sábado, 25 de outubro de 2014

A Hora do Povo - João Paulo

OLHAR » A hora do povo


Eleição não encerra o compromisso com democracia. É um passo importante, mas é apenas o primeiro


João Paulo
Estado de MInas: 25/10/2014



Um programa completo de governo traduzido na linguagem estética e política das ruas (Uelsei Marcelino/Reuters)
Um programa completo de governo traduzido na linguagem estética e política das ruas

O Brasil chega hoje, véspera do segundo turno da eleição presidencial, com o mais acirrado cenário de disputa desde o restabelecimento da democracia no país. O que é ótimo. Apesar da guerra de nervos e das interpretações que falam em divisão e ódio de classes, a situação precisa ser festejada: os cidadãos sabem o que querem. E, de forma plural e salutar, desejam coisas muito diferentes.

É disso que trata uma eleição, da disputa de projetos, ancorados no desejo dos cidadãos e na história de quem os propõe. O dissenso, nesse momento, é única garantia democrática que temos. Dele advém a governabilidade, por um lado, e a oposição responsável, por outro. A comemoração da vitória ou o lamento da derrota serão apenas a sombra da responsabilidade que deve se seguir aos resultados de amanhã.

O fato de a reforma política ter entrado com tanta força nessa eleição é também sinal de maturidade. Impulsionada pela sociedade em junho do ano passado, nas ruas de todo o país, a descrença com as regras que hoje viciam o jogo político se tornou ponto de honra, uma convocação ao compromisso com a mudança.

Sem uma profunda transformação das regras institucionais no campo da política, aí incluídos o financiamento e o papel dos meios de comunicação, o risco é de perpetuação de tudo que foi atacado como perverso na cena política. A reforma, na verdade, é a única saída para o fim do “pemedebismo” que tomou conta da política nacional, conforme analisou o cientista político Marcos Nobre.

A democracia existe exatamente para isso, dar capacidade política de exercício da vontade da maioria, traduzida em expansão de direitos, competência no exercício da administração e na abertura à participação na vida pública. A democracia não se encerra com a eleição, começa com seus resultados.

Com relação aos projetos em disputa, como foi repetido inúmeras vezes durante a campanha, o Brasil viu, da redemocratização para cá, o surgimento e amadurecimento de duas possibilidades: o neoliberalismo e o neodesenvolvimentismo. Cada lado tem sua cota de ideologia, perspectiva política, ação administrativa, entendimento da participação popular e prioridades. Para a primeira, o Estado mínimo; para a segunda, o papel indutor e popular.

Não é mais hora de repisar os argumentos que, de certa maneira, trouxeram de volta a divisão entre esquerda e direita na política brasileira. Não é bom ter medo das palavras. Ainda que muitos defendam que não faz mais sentido falar nesse tipo de polaridade no mundo contemporâneo, a campanha deixou claro que os conceitos não são apenas operacionais, como elucidativos.

Esquerda e direita têm projetos para a saúde, educação, habitação, inflação, moradia, segurança, participação popular, inclusão social, políticas sociais, direitos humanos e cultura, entre outras. São propostas distintas, cada qual com sua racionalidade. Há, por exemplo, um jeito de prover saúde que se aproxima dos valores igualitários, outra que atende aos interesses do mercado. Cabe ao cidadão, por meio das campanhas dos candidatos, conhecer e debater as propostas, traduzindo sua compreensão e desejo em voto.

O outro fato definidor do voto é a trajetória dos candidatos. Por isso a ideia de desconstrução, tão atacada durante essa campanha por um falso moralismo, tem seu potencial politizador. É preciso saber com quem estamos lidando, já que o testemunho da imprensa não se mostrou imparcial. O jornalismo brasileiro voltou ao século 19 em sua paixão ideológica inequívoca.

Este é o lado A da democracia.

O lado B é a tradução do resultado eleitoral em ações de governo. Elas devem ser exercidas por meio de políticas públicas, por um funcionalismo profissionalizado, com a provisão de serviços de qualidade, gerência eficiente dos projetos prioritários e controle severo dos desvios.

