quinta-feira, 7 de março de 2013

LETICIA WIERZCHOWSKI - Um verão indiano

Zero Hora - 07/03/2013

Posso dizer que passei o verão na Índia... Depois de mergulhar em Joseph Anton, biografia de Salman Rushdie publicada pela Companhia das Letras, enveredei pelos romances O Último Suspiro do Mouro e Os Filhos da Meia-Noite (aclamadíssima obra de Rushdie, eleito, em 1993, Man Booker Prize, o melhor livro destacado pelo famoso prêmio literário britânico). Foram 1.708 páginas-Rushdie e horas de leitura – Joseph Anton é um livraço, e a história da fatwa e da vida clandestina à qual Rushdie foi condenado por Khomeini dariam um filme.

Eu nunca tinha lido Rushdie, confesso. E viajar pela sua ficção sanguínea e vertiginosa lavou a minha alma. Quando terminei meu primeiro livro, ouvi uma pessoa que eu admirava dizer-me: “Um belo texto, mas sofre de um problema, o realismo mágico é coisa do passado”. Eu tinha, portanto, escrito um livro que já nascia condenado – aqui da América do Sul, vivendo à sombra de García Márquez, não podíamos deixar que “moléstias fantasiosas” acometessem nossos livros...

Pois lá vem Salman Rushdie e deixa rolar. Seus personagens deixariam o clã Buendía de queixo caído. Eles andam pelo tempo, leem “n” pensamentos, crescem no dobro da velocidade normal para um humano, são geniais, preveem tragédias, morrem de amor – em suma, eles acontecem. Os livros de Rushdie são livros dos seus personagens, e eles pairam, vivos e furiosos, deixando a “forma” a comer poeira.

Os Filhos da Meia-Noite é um belíssimo livro, uma intrincada composição de histórias que brotam de histórias – Rushdie usa a trajetória da Índia contemporânea como uma boa bordadeira usaria seus fios coloridos e traça uma fantástica viagem na qual o leitor é levado pela vida de Salim Sinai, menino que nasce num hospital de Bombaim no mesmo momento em que a Índia se torna uma nação independente.

Sobre Rushdie, não há como não se sentir seu amigo depois de ler Joseph Anton. Pelo final do livro, Rushdie conta que, depois de 13 anos de proteção policial, finalmente chega o dia em que o governo britânico passa a considerar a ameaça da fatwa muçulmana baixa o suficiente para que ele possa ter a sua vida e o seu nome de volta (durante todo esse tempo, usara o nome falso de Joseph Anton, que dá nome à biografia narrada em terceira pessoa).

Faz-se uma festa para comemorar a liberdade de Rushdie, e um dos policiais que o protegeu diz-lhe: “Pensamos que você não ia aguentar, 13 anos de isolamento, sigilo e silêncio. Poucos segurariam a pressão”. E Salman responde: “Acontece que sou um escritor”. Palmas para Rushdie.

TV PAGA

Estado de Minas 07/03/2013

Escracho geral

Baseada nas tirinhas do cartunista Allan Sieber, estreia hoje no canal Warner, às 19h, a série Vida de estagiário. A trama acompanha o dia a dia do jovem Oseias (Thomas Huszar), estagiário em uma agência de publicidade, que, não bastasse o salário de fome, ainda tem de aguentar funções maçantes, mais a incompetência dos colegas. Pautado pelo sarcasmo, Sieber zomba com o universo publicitário em geral. Um detalhe: o dono da agência tem dois cachorros, batizados Duda e Nizan.

Comedy Central aposta
no seriado Men at work


Novidade também no Comedy Central, que estreia a série Men at work, às 20h. A produção se baseia na vida de Milo, um homem que terminou seu relacionamento com a namorada Lisa e tenta se reinserir no mundo dos encontros casuais com a ajuda de três companheiros de trabalho –  Tyler, Gibbs e Neal.

