quinta-feira, 30 de abril de 2015

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Projeto Magia do Cinema encerra neste sábado sua terceira edição, que percorre 10 cidades do interior mineiro exibindo dois documentários e um longa de ficção


Estado de Minas: 30/04/2015



Moradores de Claro dos Poções acompanham sessão do Magia do Cinema na praça da cidade, no último dia 23 (FOTOS: DOMENICO PUGLIESI/DIVULGAÇÃO
)
Moradores de Claro dos Poções acompanham sessão do Magia do Cinema na praça da cidade, no último dia 23


Movimentação na praça principal, cadeiras a postos, telona inflada, projetor montado e o cheirinho de pipoca. Esse é o cenário que os moradores de cidades do interior do Norte de Minas encontram para assistir às projeções do Magia do Cinema. O projeto percorre 10 cidades até o próximo sábado, passando pela Bacia do Rio São Francisco, Vale do Jequitinhonha e Vale do Mucuri.

Em sua terceira edição, o Magia do Cinema chega aos municípios com o intuito de ajudar a suprir a carência de salas de cinema e ampliar o acesso à produção audiovisual. A equipe do projeto fica apenas um dia em cada cidade. “É uma satisfação enorme pisar em cada uma dessas cidades, porque a maioria das pessoas nunca  entrou em uma sala de exibição”, diz Inácio Neves, coordenador e idealizador do Magia do Cinema.

Realizado com benefício das leis de incentivo à cultura via renúncia fiscal, o projeto ainda não conseguiu garantir periodicidade anual. Ele prevê que, além da sessão gratuita, o público tenha direito a pipoca como acompanhamento.

Os filmes escolhidos para essa edição são dois documentários – Os meninos e o boi e A menina e o espantalho e um longa-metragem de ficção, o blockbuster Como treinar o seu dragão 2. Pronto desde o ano passado, Os meninos e o boi, de Henrique Mourão, foi filmado na cidade de Rubim, no interior de Minas. “Toda cidadezinha tem as suas lendas, mitos e festas. Não é diferente com as cidades mineiras. Muitas dessas histórias morreram com o tempo”, diz Inácio Neves, ao comentar a escolha do filme, que aborda a folia de Reis e a brincadeira boi de janeiro, tradicional da cidade.

Dirigido por Cássio Pereira dos Santos, A menina e o espantalho (2008) trata da carência de escolas em cidades pequenas. Já a inclusão de Como treinar o seu dragão 2 se deve ao potencial do filme de divertir crianças e adultos, segundo o coordenador do projeto.

Antes da sessão de longas é projetado um curta-metragem específico para cada cidade. Quando a equipe se desloca para as cidades para preparar a exibição, com alguns dias de antecedência, os moradores mais antigos são procurados e gravam depoimentos a respeito da origem da comunidade e das festas que deixaram de ter.

O material editado é exibido no dia das sessões. “É uma delícia, porque você vê a cara das pessoas na plateia reconhecendo os moradores e os rostos que representam a ciade na telona. Eles ficam eufóricos”, comenta Neves.

“Quando vamos embora, fica a sensação de que cada uma daquelas pessoas ficou um pouquinho mais curiosa em relação ao lugar onde vivem.”

Pipoca é preparada antes da exibição em Campo Azul, no dia 24 de abril
Pipoca é preparada antes da exibição em Campo Azul, no dia 24 de abril


Memória em movimento

Orlanda Aparecida de Souza Braga, de 62, é moradora de Monjolos, primeira cidade a receber o Magia do Cinema. Ela diz achar importante a realização de um documentário sobre a cidade.

“Muitas coisas que existiam aqui agora só estão na história. As pessoas mais velhas já morreram quase todas. Então, é importante que ainda tenha alguém para contar para as crianças”, afirma.

Segundo dona Orlanda, os jovens não conhecem como era a antiga linha de ferro que cortava a cidade, virou estrada de terra e, anos depois, vieram o calçamento e a praça. Sobre sua primeira experiência com a sétima arte, ela diz: “O primeiro cinema que eu vi foi em uma igreja, em uma missão, mas ele era mudo. A máquina parecia uma máquina de passar roupa, daquelas que têm uma chaminé e dava o refletor. O padre é quem falava o que estava acontecendo. Mas cinema mesmo eu nunca fui em um”. Ela imagina que, se houvesse mais cinema na praça da cidade, até deixaria de ver sua novela preferida.