O lado mais complexo da democracia não é a escolha do governante, mas a realização do desejo popular em formas legais, legítimas e competentes. E, o que é essencial, passível a todo tempo de crítica, fiscalização e controle. Democracia supõe ordem, mas não vive nem se desenvolve sem conflito.

Universal
Mas há uma questão fundamental: os projetos, ainda que diferentes, precisam ser alimentados pela mesma lógica democrática que sustenta o sistema. Não se pode, por exemplo, julgar que é legítimo lançar mão de ideias e propostas que atentem contra as conquistas da humanidade. No campo da democracia não há espaço para o preconceito, para a violência contra minorias, para a discriminação de qualquer natureza.

O mesmo princípio vale para os direitos sociais. Não é democrático, no atual estágio da sociedade brasileira, por exemplo, propor que questões como educação, saúde e direitos trabalhistas sejam tratadas com a lógica do mercado. Direitos não se traduzem em serviços. Estamos no estágio superior da consagração dos direitos civis, não da reivindicação de ações tópicas ou compensatórias.

Sempre que se defende a retirada do Estado do campo dos direitos constituídos (ainda que com a marca das parcerias privadas ou chanceladas pelo selo falso da “modernização”), seja para dar espaço ao mercado, seja para justificar a regressão nas regras – como flexibilização dos direitos conquistados pelos trabalhadores) –, é preciso alertar para o déficit de democracia envolvido no processo.

A reinvindicação de direitos sociais já conquistados, em todos os campos, passa hoje por um momento de universalização que não permite mais retrocessos individualizantes. Não se pode barganhar algo que é da esfera da sociedade para o âmbito restrito da pessoa. Os direitos sociais não são concessões ao cidadão, mas princípios de funcionamento da sociedade.

Essas afirmações, aparentemente óbvias, na realidade apontam para um risco que parece rondar o mundo, definido pelo pensador francês Jacques Rancière em seu livro, recentemente lançado, O ódio à democracia. Ainda que seja constituída como um valor de exportação pelos países mais ricos do mundo, a democracia vem sendo submetida a um juízo de valor que, na maioria das vezes, se traduz como certo horror ao povo.

Há um inegável mal-estar dos privilegiados, não apenas no Brasil (que assistiu às cenas patéticas de desagrado com a chegada dos trabalhadores aos aeroportos, tomado como invasão de seu território quando a venda de passagens saltou de 30 milhões para mais de 100 milhões), mas em todo o mundo. Com a desqualificação dos mais pobres, as políticas que se destinam às maiorias foram consideradas populistas e as que defendem as minorias tidas como autoritárias.

Essa situação evidencia um duplo prejuízo, que atenta por um lado contra o povo para em seguida atacar os direitos humanos. A chegada do povo ao consumo, à cidadania, aos espaços sociais antes vedados e à política, não apenas como mais um voto, mas como um índice de participação, é a melhor notícia da democracia brasileira dos últimos anos. Mesmo que sociólogos experientes ainda teimem em desqualificar suas escolhas, numa melancólica memória dos tempos do voto censitário. Saudades da casa-grande.

A retomada das discussões em torno da participação direta (prevista na Constituição Federal, como muitos se esquecem), pode ser o elemento decisivo para derrotar o “ódio à democracia” com uma dose, digamos, insolente e participativa de democracia popular, que tanta falta faz ao mundo.

E é em nome dessa requalificação política, com suas consequências em termos de projeto de governo, que a opção pela candidatura de Dilma Rousseff (PT) se afigura mais democrática que a de Aécio Neves (PSDB). Há um índice de ampliação, de escala, que aponta para esse novo campo democrático que vem desafiando os pensadores políticos em todo o mundo: como democratizar a democracia num cenário de ameaça da regressão popular por razões ideológicas. A oligarquia satisfeita e pacífica sempre fez da paixão democrática um campo de realização individual, onde o bem comum não estava presente. São as democracias sem povo. Aqui, a história é outra.