Canal Fox traz Bones de
volta e os fãs agradecem


Na Fox, a série Bones está de volta em sua oitava temporada, às 22h30. A dra. Temperance Brennan (Emily Deschanel), antropóloga forense, escapa com seu pai Max (Ryan O’Neal) como fugitivos da lei e do serial killer Cristopher Pelant (Andrew Leeds), enquanto o agente especial Seeley Booth (David Boreanaz) é designado para tarefas administrativas no FBI. A habilidade de Pelant faz com que Booth e Brennan se comuniquem de formas mais rudimentares, não só para provar a inocência da antropóloga com a ajuda dos colegas de laboratório, mas também para provar a culpa do verdadeiro criminoso.

Os carrões aceleram na
pista do Top gear, no A&E


O A&E estreia hoje, às 23h, a terceira temporada de Top gear, a série dos melhores veículos do mundo. O comediante Adam Ferrara, o campeão de rali Tanner Foust e o comentarista de corridas Rutledge Wood contam a história do automóvel de forma nada convencional, destacando a arte da direção, com supercarros, acrobacias, truques radicais e desafios. Já o NatGeo estreia a nova temporada de Paranormal, às 22h15, falando da vida após a morte e encontros com aliens.

Viva o sucesso passa a ser
exibido nas quintas-feiras


E tem mais. A segunda temporada de Viva o sucesso estreia também hoje, às 22h45, no canal Viva. Os episódios inéditos terão meia hora de duração, o dobro da temporada anterior. As reapresentações no fim de semana serão com versões de 30 e 15 minutos. Outra novidade é que agora o programa será exibido em um novo dia: toda quinta-feira.

A mulherada comanda as
ações no Telecine Action


A sessão Adrenalina em dose dupla, do Telecine Action, será bem feminina, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, a ser comemorado amanhã, agendando para hoje Instinto selvagem 2 (19h55) e As donas da noite (22h). Dirigido pelo mestre Billy Wilder, o clássico Farrapo humano é a atração de hoje do Clube do filme, às 22h, na Cultura. Ainda na concorrida faixa das 22h, o assinante tem mais oito opções: Uma noite mais que louca, no Telecine Fun; Poder sem limites, no Telecine Pipoca; Toy story, na TNT; Eu e as mulheres, no Glitz; Frida, no Sony; Turistas, na MGM; Missão Babilônia, no FX; e Matrix, no TCM. Outros destaques da programação: Os nomes do amor, às 21h, no Max HD; e Não é mais um besteirol americano, às 21h, no Comedy Central.

Marina Colasanti - Uma festa muito cabeça‏


Marina Colasanti - marinacolasanti.s@gmail.com

Estado de Minas: 07/03/2013 

Meu amigo fez 80 anos. Suas ex-mulheres, mães de suas filhas, e suas filhas e maridos e filhos e até o bisneto celebraram a data com um jantar. E ao longo da noite vieram também, com presentes e abraços para o ex-sogro, os ex-maridos das filhas, pais de alguns dos seus filhos, com suas novas mulheres, trazendo no celular as fotos dos seus novos filhos. Houve um momento em que todos se juntaram para tirar a clássica foto de família, ou talvez não fossem todos, mas eram muitos. Os demais convidados sorriram vendo tantos parentes em harmonia. E eu pensei que ali estava uma bela versão de família estendida, construída a partir dos anos 1960, quando nem essa definição nem essa estrutura estavam em moda.

Nos anos 1960, eu e boa parte dos convidados do jantar íamos três vezes por semana ao consultório do aniversariante, expor a vida e elaborar a psique. Era nosso conceituadíssimo psicanalista.

Tratou das cabeças mais pensantes e mais divertidas do Rio de Janeiro daquela época, em que fazer análise era quase uma obrigatoriedade intelectual. E que época rica em cabeças aquela! Foi disso que mais se falou na festa, ao redor das mesas esparsas no jardim. Só na minha estavam três atores, uma socialite, uma especialista em música e um escritor, todos antigos frequentadores do mesmo endereço, os que haviam feito análise individual, e a maioria que havia caprichado também na análise de grupo. Ali, conversando entre amigos, tudo pareceu mais light e prazeroso do que naqueles dias, quando exorcizávamos nossos demônios, expúnhamos nossas fraquezas e tantas vezes choramos.

