar Costa Neto e Pedro Henry? A decisão de Marco Maia está tomada: não dará início ao procedimento enquanto os trâmites do julgamento não estiverem concluídos, o que pode levar alguns meses, por conta dos recursos. Os três deputados permanecerão na Casa e a eles se juntará, em janeiro, José Genoino, que assumirá como suplente. Como reagiria o STF? Um dos ministros especula, reservadamente, que o tribunal poderia processar o presidente da Câmara por “descumprimento de preceito fundamental” nos termos do parágrafo primeiro do inciso III do artigo 102 da Constituição. Um verdadeiro angu institucional.

        Mas há outra curva no caminho. Se a demanda persistir até fevereiro, quando será eleito o sucessor de Maia, o tema das cassações certamente contaminará um processo que começa a dar sinais (pelo surgimento de duas candidaturas avulsas) de que pode não ser pacífico. Em outros tempos, nessas horas entravam em cena bombeiros e mediadores com crédito nos dois lados. Mas tais figuras já não existem na política atual do pugilato, que faz piscar a luz vermelha no painel da vigília democrática.

        Lula e Dilma
        Vivemos num país animado, onde quatro instituições do Estado, em nome da independência (que deve ser operacional, mas não política), fazem o que bem entendem: a Polícia Federal, a Receita Federal, a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público. Seus servidores, premiados com as invejadas “carreiras de Estado”, agem como nobiliarquia do serviço público, como se viu na greve de julho. O ministro da Justiça ignorava a Operação Porto Seguro. Da Polícia Federal vem a informação de que o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general José Elito, teria sido informado dois dias antes das buscas e apreensões no escritório presidencial. Teria avisado Dilma? Se ela não soube, é grave. Se ela soube e deixou correr, está aí um elemento que, pela primeira vez, pode tisnar as relações com Lula. Some-se o fato de que, ao demitir Rosemary, decidiu também extinguir o cargo que ela ocupava, como a dizer que ele era desnecessário. E, por fim, teria dito um “se quiserem convocar, convoquem”, apesar de todo o esforço do PT para evitar depoimentos dos investigados menos graduados.
        Algumas

        A deputada Rose de Freitas avisou a seu partido, o PMDB: vai até o fim com a candidatura a presidente da Câmara, disposta a bater chapa com o líder do partido, Henrique Eduardo Alves. Ela calcula existirem quase 200 deputados que não votariam nele.

        Já o deputado Júlio Delgado, do PSB, está mais retraído. O discurso do presidente do partido, Eduardo Campos, na sexta-feira, falando aos prefeitos eleitos, foi na linha “por ora, ficaremos no governo e precisamos ajudar a presidente”.

        Na terça-feira, os tucanos fazem a festa em Brasília. Mais de 500 dos 702 prefeitos eleitos este ano participam do evento “faça um bom mandato: informações e reflexões para a gestão municipal”. Organizado pelo presidente da sigla, Sérgio Guerra, terá direito à presença de Fernando Henrique e Aécio Neves.
        Do senador Fernando Collor sobre o relator Odair Cunha, que retirou um jornalista e o procurador-geral do relatório final da CPI do Cachoeira: “Ele vai ter que nos explicar como foi que, em poucas horas, suas convicções sofreram tão grande alteração”.

        As origens da batalha entre o Clarín e o governo argentino


        Guerra retórica
        SYLVIA COLOMBORESUMO A batalha que opõe o Clarín e o governo de Cristina Kirchner se acirra com a proximidade do prazo para que o grupo midiático, acusado de monopólio, se desfaça de canais de TV e rádios. Autora de livro-reportagem sobre o conflito repassa as relações do Clarín com o poder e comenta o panorama jornalístico no país.
        "GANHAMOS DA IMPRENSA!". Foi assim que o peronista Carlos Menem comemorou sua reeleição à Presidência da Argentina, em 1995. A celebração dá mostra de como é tensa a relação entre os grandes jornais, em especial o "Clarín", e o poder na Argentina.