Escala
O Brasil mudou muito. A sequência dos governos do PSDB e do PT formaram um momento histórico de transformação, sem dúvida, mas que incidiu de forma diferenciada na vida da maioria da população nos dois tempos de governo. De tal maneira a sociedade brasileira foi formada sob o tacão da desigualdade que só muito recentemente passamos a nos horrorizar de verdade com as marcas do passado. Mesmo assim, nem todos. Os mais iguais ainda rondam.

A saída que permitiu, no âmbito psicológico, que suportássemos tanta injustiça social foi certo entorpecimento da culpa em nome de forças que iam além de nossas escolhas. Assim, criou-se uma falsa sensação de que a vitória sobre a desigualdade seria resultado de um conjunto de ações que somariam a conquista da riqueza social, por um lado, com o empenho individual, por outro. Numa mão o crescimento do bolo, ainda que à custa do trabalhador que não tinha sua fatia; de outro o reconhecimento dos talentos, numa ideologia meritocrática de fancaria, que nada mais fez que naturalizar os privilégios.

É preciso uma inflexão destemida em direção ao combate à injustiça social. E, no estágio brasileiro de séculos de concentração, isso impõe uma agenda de políticas de intervenção do Estado na regulação e na oferta de condições de realização aos mais pobres, tendo como parâmetro a noção de igualdade.

É preciso investir mais onde falta mais. Como se trata de uma dívida histórica de longo prazo, o ideário liberal não é capaz, por si próprio, de cumprir sua ficção igualitária, mesmo em longuíssimo prazo. Os privilégios não são um acaso em nossa formação, mas uma ferramenta.

Por isso se torna importante, nesse momento, seguir políticas públicas que tenham escala, que sejam exercidas na casa dos milhões. A dívida social é antiga, grande e profunda. Na educação, por exemplo, é isso que apontam números como a inclusão de mais 1,5 milhão de jovens na universidade; o investimento em escolas técnicas (também num patamar de crescimento que ultrapassa quatro dígitos de crescimento); o acesso de jovens ao melhor ensino do mundo, por meio de bolsas em universidades de ponta; a mudança das formas de seleção para o ensino universitário; a política de cotas; a linha de crédito real para financiamento da formação.

No campo da saúde, além do incremento de gastos no setor, é preciso destacar a inclusão de 50 milhões de pessoas na atenção médica, com a contratação de 14 mil médicos estrangeiros, que cobrem um vácuo deixado pelo modelo liberal de formação de profissionais de saúde brasileiros. A criação de novos cursos de medicina vai impactar ainda o mercado, direcionando recursos para as áreas de atenção básica, clínica e medicina social. Deixada ao sabor do mercado, a saúde exclui pelos altos custos, discrimina pela porta de entrada, e se torna limitada tecnicamente na opção pelo uso intensivo de tecnologia e pelo modelo de formação distanciado das necessidades da população.

Saúde e educação são apenas sinais mais expressivos da tradução dos intentos efetivamente populares. Outros dados podem ser agregados, como a diminuição do índice de desemprego, aumento real do salário mínimo, melhoria do Índice de Desenvolvimento Humano, retirada de milhões de pessoas da miséria extrema, crescimento da classe média.

Mesmo assim, esses e outros indicadores apenas tangenciam a desigualdade social brasileira. A eleição de amanhã, nesse sentido, precisa ser compreendida como uma ação para o futuro, como um aprofundamento no caminho que se mostrou historicamente mais viável para a universalização de direitos e para a conquista da igualdade. O outro caminho é a retomada, em via regressiva, de um trajeto que é limitado em suas próprias bases pela ação livre do mercado.

Crescer, distribuir renda, respeitar direitos sociais, ampliar a participação popular, incluir, proteger os direitos humanos, melhorar os serviços públicos, representar de forma altaneira os interesses nacionais no cenário internacional e combater sem tréguas a corrupção. A esses itens se resumem os dois projetos.