Disse a ele ontem, brincando, que era um ótimo papel o seu, ficar ali recebendo de seus pacientes, em primeiríssima mão, os melhores projetos artísticos, os esboços das peças, o avançar capítulo a capítulo dos livros ou até das novelas de TV – eu própria tive uma companheira de grupo noveleira – , sem precisar ir a vernissage, estreia ou noite de autógrafos.

Mas não eram tempos fáceis. Os que faziam teatro, cinema, os que escreviam ou eram jornalistas sofriam censura e repressão, havia alguns secretamente envolvidos na subversão. E chegou o momento em que nosso psicanalista, temendo que agentes da ditadura invadissem seu consultório para investigar os pacientes, devolveu a cada um seu prontuário com as anotações das sessões.

Esqueci, ontem, de contar aos companheiros de mesa um episódio curioso. Eu fazia individual há algum tempo, quando comecei a sentir sobre mim um peso estranho. Disse a ele: “Olha, tem alguma coisa ruim, as portas estão todas trancadas à minha frente, não sou eu, é alguma coisa, algum trabalho que me fizeram”. E ele: “Veja bem, Marina, isso aqui é análise, coisa séria, científica, não podemos lidar com esse tipo de possibilidade”.

E passados uns dias, afastando minha mesinha de cabeceira para procurar algo que havia caído, encontro atrás, imprensada entre a mesinha e a parede, uma folha de papel com meu nome escrito à mão, e pingos de vela retendo fios de cabelo e rasgos feitos com alguma faca ou ponta sobre meu nome. Enojada, botei o papel num envelope, levei para ele. A presença obscura pesou naquele consultório. “O que fazemos com isso?”, perguntei. Ele riscou um fósforo, e queimamos o achado ali mesmo, cientificamente.

Tereza Cruvinel - Chávez na História‏

Quando um texto definitivo for escrito, o papel atribuído ao venezuelano contrastará com o descrito nas crônicas implicantes do tempo em que viveu 


Estado de Minas: 07/03/2013 

Durante os 14 anos em que exerceu o poder na Venezuela, e mesmo antes, Hugo Chávez foi demonizado pelo liberalismo ocidental. Sua figura atípica, seu estilo atrevido e sua liderança insólita desconcertavam os adversários. Irritavam e inquietavam. Com absoluta falta de cerimônia ele era chamado de caudilho, déspota, ditador. Agora que ele se foi, o rascunho começa dar lugar ao texto da história, e os adjetivos cedem lugar a algumas verdades, como o fato de que nunca exerceu um dia de poder que não tenha sido legitimado pelo voto popular. Sua morte física deve permitir também a melhor compreensão de seu papel na construção da atualidade política do continente e do mundo.

A morte abranda ódios e paixões, favorece a mais justa reflexão e aclara os contextos do passado, no que pese a obscurantista reação de um líder do Partido Republicano americano, que celebrou sua morte dizendo que já ia tarde, contrastando com a civilidade da oposição venezuelana.