Já a moradora de Água Boa, no distrito de Claro dos Poções – segunda cidade a receber o projeto –, Zilma Souza Nascimento, de 51, foi para a sessão e levou uma turma junto. Zilma é supervisora da Escola Estadual Dona Valentina Alkimim e aproveitou para mobilizar alunos, professores e pais para ver os filmes.

“(O acesso ao cinema) É de extrema importância, não só para o aprendizado da criança, mas também para a dignidade do ser humano. Ele tem que ter essa vivência”, avalia a supervisora.

Zilma teve a impressão de que o documentário mexeu com as emoções das pessoas, pelos comentários que ouviu durante a sessão. Sobre as tradições populares de mitos e festas, ela diz, com frustração: “Acho que essa história está morrendo porque os pais deixaram o papel de contá-las para a mídia contar, para que ela transmita uma coisa pelos nossos pais”, desabafa.

Garotos acompanham o filme com a pipoca servida em Campo Azul
Garotos acompanham o filme com a pipoca servida em Campo Azul


OUTROS PROJETOS

O idealizador do Magia do Cinema desenvolve outros projetos de acesso à cultura, desde 2004. O Cinema no Rio São Francisco exibe filmes para comunidades ribeirinhas. O Cinema nos Trilhos é feito para a população ao longo das ferrovias, especialmente Estrada de Ferro Carajás, Estrada de Ferro Vitória-Minas e a Ferrovia Centro Atlântica. O Sons no Vale, realizado no Vale do Jequitinhonha, propõe oficinas de musicalização, sonorização e iluminação para shows e eventos. O mais recente é Ovivido.com.br, um projeto experimental sobre memória historiográfica.

O circuito da magia do cinema

»  Monjolos
»  Claro dos Poções
»  Campo Azul
»  São João do Pacuí
»  Fruta de Leite
»  Comercinho
»  Pedra Azul
»  Itaipé
»  Padre Paraíso e
»  Pescador

(Quase) Ninguém me ama (Quase) Ninguém me pede

Pratos com ingredientes como abóbora, repolho, jiló e chuchu são rejeitados no cardápio de restaurantes. Para chef, desafio é convencer cliente a desviar seu olhar dos pedidos mais comuns


Eduardo Tristão Girão
Estado de Minas: 30/04/2015


 (Arte/Quinho)

É algo um tanto difícil de explicar. No Taste-Vin, restaurante francês mais famoso de Belo Horizonte, um dos pratos menos pedidos é o que leva papada de porco. O ingrediente, “descoberto” por chefs do país recentemente, é o mesmo que compõe a receita campeã de vendas do Glouton, casa de cozinha contemporânea que fica a um quarteirão dali, em Lourdes, bairro que é o epicentro gastronômico da cidade. Uma certeza: a culpa não é do acompanhamento. Uma “lei”: todo cardápio tem seu “lanterninha”.

“Mas quem pede, adora”, garante Rodrigo Fonseca, proprietário do Taste-Vin. A princípio, o desafio de quem trabalha no ramo é convencer o freguês a abrir mão do que come sempre e desviar seu olhar de pratos com itens considerados “comerciais”, tais como filé, camarão, risoto, massas e chocolate. No caso dele, outro prato disputa com a papada no quesito impopularidade, a trouxinha de taioba recheada com rabada.

“Não sei se é porque o pessoal associa esse prato a algo gorduroso e cheio de osso. É uma pena, porque o sabor é bem intenso. O molho da rabada é coado, desengordurado, fica aromático. Um negócio muito fino, bom para tintos encorpados e potentes”, diz Fonseca. A receita, acrescenta, é inspirada na do chef francês Alain Dutournier, cujo restaurante parisiense estrelado Au Trou Gascon o proprietário do Taste-Vin costuma frequentar quando visita a cidade. E apesar de a taioba faltar alguns meses por ano, o prato segue firme no cardápio.