        A tensão, hoje, é uma guerra aberta. De um lado, o governo da presidente Cristina Kirchner pressiona pela aplicação total da Lei de Mídia, aprovada em 2009, que obriga o grupo Clarín a acatar duas cláusulas antimonopólio, suspensas pela Justiça até esta sexta (7), e abrir mão de licenças de rádio e TV. De outro, o Clarín responde com manchetes agressivas e reportagens com denúncias de escândalos em seus canais de notícias, rádios e programas televisivos.
        "Na verdade, o que os Kirchner estão fazendo desde 2008 já era a vontade de vários presidentes antes deles", diz a jornalista Graciela Mochkofsky, autora de "Pecado Original - Clarín, los Kirchner y la Lucha por el Poder" (Planeta). O livro esquadrinha a formação do conglomerado desde o regime militar (1976-83), quando houve a compra da indústria de papel-jornal Papel Prensa e uma aliança entre o Clarín e a ditadura. Seguiu-se uma relação de troca de favores e benefícios entre o grupo e governos democráticos, entre períodos de apoio político e rupturas.
        Elogiado pelo raro equilíbrio num país tomado pela batalha midiática levada a cabo pelos Kirchner, o livro traz à tona bastidores das decisões políticas que favoreceram o Clarín, como a mudança da lei de meios de comunicação dos anos 90 que deu ao grupo um dos canais de TV aberta mais importantes do país. Descreve também inúmeras reuniões secretas de Néstor Kirchner (1950-2010) com o empresário Hector Magnetto numa época em que a empresa e os K eram aliados.
        Graciela trabalhou nos jornais "Pagina/12" e "La Nación". Depois de períodos de estudos nos EUA, voltou à Argentina, passou a trabalhar como jornalista independente e lançou seis livros. Também fundou o site "El Puercoespín", sobre política latino-americana.
        Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista que concedeu à Folha, em Buenos Aires.
        Folha - O jornal "Clarín" foi fundado nos anos 40. Por que retratar sua trajetória a partir da ditadura?
        Graciela Mochkosky - Porque foi nessa época que o Clarín começou a pensar-se como um grande grupo multimídia. A compra da Papel Prensa [na qual é sócio do "La Nación" e do Estado argentino] começou a indicar o tamanho do poderio que viria a ter. Para isso, associou-se ao regime militar. É curioso que hoje a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) defenda tanto o Clarín quando, na época, criticou a associação do grupo com a ditadura.
        Hoje a principal figura do Clarín é o empresário Hector Magnetto. Como foi sua ascensão no grupo?
        Magnetto começou como contador, um funcionário muito ambicioso. Aos poucos foi ganhando a confiança da viúva Herrera de Noble. Tomou o lugar de Rogelio Frigerio, um homem de muita influência na política argentina dos anos 50 e 60, um dos defensores do desenvolvimentismo argentino, do qual o Clarín foi apoiador.
        Magnetto é quem imagina a empresa como um conglomerado, quem negocia as licenças de rádio e TV, quem faz alianças com políticos de diferentes orientações.
        Aos poucos, por sua habilidade em manobras externas e internas, tornou-se a figura na qual a viúva mais confia. Comprou ações e se transformou em proprietário e CEO. Hoje, Ernestina tem 34% das ações. Magnetto, 33%. Há dois sócios menores, com cerca de 14%, e o resto está diluído entre pequenos acionistas. Ernestina é hoje uma mulher idosa e está doente. Portanto Magnetto é praticamente o único mandachuva da empresa.
        Foi Magnetto que começou as costuras políticas com os governos?
        Sim, principalmente com os democráticos. O Clarín sempre tentou condicionar o poder político para obter vantagens econômicas. É por isso que em toda a classe política há uma espécie de satisfação com sua perda de influência.
        Os argumentos de Raúl Alfonsín (da União Cívica Radical, presidente entre 1983 e 1989) contra o grupo são muito parecidos com os do governo peronista atual.
        Quis muito mostrar isso. No fundo, o que os Kirchner estão fazendo é um desejo de presidentes que vieram antes deles. Alfonsín ficará na história como um democrata, e não se trata de tirar o mérito histórico dele, pois teve um papel importante na volta da democracia, no julgamento das juntas militares. Mas quando se trata da relação com a imprensa, Alfonsín foi muito duro. Acusava o Clarín de ser da oposição e pressionou para calá-lo. Mandou, por exemplo, a Afip (Receita Federal) se instalar no jornal por meses. Mais ou menos como o kirchnerismo faz agora para pressionar empresas.