Quando o texto definitivo da história for escrito, Chávez não surgirá como santo ou como infalível, o que não era, mas sua importância e o significado de sua liderança contrastarão com as crônicas implicantes do tempo em que viveu. Quando Chávez foi eleito pela primeira vez, em 1998, era lembrado o tempo todo pelo fato de ter participado de uma fracassada tentativa de golpe, com ideário nacionalista e reformador, em 1992. O governo venezuelano estava desmoralizado, mas o neoliberalismo reinava inconteste, fechando as portas para os países pobres e periféricos. Isso não justifica o ato, mas realça a ousadia política de desafiar o consenso. O mundo seguia nessa marcha quando ele tomou posse pela primeira vez, em 1999. O fim da socialismo soviético, a queda do Muro de Berlim e a crise no paraíso cubano não deixavam espaço para utopias. Estavam arquivados discursos sobre revolução, transformação, soberania, integração latino-americana, justiça social. Muito antes de todos os presidentes progressistas do continente que viriam a ser eleitos, como Lula, Néstor Kirchner (Argentina), Evo Morales (Bolívia) e José Mujica (Uruguai), Chávez começou a reabilitar essas utopias e a implementar políticas desenvolvimentistas e de cunho social. Ele era  uma espécie de produto da resistência ao neoliberalismo, e não das lutas revolucionárias, como Fidel. Era algo novo, chamado de velho.

O estilo confrontador e a linguagem áspera têm a ver com o contexto da mudança política na Venezuela. Aqui, e mesmo no Chile e na Argentina, houve uma transição. Lá houve uma ruptura com o antigo sistema oligárquico, mesmo que pelo voto, depois da quartelada de 1992. A economia estava deprimida e a pobreza assolava o país. O dinheiro do petróleo, drenado para as oligarquias e para o exterior, passa a ser usado para financiar políticas sociais. A reforma agrária é realizada e provoca reações. Diversos setores da economia são estatizados, acirrando o conflito com algumas empresas de comunicação, o que culmina com a não renovação da concessão da RCTV. Chávez firma acordos para fornecer petróleo a preços subsidiados aos países da Aliança Bolivariana, como Cuba e Nicarágua. Sua liderança transcende à Venezuela. Governantes como Morales e Rafael Correa, do Equador, são eleitos com seu decisivo apoio. Entende que a economia venezuelana não irá longe no mundo global se não aprofundar relações com o Brasil e a Argentina, especialmente. Pleiteia e consegue o ingresso do país no Mercosul. Com Lula, foi um dos artífices da União das Nações Sul-Americanas (Unasur).

Seu legado inclui a erradicação do analfabetismo, a redução da pobreza em 37%, o aumento da renda e do emprego, a melhora indiscutível nos serviços sociais. E, mais que tudo, o protagonismo político do povo que agora o chora.

A pergunta que paira sobre seus funerais é a respeito da sobrevivência do chavismo em sua ausência. Seu vice, Nicolás Maduro, que ele apontou como herdeiro, disputará a eleição com o opositor do ano passado, Henrique Caprilles, dentro de 30 dias. A emoção e o sentimento de orfandade ainda serão intensos, favorecendo Maduro. Ele não é Chávez, mas poderá – ou não – construir  a própria liderança. Como fez Dilma, criatura de Lula. Mas, ainda que a oposição vença, a Venezuela moldada por Chávez jamais voltará a ser o país elitista e iníquo do pré-chavismo.

Para o Brasil, nenhuma situação deve trazer grandes mudanças no relacionamento bilateral, mesmo não havendo mais a camaradagem que havia entre Lula e Chávez, herdada por Dilma. A Venezuela hoje tem um novo peso político no continente e representa um grande mercado de consumo para o Brasil, afora outros interesses comuns que tornam a relação bilateral estratégica para os dois países.

No passo eleitoral

Segue a valsa da eleição antecipada, para todos os partidos do baile.

O senador Aécio Neves (PSDB-MG) vai a São Paulo no dia 25, para uma conversa olho no olho com o governador Geraldo Alckmin, que ainda não saiu do conforto palaciano para apoiá-lo. Fernando Henrique media o encontro.


O governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), quase não dormiu na noite de anteontem. Os últimos interlocutores saíram de sua suíte num hotel brasiliense depois das duas e meia da manhã. Ele veio a Brasília para a solenidade de ontem, em que a presidente distribuiu bondades a prefeitos e governadores, e atendeu uma parte da longa fila de pedidos de conversas.