O que os diferencia, e parece óbvio, ponto a ponto, nas propostas dos dois candidatos, é o quanto de democracia cada um desses aspectos carrega. E democracia não pode ser apenas a condição de possibilidade do voto. Precisa ser a expressão de sua verdade. É disso que trata uma eleição: do dia seguinte.

Ronronar - Eduardo Almeida Reis

Ronronar

Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 25/10/2014


Em inglês deve existir um verbo que, traduzido para o português, tenha o sentido de ronronar: “fazer rom-rom (o gato)”. Procurando ronronar no idioma dos Pitts, aqui nos dicionários de que disponho, encontrei quatro verbos. Nenhum dos quatro tem tradução que se aplique ao sentimento de alegria de algum ser que não seja o pequeno mamífero carnívoro, doméstico, da família dos felídeos (Felis catus), que descende do gato selvagem encontrado na África e Sudoeste da Ásia (Felis silvestris libyca).

Nossos jornais traduziram e publicaram a notícia britânica: “Ela ronronou pelo telefone. Nunca ouvi ninguém tão feliz” – disse David Cameron, primeiro-ministro britânico, contando a reação da rainha Elizabeth II ao ser informada da vitória do “não” no plebiscito sobre a independência da Escócia.

Ora, é inadmissível que um primeiro-ministro britânico diga que a rainha Elizabeth II ronrona. Portanto, deve ter usado outro verbo para exprimir alegria, satisfação, verbo que permite tradução para o rom-rom, expressão de alegria do pequeno mamífero doméstico.

No capítulo das vozes dos animais, Houaiss diz que os gatos podem bufar, berrar, chorar, fungar, miar, rebusnar, regougar, resmonear, roncar, ronronar, roufenhar e zurrar. Teria Elizabeth II miado, regougado ou resmoneado? Não acredito.

Deificar

É feio falar mal dos mortos, que já não se podem defender. Por outro lado, ninguém precisa deificar, endeusar, atribuir natureza divina a um cavalheiro cheio de defeitos como todos nós. Dia desses, escrevendo sobre conhecido cronista e compositor, um fuinha metido a cronista transformou o finado num deus mal-amado, prova de que não o conheceu.

Conheci-o e admirava o seu texto, bem como as suas músicas. Ainda me lembro de que, logo depois de sua morte, passei uma semana jantando nos restaurantes que ele citava. Nunca fui seu amigo e só troquei duas palavras com ele, no tempo em que namorou a dona de um restaurante próximo de minha casa. Devo ter sido um dos primeiros a ouvir a letra de uma de suas músicas, composta no dia em que voltou do Nordeste de avião em companhia da restauratrice. Jantei lá naquela noite e ela me falou da música mostrando o rascunho da letra num guardanapo de avião.

Estabelecido o fato de que conheci duas de suas namoradas – possivelmente apaixonadas pelo seu imenso talento, porque era cavalheiro muito feio – devo dizer que de santo ele não tinha nada. Facadista contumaz, sempre que conhecia um leitor, que se dizia admirador de suas crônicas, aproveitava a oportunidade para pedir uns cobres emprestados, prometendo pagar na manhã seguinte. Nos valores atuais, algo assim como cinco mil reais. Só de amigos meus foram dois casos, que ficaram na saudade do dinheiro que emprestaram.

Palavras
“CBF é espinafrada pela Fifa em caso de mão na bola”, manchetou o provedor Terra, mostrando que o mancheteiro tem estrada e deve ser idoso, porque o verbo espinafrar, regionalismo brasileiro, tem sido pouco usado nos últimos anos. Fosse mais novo, o manchetador usaria o verbo esculhambar, inventado pelo português do Brasil no século 20. O dicionário inFormal diz que mancheteiro é “pessoa que é cheia de manias irritantes, e sempre procura um defeito nas coisas e pessoas”, o Google não tem manchetador e a busca no vocabulário da Academia Brasileira de Letras informa que mancheteiro e manchetador não existem. Isto é, não existiam. Passam a existir a partir da coluna de hoje: “jornalista que faz manchetes”.