        Menem também teve uma relação conflituosa com o grupo.
        Sim, muito. Menem governou com a imprensa toda contra ele. Também foi reeleito, em 1995, com toda a imprensa o criticando. Mas não foi sempre assim. Logo que assumiu, Menem se aproximou do "Clarín" e alterou a lei de mídia da época para permitir que o grupo comprasse o Canal 13, da TV aberta. Para isso, fez-se uma licitação pública, mas todos sabemos que houve um acordo político.
        Menem pensava que estaria comprando o apoio de Magnetto para toda a sua gestão. Só que a imprensa começou a se virar contra ele por causa de uma série de denúncias de corrupção feitas pelo "Pagina/12" e que foram "compradas" pelo "Clarín". Foi nessa época que comecei a trabalhar como jornalista. Com poucas exceções, nós nos sentíamos em uma cruzada contra o governo. A mídia não estava dividida, os poucos jornalistas que se diziam a favor de Menem eram malvistos.
        Não éramos só críticos, mas oposicionistas, e nos considerávamos independentes, tanto quem trabalhava na grande imprensa como os alternativos. Na verdade, nos apoiávamos numa espécie de consenso da classe média de que era preciso criticar Menem. Criou-se uma espécie de irmandade.
        À época, a imagem que a sociedade tinha do jornalismo era outra?
        Completamente. Nós, jornalistas, tínhamos um prestígio social enorme. Para a população, nossa credibilidade estava acima da Igreja, dos políticos, da Justiça, dos sindicatos. Todos estavam desprestigiados, menos nós.
        Quando isso começou a mudar?
        Com a crise política e econômica de 2001, que fez com que a população se voltasse contra os políticos. A frase "que se vayan todos" também se referia a um tipo de jornalismo corrupto e comprometido com forças políticas que estava muito presente. Os jornais passaram a ser desprestigiados.
        A publicidade caiu muito e os recursos diminuíram. Com isso, nomes importantes começaram a deixar as Redações. Gente jovem perdeu a ilusão com a imprensa e preferiu sair para fazer outra coisa.
        Saí da grande imprensa em 2003, para escrever livros e colaborar com outras publicações. A minha geração sentia que não havia espaço para um jornalismo renovado e de qualidade, e que para isso era preciso deixar a grande imprensa. Foi um momento crítico. O "Clarín" e o "La Nación" achavam que iam desaparecer ou que seriam vendidos a jornais estrangeiros.
        Foi nesse contexto que Néstor Kirchner (1950-2010) chegou ao poder.
        Sim, ele assumiu como presidente numa época em que a sociedade já não acreditava na imprensa. Mas ele se uniu ao grupo, ficou amigo de Magnetto e ficou fascinado com essa aliança. Kirchner veio da província de Santa Cruz como um desconhecido, foi eleito com apenas 22% dos votos e só assumiu porque Menem deixou a disputa. Foi fácil deixar-se seduzir pela relação privilegiada com um meio de comunicação. No poder, fez uma série de alianças, entre elas com o Clarín, de quem acreditava precisar.
        O jornal passou a ter todos os "furos" [notícias exclusivas] do governo. O inimigo do kirchnerismo era o "La Nación", por estar na oposição ideológica. Era um jornal conservador que havia apoiado a ditadura. Néstor o criticava enquanto tomava café com Magnetto e passava furos ao "Clarín".
        O conflito com os ruralistas, em 2008, por causa do aumento dos impostos, mudou o panorama?
        Sim. O Clarín decidiu ficar ao lado dos ruralistas, mas não só por uma questão política. O governo se achava em decadência, a popularidade de Cristina caía. A classe média, que já não tinha votado nela, ia se decepcionando. A empresa começou a pensar no negócio, não era bom perder audiência.
        Lançar Cristina para a sucessão teve impacto negativo nessa relação?
        Sim, o Clarín não queria Cristina como candidata. A versão que corre é que Magnetto sempre foi contra a reeleição, desde a de Menem.
        E a relação de Cristina com o Clarín?