Os governadores e prefeitos receberam na segunda-feira o chamado do Planalto para a festa de bondades de ontem. “Foi uma agradável surpresa. Nunca a prefeitura de Porto Alegre foi tão bem tratada pelo governo federal”, saiu dizendo o prefeito José Fortunatti (PDT). Ele e os demais. Ninguém saiu de mãos abanando.

Amnésia revolucionária-Paloma Oliveto‏

Há 60 anos, Henry Molaison perdeu a capacidade de reter informações recentes depois de ter parte do cérebro retirada em uma cirurgia experimental 


Paloma Oliveto

Estado de Minas: 07/03/2013 

Durante 55 anos, o americano Henry Gustave Molaison acordou sem saber o que tinha feito no dia anterior. Com QI acima da média e descrito como amoroso, engraçado e generoso, o paciente H.M. se lembrava do nome da cidade da Louisiana onde seu pai nascera, contava que os Natais em sua casa não tinham árvores enfeitadas e reconhecia artistas e celebridades dos anos 1940. Mas desconhecia completamente eventos que havia vivido algumas horas antes.
Molaison morreu há pouco mais de quatro anos, sem saber que sua amnésia significou uma revolução para a neurociência. Mesmo depois de participar de mais de 100 experimentos cognitivos ao longo de décadas, não conseguia se lembrar disso. Os pesquisadores, porém, jamais vão esquecê-lo. Foi graças ao paciente H.M. que os mecanismos de armazenamento de fatos cronológicos, nomes, objetos – enfim, da memória – começaram a ser compreendidos.  

Antes de Molaison passar, em 1953, por uma cirurgia experimental que removeu uma importante região de seu cérebro, esse era um conceito abstrato. Os médicos sabiam que a memória existia, mas não tinham ideia de onde ela estava. Esquecimentos e amnésia eram tratados mais em consultórios de psicanalistas do que de neurocientistas. Ninguém desconfiava da existência de diferentes tipos de memória: uma de curto prazo, que permite decorar um número de telefone e discá-lo pouco tempo depois, para então esquecê-lo; e outra de longo prazo, pela qual fatos, nomes e habilidades adquiridas são estocados. Os cientistas muito menos podiam supor que a memória de longo prazo tem subdivisões. 

Isso mudou quando Molaison acordou na mesa de cirurgia, depois de ser operado pelo famoso neurocirurgião William Beecher Scoville. A especialidade do médico eram as psicoses, mas ele estava realizando um procedimento experimental no Hospital de Hartford, em Connecticut, que prometia dar fim à epilepsia. Na pré-adolescência, H.M. começou a sofrer convulsões, relacionadas a um acidente sofrido aos 9 anos. Cansado dos acessos cada vez mais frequentes e incapacitantes, aos 27, Molaison aceitou ser operado. Quando abriu os olhos, era outra pessoa.

Hipocampo Na operação, Scoville removeu parte dos lobos temporais e os dois lados do hipocampo. A retirada acabou com as convulsões, mas também transformou Molaison em um homem sem passado. “H.M. sentia que estava livre da epilepsia, por isso acreditava que tinha uma vida melhor. Foi uma troca. Digo sempre aos meus alunos: essa cirurgia o livrou da epilepsia, mas a um preço terrível”, disse a neuropsicóloga Brenda Milner, do Instituto e Hospital Neurológico de Montreal, durante uma coletiva de imprensa sobre o legado de Molaison, durante o encontro anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), realizado há uma semana.

A história de H.M. está entrelaçada à de Milner. Quando seu paciente apresentou os sintomas de amnésia anterógrada (a perda da capacidade de reter novas memórias), Scoville entrou em contato rapidamente com a neuropsicóloga, que trabalhava em Montreal e era reconhecida como uma das melhores do ramo. 

Milner desconfiava de que o hipocampo estava associado ao processo de armazenamento. No mesmo ano em que H.M. fez a cirurgia, dois pacientes canadenses passaram por um procedimento parecido, em que foi retirada uma porção unilateral dessa região. “Eles ficaram com danos gerais na memória. Especulamos que a razão era um dano no hipocampo”, recordou a especialista. Naquela época, não existiam ressonâncias magnéticas nem tomografias que pudessem mostrar o interior do cérebro e suas conexões.