O mundo é uma bola
 25 de outubro de 1521, Maria Pacheco se rende, entregando Toledo em honrosas condições às tropas de Carlos V, encerrando a Guerra das Comunidades de Castela, também conhecida como Revolta dos Comuneiros. Há quem diga que foi a primeira revolução moderna. Procurei saber algo mais sobre Maria Pacheco e tudo que encontrei foi o seu cognome Leoa de Castela. Em 1533, Carlos V nomeia Fernández de Oviedo primeiro cronista das Índias. Em 1555, Carlos V abdica o trono imperial e de suas posses alemãs em favor do irmão Fernando. Fui procurar os três Carlos V e encontrei o mesmo quadro, possivelmente pintado por Ticiano: cavalheiro magro, barbudo, sentado numa poltrona.

Em 1636: Johan Maurits van Nassau-Siegen larga do Porto de Texel a caminho de Recife (PE), onde chegaria em 23 de janeiro de 1637. Era magro, muito claro, protestante, usava bigodes e cavanhaque pontudos. Foi educado na Universidade da Basileia, destoando, portanto, de muitos governadores de Pernambuco nos últimos séculos e de um presidente da República nascido no mesmo estado.

Em 1671, Giovanni Domenico Cassini descobre Jápeto, lua de Saturno, sobre a qual nunca ouvi falar e presumo que o leitor também não. Por isso, é bom ficarmos sabendo que, segundo a tradição de Hesíodo, Jápeto ou Iápeto era um dos 12 Titãs clássicos, filhos de Gaia e Urano.

Em 1993, pesquisadores da Universidade George Washington, USA, realizam a primeira clonagem de embrião humano. Em 2001, a Microsoft lança o primeiro e saudoso Windows XP. Hoje é o Dia da Construção Civil, da Democracia, do Dentista, do Sapateiro e do Macarrão.

Ruminanças
“Se os macacos chegassem a sentir tédio, poderiam tornar-se gente” (Goethe, 1749-1832).

ARNALDO VIANA » Procura-se um lar

Estado de Minas: 25/10/2014


 (Arnaldo Viana/EM/D.A PRESS)
“Ufa! Mais um pedaço da jornada vencido. Jornada? Nem sei mesmo aonde vou. Se vou, se fico. Ah, vou me apresentar, mas, por favor, não caçoe de mim. Dê-me o nome que quiser. De onde venho? De Muzambinho, lá no Sul de Minas. Andei, andei de verdade esses 420 quilômetros e se não achar pouso, vou caminhar mais e mais. Desandar, não desando. Você sabe o que houve na minha cidade, não sabe? Foi notícia em tudo quanto é canto. O prefeito, de coleação com a vereança, botou uma lei para expulsar galinha, pato, peru, porco, tudo que é bicho de quintal para fora das casas. Diz ele que a gente causa incômodo. Dia 16 agora foi o último dia para o povo esvaziar as moradas da bicharada. Matar para comer ou botar pra fora. Desobediência virava multa.

Eu morava no terreiro de uma senhora, idosa, com outras criações. Tenho o orgulho de dizer que ela nunca teve precisão de comprar um ovo. Ah, titica de galinha deixa fedor. Deixa fedor, mas fortalece uma couve, uma alface. Até para isso a gente tem proveito, serventia. A minha dona, tadinha, não quis matar nenhuma criação. Precisava ver a tristeza. Com os olhos mareados, me enfiou em uma sacola e me deixou nos limites da cidade. Quis até amarrar um saquinho com milho no meu pescoço, para eu ir bicando no caminho. Mas matutou de outro jeito. Aquilo ia virar peso. E podia atiçar outros animais caminho afora. Ela disse: ‘Vai com Deus, minha amiga!’. E aqui estou, com a proteção de São Francisco de Assis. Como foi a viagem? Ah, moço, penei. Sem trocadilhos. Penei!