        Nunca foi boa. Sumiram os cafés e os almoços com Magnetto. Cristina o encontrava de forma protocolar, e sempre dizia a Néstor que o Clarín os trairia. Então passaram a acontecer coisas que fortaleceram essa ideia. Cristina caía nas pesquisas, logo após Néstor conceder a fusão das empresas Multicanal e Globovisión, que favoreceu o Clarín. O jornal começou a fazer oposição e Néstor se sentiu traído.
        Em quanto tempo se deu a ruptura?
        A ruptura do Clarín com o governo foi um processo de um ano. Começou com o problema com os ruralistas e teve seu ponto máximo nas eleições legislativas de 2009, com a dura derrota sofrida pelo kirchnerismo. Começou, então, uma guerra retórica, logo apareceram nos atos públicos os primeiros cartazes e camisetas com os dizeres: "Clarín mente". O governo cortou as fontes oficiais para jornalistas do grupo e o jornal ficou sem acesso à informação estatal. A derrota nas eleições legislativas doeu muito ao kirchnerismo, até porque o próprio Néstor perdeu como candidato a deputado por Santa Cruz.
        Que momentos você destaca como os mais importantes dessa guerra?
        Depois das eleições de junho de 2009, começou uma série de investidas do governo, que foram respondidas pelo Clarín com fortes denúncias contra o governo.
        A estatização da transmissão de futebol, quando a Associação do Futebol Argentino tirou os direitos do Clarín e os passou à TV Pública. Depois, a campanha para pressionar a viúva Herrera de Noble a fazer o exame de DNA de seus filhos adotivos, convencidos de que eram filhos de desaparecidos [os exames, porém, deram negativo].
        Em 2009, veio a aprovação da Lei de Mídia -que estabelece medidas antimonopólio-, desenhada para tirar o poder do Clarín. Tudo isso foi acompanhado por uma batalha verbal muito forte, que só veio aumentando até agora.
        A guerra midiática prejudica a qualidade do jornalismo argentino?
        Bastante. A Argentina tem uma tradição jornalística muito longa e boa, que já foi exemplo para outros países da América Latina.
        Dá para voltar ao passado e evocar desde o jornal "Crítica", de Natalio Botana, no começo do século 20, no qual escreveram grandes escritores como Jorge Luis Borges, Raúl González Tuñón, Roberto Arlt, até a revista "Primera Plana", nos anos 60, na qual escreveu uma geração inteira de grandes jornalistas. Mais recentemente, o melhor modelo foi o "Pagina/12" no começo dos anos 90.
        Hoje, a precisão jornalística não é uma preocupação. Os correspondentes estrangeiros ou jornalistas que visitam o país me perguntam: "o que ler?", porque não encontram fontes confiáveis, imparciais. Tamanha energia é gasta com o enfrentamento com o governo, que o jornalismo fica para o segundo plano. Isso é muito ruim para a reputação do jornalismo local.

          Ópera nos céus


          Camelos e helicópteros na peça de Stockhausen
          DARIO DE NEGREIROSGUSTAVO ALFAIXRESUMO Nome central da música erudita na segunda metade do século 20, o alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007) teve sua ópera "Quarta-feira de Luz", que faz parte do ciclo "Licht", montada pela primeira vez, em agosto, na Inglaterra. A Folha assistiu à première, que incluiu quarteto de cordas com helicópteros.
          EM UMA QUARTA-FEIRA, centenas de pessoas se reúnem em uma indústria química desativada em Birmingham, na Inglaterra. Dois camelos lhes dão as boas-vindas, enquanto helicópteros sobrevoam o local. Elas procuram um lugar para sentar, comem frango com curry e seguram copos de cerveja, quando uma grande porta de ferro se fecha e as luzes se apagam.
          Quatro conjuntos de alto-falantes reproduzem durante 54 minutos sons eletrônicos, sinos, cavalos relinchando, ruídos de código Morse. Periodicamente, luzes revelam atores que realizam encenações. "Quarta-feira: saudações!", diz a gravação, e um forte neon amarelo se acende em uma passagem estreita. Começa a ópera.
          Talvez quem escute pela primeira vez uma peça do compositor alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007) prefira classificá-la como barulho, e não como música. Essa é, afinal, a maneira como opomos os sons que percebemos como caóticos e desagradáveis àqueles que são capazes de nos expressar algum sentido.