A psicóloga havia comentado sobre esses casos durante um encontro internacional de neurociência, no qual Scoville estava presente. “Ele entrou em contato comigo e disse: ‘Acho que vi esse tipo de paciente que você descreveu’”, contou. H.M. conseguia se lembrar de tudo que havia acontecido até três anos antes da cirurgia. Depois disso, as recordações pareciam embotadas. Era sinal de que o procedimento também provocou, com menos severidade, a amnésia retrógrada, quando o indivíduo não se lembra de fatos ocorridos antes da lesão. O maior problema de Molaison era com o armazenamento de novas memórias. Todas as manhãs, era preciso contar a ele o que havia acontecido com seu cérebro. Os médicos que conviveram com o paciente durante décadas tinham de se reapresentar diariamente.

Por minutos Milner desenvolveu diversos testes cognitivos que aplicava em H.M. Mesmo depois que ele voltou para os Estados Unidos, a neuropsicóloga cruzava a fronteira para fazer experimentos. Ela notou que o paciente conseguia decorar números e nomes, além de reter a aparência de objetos e de faces por alguns minutos. Isso indicava a existência de uma espécie de memória rápida, que permite recordar ertas coisas por tempo determinado. É a memória de curto prazo. Pouco tempo depois de gravar as informações, contudo, Molaison as esquecia completamente. Ele, inclusive, nem se lembrava que tinha feito os testes de Milner. O que acontecia é que ele não conseguia converter a memória de curto prazo em de longo prazo, uma evidência do papel crucial do hipocampo — que o paciente não tinha mais — no processo de armazenamento das informações. Até morrer, aos 82 anos, Molaison só conheceria um passado: aquele vivido até três anos antes da operação.

Durante as pesquisas, H.M. mostrou que a organização da memória era ainda mais complicada. Um experimento em particular provou que o paciente conseguia reter alguns tipos de novas informações, ainda que não se desse conta disso. Brenda Milner pediu que ele desenhasse uma estrela, sendo que deveria observar sua mão e a figura apenas em um espelho. O teste foi repetido por 10 sessões e, a cada dia, a performance do paciente melhorava. Molaison podia não se lembrar que tinha feito o mesmo desenho 24 horas antes, mas o aperfeiçoamento de seu desempenho era prova de que o cérebro estava registrando o aprendizado. O mesmo aconteceu com um andador, que ele precisou usar quando estava mais velho. “Ele não entendia por que usava o andador, mas sabia que, se não usasse, cairia. Usar esse equipamento pode parecer fácil, mas há toda uma habilidade envolvida. Você está em uma cadeira ou na cama, tem de se transferir para o andador, depois manuseá-lo. Ele aprendeu tudo”, atestou Suzanne Corkin, professora de neurociência comportamental do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT) que começou a estudar H.M. em 1967.

Ainda assim, por mais que participasse de testes repetitivos, Molaison jamais readquiriu a capacidade de se lembrar de fatos ou de pessoas. Corkin afirma que H.M. não pensava que tinha sempre 27 anos, idade em que fez a cirurgia, mas tinha uma compreensão errada do tempo. “Você poderia imaginar que, quando começasse a ter cabelos brancos, ele se olharia no espelho e sairia gritando: ‘O que aconteceu comigo?’. Mas não era assim. Ele não tinha consciência de que já estava com cabelos brancos até se ver, mas a imagem lhe parecia familiar”, relatou. De acordo com a neurocientista, H.M. não parecia se abalar com o fato de ter envelhecido e até fazia brincadeiras com isso. No dia seguinte, esquecia que o tempo havia passado, olhava-se no espelho, notava os fios grisalhos e seguia em frente. 