Primeiro, tinha que tomar um rumo. Aprumar o bico para um lado ou para outro. Mas, qual? Virei para a esquerda e tomei pé. Primeiro, de galope. A necessidade era ficar longe de Muzambinho o mais ligeiro que pudesse. Depois, desarmei o passo. O Sol assando meu pescoço pelado. Ficou todo empolado. Mas isso não foi o pior. E a secura? Ruim de achar um riacho para um gole d’água para molhar o bico. Caminhei por fora das cidades. Besta não sou. Corri de cachorro raivoso, até de lobo-guará e de jaguatirica. Medo mesmo foi de um andarilho, na beira de uma estrada. O homem sujo e barbado me viu e ficou chamando ‘vem cá, cocó, vem cá’. Vem cá nada. Vi a fogueira acesa. Nem…! Peguei trote, de novo.

Fome? A secura não secou tudo de vez. Dali, dacolá, uma plantação, uma fruta caída. E onde dava, ciscava e cavacava o chão atrás de minhoca. Vê, não estou magra como poderiam pensar depois de uma jornada como esta. Estou aqui, na redondeza dessa cidade, da capital. Sempre perto de uma árvore. É para buscar poleiro, fugir de cachorro. O que preciso agora é de um lar. De alguém para alisar minhas tristes penas. Ah, vão dizer, na cidade grande não há quintal, terreiro. E daí? Posso ser uma pet, criada dentro de casa, com conforto e comida. Está na moda. Galinha pet? Por que não? Não tem quem cria porco, jiboia, até jacaré, na sala, no quarto, na cozinha? E cada cachorro grandão, gato gordo… E olhe, que chique, uma pet que dê um ovo todos os dias para o café da manhã.

Se estou com raiva do prefeito e da vereança de Muzambinho? Bestagem pura! Estou não. Acho que nem tenho essa capacidade, de ficar enfezada. Bem, vou ficando por aqui, pelo menos por enquanto. Se souber de alguém interessado em companhia, fale comigo. Estou só e sem lugar. Meu nome? Pode me chamar de Esperança. Bom nome para estes tempos de incerteza, não?”

A bronca do Samuel - Plínio Barreto

Estado de Minas: 25/10/2014



Foi numa clara e quente manhã daquele verão carioca que eu finalmente cheguei à conclusão de que minha vida profissional teria que andar juntinho com a vida pessoal. A distância estava pesando, a saudade da convivência diária com a família se tornando insuportável, as férias- prêmio chegando ao fim, e nada de concreto em relação à transferência do emprego público, que me possibilitaria levá-los para viver na capital federal.

Absorto na leitura de um dos jornais – eram muitos, nacionais e estrangeiros – que estavam espalhados sobre sua mesa de trabalho, Samuel Wainer não dava por minha presença do lado de fora, embora as paredes fossem de vidro. A sala do “poderoso chefão” parecia um aquário. O jeito foi, com os nós dos dedos, chamar sua atenção.

Olhou-me por sobre os óculos, sorriu, fez sinal para que eu entrasse. Sem se levantar, estendeu a mão para o cumprimento. Felicitou-me pela reportagem inserida com enorme destaque – a cores –, ocupando quase toda a página do jornal daquele dia. A matéria merecera tanta ênfase que na página, além dela, estava apenas a coluna de Nelson Rodrigues – A vida como ela é – e uma pequena notícia sobre o atacante Vinícius, que atuava no Lazio, de Roma, também de minha autoria.

Toda aquela gentileza só fazia por aumentar minha inibição em relatar o motivo da minha presença ali nos domínios do “chefão”. Mas criei coragem e fui falando aos borbotões. Cara a cara informei que já estava com a mala pronta para regressar em definitivo para Belo Horizonte. Reiterei o fim de minhas férias-prêmio e a necessidade de reassumir meu cargo na Imprensa Oficial do Estado.

Samuel Wainer levantou-se, incrédulo. Elevou a voz:

“Tu estás louco! Jogar fora uma carreira promissora como a tua? Estás maluco?”