          Mas, se Stockhausen é considerado um dos maiores compositores do século 20, o que teria acontecido com a música erudita para que, hoje, tantos ouvintes sequer a qualifiquem como música?
          "Em 1945, havia um sentimento de que era necessário reconstruir um sistema musical inteiro do nada", conta o compositor inglês Richard Barrett. "E também era necessário, com o fim da Segunda Guerra Mundial, reconstruir o continente europeu do nada."
          No pós-Guerra, a procura por um recomeço não se restringiu às mesas de discussão política. Como se o tipo de racionalidade que trouxe a barbárie ao seio da civilização ocidental estivesse espalhada por todos os cantos, inclusive na arte.
          Na música de Stockhausen, os ritmos parecem muitas vezes sem sentido, irregulares. Mas como apreciar um ritmo regular, perguntava ele, depois de passar décadas ouvindo os soldados nazistas marchando?
          'COM LICENÇA' No céu, os líderes do mundo se reúnem. "Parlamento do mundo", diz o presidente, "aqui, o nosso assunto é o amor".
          Dezenas de parlamentares, discutindo em línguas desconhecidas e cantando em 12 ritmos diferentes, formam uma grande massa sonora. Bruscamente a música é interrompida: "Com licença!", grita um funcionário, "alguém estacionou em lugar proibido e seu carro está prestes a ser guinchado." Desesperado, o presidente abandona a sessão.
          O ciclo de óperas "Licht" ("Luz", em alemão) possui cerca de 29 horas de música divididas em sete partes, uma para cada dia da semana, e que levaram 26 anos para serem escritas. O Parlamento do Mundo é a primeira cena de "Quarta-feira de Luz", cuja estreia mundial aconteceu em 22 de agosto deste ano, uma quarta-feira em que Stockhausen completaria 84 anos.
          Na montagem, quase não há separação física entre artistas e público. Cantores "à paisana" levantam-se no meio da plateia para assumir o protagonismo da peça e o próprio diretor, Graham Vick, conduz o público de um galpão a outro da fábrica. Esse teatro de coxias transparentes ilustra bem uma tendência da música contemporânea: em vez de tentar parecer natural, espontânea, ela expõe seu próprio esqueleto, desnuda sua estrutura, como um mágico que diverte o público não com sua bela auxiliar voadora, mas com as cordas que sustentam seu voo.
          Tal obsessão pela exposição de seus próprios processos construtivos vem como reação à música clássica e romântica, que se esforça para parecer "natural". Em uma passagem do filme "George & Frédéric" (1991), de James Lapine, o compositor romântico Frédéric Chopin (1810-49), interpretado por Hugh Grant, diz que as pessoas não sabem quanta matemática é preciso usar para compor uma peça que aparente não ter usado matemática alguma. Como se por trás da música não houvesse cálculos, não existisse construção humana.
          Mostrar ao público aquilo que se esconde atrás do palco, negando todo e qualquer tipo de naturalização, é o primeiro passo de quem quer transformar as fronteiras que separam música e ruído.
          CUBO SONORO O oboé é o primeiro a se apresentar, seguido por outros instrumentos da orquestra sinfônica tradicional. Mas o palco está no teto do galpão, os espectadores, deitados em colchões, e os onze músicos tocam seus instrumentos sentados em plataformas transparentes dependuradas por cabos de aço.
          Cada solo é acompanhado por sons eletrônicos e concretos reproduzidos em oito canais de saída de áudio, que nos colocam dentro de um cubo sonoro. O modo como o som dança pelos alto-falantes passa a ser, na música nova, um dos elementos principais da obra. A busca por um novo tipo de música fez de Stockhausen uma espécie de cientista. Com base em suas concepções, foi construída em 1970 na Feira Mundial de Osaka, no Japão, a primeira sala de concertos esférica do mundo, com 50 grupos de alto-falantes espalhados por um grande globo.
          Na década de 50, os sons eletrônicos sintetizados em seu laboratório em Colônia, na Alemanha, ganharam fama mundial e influenciaram artistas eruditos e populares. Ao ponto de, em 1967, os Beatles colocarem seu rosto na capa de "Sgt. Pepper's". Stockhausen está na última fila, o quinto da esquerda para a direita, perto de Carl Jung e Edgar Allan Poe.