Sinal vermelho-Lilian Monteiro‏

Especialistas alertam pais sobre o ronco infantil, mais comum do que imaginam. E avisam: há algo errado que deve ser investigado 


Lilian Monteiro

Estado de Minas: 07/03/2013 


O ronco, aquela sinfonia nada afinada que incomoda quem está em volta, é sempre relacionado ao adulto. Mas esse não é um mal que perturba somente gente grande. As crianças também são vítimas, e a diferença está nas causas. E o barulho, o principal alerta, é o menor dos problemas. Antes de mais nada, é preciso saber que ronco é sinal de obstrução respiratória ou resistência aumentada da passagem do ar. E será sempre um aviso de que existe algo errado com sua saúde. A ordem é investigar.

Com as crianças, o ronco pode acompanhá-las desde o nascimento. Na primeira fase, até 28 dias de vida, o bebê vai roncar por infecção, inclusive sinusite, ou rinite do lactente. Isso pode atrapalhar a amamentação e acarretar perda de peso. Situação grave, frequente e que pode vir a prejudicar de maneira definitiva o aleitamento materno, chama a atenção Ricardo Neves Godinho, otorrinolaringologista, especializado em otorrinopediatria. O tratamento é com soro fisiológico, em spray ou jato contínuo, e se não resolver a saída é medicação orientada por um médico. O umidificador no quarto é uma medida ambiental.

Numa segunda fase, até os 2 anos, o neném pode sofrer com rinites do lactente (nada a ver com alérgica), relacionada com as mudanças de temperatura e umidade. Com dias quentes e noites frias, o nariz entope e eles roncam muito. Essas crianças são até chamadas de "nariz de porquinho". Passada essa etapa, quando elas vão para a escola, creche, berçário (a criança institucionalizada), o resfriado é frequente e a obstrução nasal prolongada é acompanhada do ronco noturno.
Ricardo Godinho explica que depois dos 2 anos as amígdalas e adenoides começam a crescer e os estímulos desses ambientes aumentam os processos alérgicos. Se essas estruturas crescem demais, a ponto de obstrução significativa, o ronco vai acompanhá-la a noite inteira. Resultado: dormem mal e podem até ter apneia (o extremo do ronco) do sono. Essas são candidatas à cirurgia. "Acordam mal-humoradas, irritabilidade aflorada, desatenção na escola, são alarmes importantes para que as mães pensem num problema mais sério."
Ricardo Godinho diz que, quando a congestão nasal é crônica, a criança muda a postura da cabeça para respirar melhor. A protusão da cabeça gera uma discreta alteração da postura do tronco (semelhante a corcunda). É o que se chama de síndrome do respirador oral. Ela se curva para a amígdala se projetar para a frente juntamente com a língua. "Se não tratar ou tiver uma assistência inadequada, ela passa a ter uma deformação na face, com o rosto comprido e os dentes projetados para fora." Todo esse quadro é acompanhado do ronco.
Por isso, o médico explica que, dependendo da gravidade do caso, a criança vai precisar de uma equipe multidisciplinar para ajudá-la a conseguir parar com o ronco. O pediatra identifica, o otorrinolaringologista faz o diagnóstico da causa do ronco, trata ou opera e pode encaminhar para o fonoaudiólogo, que organiza o hábito respiratório (treinamento para automatizar a respiração, fechar a boca e respirar pelo nariz) para fortalecer os músculos da face, lábio e língua. Ainda pode ser acionada a participação de outro profissional, o dentista, que vai avaliar a necessidade de aparelhos ortopédicos (muda a estrutura do osso) ou ortodôntico (posição dos dentes).

PROBLEMA ESTÉTICO
Ricardo lembra que o ronco é um sintoma para contornar um problema que pode provocar um comprometimento estético significativo. "A face longa, a posição dos dentes alterada, a musculatura frouxa e inexpressiva são consequências que podem interferir no desenvolvimento saudável." A apneia, obstrução completa do fluxo de ar para os pulmões, também precisa ser levada em conta. O otorrino enfatiza que há crianças que podem apresentar "pausas respiratórias de cinco a 10 segundos ou até mais. Muitas mães no consultório explicam a reação dos filhos como se eles tivessem engasgado durante o sono". Com a queda do oxigênio, o cérebro dá estímulo à criança para despertar e mudar de posição. As consequências são que "ela passa a ter o sono agitado, dorme de ponta-cabeça, ronca a noite inteira, mexe demais na cama e não descansa".

O distúrbio nutricional também surge por causa do ronco. Ricardo explica que crianças obesas tendem a roncar mais porque comem rápido para conseguir respirar. Dessa forma, não têm saciedade pelo paladar. Ou podem ser bem magrinhas, no outro extremo, porque não têm prazer de comer, já que não sentem o cheiro e o gosto do alimento pela obstrução das vias aéreas.

ESPECIAIS Consultor da Interamerican Association of Pediatric Otorhinolaryngology (Iapo), a maior associação da otorrinopediatria, uma subespecialidade da medicina, Ricardo destaca o caso do ronco em crianças portadoras de necessidades especiais. Síndrome de Down, fissura labiopalatina, paralisia cerebral, enfim, crianças sindrômicas que roncam são casos mais complicados e exigem um grupo multiprofissional – geneticista, cirurgião plástico, neurologista pediátrico, dentista –, que pode acompanhá-las a vida inteira. "O ronco é característico da síndrome por uma associação de motivos. Na Down, língua grande e nariz estreito. Na fissura labiopalatina, o nariz é torto e, no caso da paralisia cerebral, a criança não consegue segurar a língua na posição correta."

Enfim, o tratamento certo

Há mais de uma década, o pai acompanha o sofrimento do filho em busca da respiração ideal e da chance de pôr um ponto final no transtorno que é o ronco. O comerciante Paulo Aquiles de Abreu está vencendo uma saga ao lado do estudante Marcelo de Souza Abreu, de 14 anos, que desde pequeno convive com a obstrução nasal. Depois de peregrinar por alguns médicos e especialistas, encontraram a direção correta e Marcelo está na reta final do tratamento.

Paulo Aquiles conta que Marcelo tem rinite alérgica e, para complicar, desvio de septo. Sem respirar pelo nariz, o filho, aos 7 anos, encarou a primeira cirurgia de amígdala e adenoide. "Não resolveu muito." Para complicar, é louco por esportes e, sem poder desfrutar plenamente das atividades de que gosta, deixava o pai triste e incomodado. "Corri atrás, ouvi várias opiniões, mas nada era definitivo. Até que o pediatra Luiz Sérgio, de Pedro Leopoldo, me indicou o otorrino Ricardo Godinho, "que solucionou o problema, com uma segunda cirurgia que foi sucesso". Agora, Paulo assegura que a respiração de Marcelo passou de 5% para 90% e está a caminho dos 100%. "É uma alegria." O pai não esconde o alívio. "Ele tinha muita dificuldade para respirar, quando gripava era uma agonia, um desespero. Sem falar do ronco, era como se ficasse 'raspando' a garganta."

Ainda se recuperando da segunda cirurgia de desvio de septo e redução do volume das conchas nasais, Marcelo também conta com a ajuda de uma dentista. "Ele vai usar aparelho porque tem o céu da boca fechado e vai beneficiá-lo ao alargar a narina. Hoje, já virou outro menino", explica o pai eufórico. 

Marcelo está animado, mas espera resultado ainda melhor. "Estou recém-operado, com pontos e o nariz dolorido, então ainda não vi tanta mudança. Mas sei que ela virá. "Jogo futebol, nado, ando de bicicleta e meu sonho é respirar normal. Antes, qualquer pique ou trote de cinco metros ficava cansado e só com a boca aberta. Era difícil dormir, acordava cansado e na escola, enquanto todos chegavam animados, eu estava sonolento. Era complicado prestar atenção e incomodava bastante. Agora, estou na reta final para ficar 100%." (LM)