          'UM', 'DOIS', 'TRÊS' Levar a música aos céus, dizia Stockhausen, sempre havia sido seu sonho. Mas esta vontade de libertar a música dos limites de uma sala de concerto só encontraria sua realização radical na terceira cena de "Quarta-feira", com o Quarteto de Cordas com Helicópteros.
          Ainda na fábrica, o quarteto é apresentado ao público: duas violinistas, um violista e uma violoncelista. Eles deixam o palco, tomam uma van e embarcam cada um em um helicóptero, enquanto suas imagens são transmitidas ao vivo em quatro telões.
          Sobrevoando a cidade durante 32 minutos, os músicos tocam sons que mimetizam o barulho das aeronaves e acompanham com precisão, através de pontos eletrônicos, dezenas de mudanças de ritmo. "Um!", grita a violoncelista, seguida pelos seus companheiros: "dois!", "três!", "quatro!". Com a contagem, o público percebe que os quatro estão tocando em absoluta sincronia.
          Quando lhe encomendaram uma peça para quarteto de cordas, em 1991, Stockhausen havia decidido recusar o convite. Como nunca separou forma e conteúdo, dizia, não podia escrever algo para uma formação típica do século 18.
          Mas o compositor parece ter vislumbrado, ali, a oportunidade de encenar um encontro paradoxal: o da enorme distância e da intensa conexão entre a nova arte e a tradição. Afinal, se foi o processo de elaboração da linguagem musical que trouxe a necessidade de sua própria desconstrução, a ruptura pode ser vista, aqui, como um tipo particular de continuidade.
          Nada melhor, então, do que fazer uma das formações mais usadas pelos clássicos alçar voo em máquinas do século 20, sincronizando tempos distintos. "Nós estamos muito longe uns dos outros, no céu", conta Emma Smith, uma das violinistas do quarteto. "E o sentimento de que mesmo assim podemos nos encontrar, em sincronia, é fascinante."
          'SUPERFÓRMULA' Do meio da plateia, um cantor escuta a um rádio e imita ruídos de interferência. Um camelo entra em cena e defeca sete globos coloridos, pouco antes de o coro seduzi-lo com uma garrafa de champanhe gigante.
          Para a musicóloga Katerina Grohmann, que dedicou seu doutorado ao estudo desta ópera, não há uma narrativa linear conectando todas as cenas. "As personagens são representadas por estruturas musicais, por fórmulas", explica.
          Uma "superfórmula" define previamente a estrutura de todo o ciclo "Licht". Nela, os personagens principais da ópera possuem cada qual uma espécie de estrutura sonora, o que lhes permite aparecer não apenas fisicamente, no palco, mas também como puro som. "O público, segundo Stockhausen, seria capaz de entender quem eles são de uma maneira puramente musical", conta Katerina.
          Identificar a fórmula de cada personagem não é, entretanto, uma tarefa fácil. Mas será necessário ser um especialista para poder apreciar Stockhausen?
          "Eu não digo que escutar Stockhausen seja tão fácil quanto ouvir Rolling Stones", diz Richard Barrett. "No entanto, a forma mais empolgante de se aproximar não é se tornando especialista, mas, ao contrário, deixando de lado tudo o que você conhece sobre música". Modo de aproximação que coloca o leigo em situação de vantagem em relação ao estudioso.
          "Este show é para o público em geral", diz o diretor Graham Vick. "Crianças, pessoas que não conhecem música, vão pegar muito mais rápido." É a mesma opinião do professor de filosofia da USP e crítico musical Lorenzo Mammì, que começou a se interessar pela música contemporânea ouvindo free jazz. "O caminho para apreciar é surpreendente. A primeira coisa a fazer é se abandonar à sonoridade", diz. "Não tente impor um significado imediatamente, viaje um pouquinho!".
          A respeito de outro compositor alemão do século 20, o músico norte-americano Steve Reich afirmou, certa vez: "O carteiro nunca irá assoviar [Arnold] Schönberg".
          Indagado se um dia o carteiro irá assoviar Stockhausen, Barrett resume a expectativa que anima os compositores contemporâneos, em sua espera por um novo público: "Creio que não falta muito tempo para que não existam mais carteiros".