“Se você escreve chuchu refogado, o camarada se lembra da casa dele e não vende. Se você escreve chuchu finalizado com azeite biológico, é outra coisa. Depende da forma como se vende o produto”, resume Ivo Faria, que comanda o italiano Vecchio Sogno, uma das cozinhas mais tradicionais da capital mineira. Ele não citou o chuchu por mero acaso, mas porque adora trabalhar com verduras e legumes – e, por vezes, não consegue emplacar pratos com eles.

Abóbora, chuchu, repolho e jiló são alguns dos “vilões” por lá. Não por acaso, o prato menos vendido da casa é a tilápia com moqueca de abóbora e mamão verde, servida com emulsão de lagostim e cubinhos de abacaxi. “Pelo fato de ter a danada da abóbora e o mamão verde, aí deu zebra. Mesmo explicando o que é, o cliente rejeita.” Há cerca de seis meses no cardápio, a receita está de saída. Detalhe: a versão anterior do peixe – ao molho de cambuci, com cenoura, brócolis e purê de batata – vendia mais.

“O problema do belo-horizontino é achar que certos ingredientes são muito simples. Fui cozinhar em Paris recentemente e meus pratos que mais fizeram sucesso foram uma salada de jiló e um peixe com moquequinha de mandioca, banana-da-terra e purê de abóbora. Os jornalistas que estavam no evento ficaram impressionados e me falaram que, pelo sabor e combinação, esses pratos poderiam estar em qualquer restaurante estrelado da França”, lembra o chef.

A busca por respostas costuma apontar para o paladar do freguês como o responsável pelo fracasso de um prato. Entretanto, há quem discorde. O chef Leo Paixão, do Glouton, acredita que a aceitação de uma receita depende muito do trabalho feito pelo garçom. “Se ele trabalha bem, você vende o que quer. Se o maître está de folga e não converso com os garçons, só sai camarão. É preciso também convencer o garçom. Costumo fazer pratos para eles provarem”, conta.

Além disso, os funcionários do salão do Glouton têm a oportunidade de comer pratos do cardápio por metade do preço quando termina o expediente. De fato, é uma estratégia inteligente para fazer com que se “vista a camisa” de criações interessantes, como o arroz de galinha caipira com quiabo e jerez e uma sobremesa à base de frutas do cerrado (coquinho azedo, cagaita e buriti) – todas elas feitas com ingredientes vistos como pouco nobres ou de difícil aceitação.

O chef Ivo Faria, do Vecchio Sogno, com os ingredientes  dos pratos que costumam encalhar na preferência dos clientes ( LEANDRO COURI/EM/D.A Press)
O chef Ivo Faria, do Vecchio Sogno, com os ingredientes dos pratos que costumam encalhar na preferência dos clientes


MIÚDOS Ainda que se aposte em ingredientes caros e consagrados, o retorno nas vendas não é garantido. É o caso do foie gras no Favorita. “Temos sempre, mas a venda é muito pequena. Algumas coisas mantemos por prestígio. E não sai pouco pelo preço, pois ainda é mais barato que camarão, que esses dias chegou a R$ 128 o quilo. Além disso, foie gras tem rendimento de 100%, enquanto no camarão descartamos casca e cabeça”, diz o proprietário, Fernando Areco. Ostras e miúdos de vitelo são out

Por falar nisso, a parrilla Los Hermanitos é dos poucos endereços belo-horizontinos em que se consegue comer mollejas, glândula retirada do pescoço do boi, muito apreciada na brasa pelos argentinos e conhecida como timo no Brasil. Antes, ele fazia parte da parrillada, ou seja, era incluída na chapa de ferro juntamente com outros cortes de carne. Hoje, no entanto, foi substituída pela costelinha e virou uma porção separada.

“Cerca de 70% voltavam e ia tudo para o lixo. Hoje não obrigo mais ninguém a comer nada”, desabafa o argentino Gustavo Roman, proprietário da casa. Ele conta que, quase sempre, quem pede timo são os argentinos que moram em Belo Horizonte. “Vendo muito pouco, uma ou duas vezes por semana. É um produto com muita gordura e é preciso grelhá-lo devagar para eliminá-la. Eu gosto, mas comia mais quando era mais novo”, completa.

À FRANCESA
Nem os clássicos estão a salvo. Na Cantina do Lucas, reduto boêmio da cidade e “santuário” das receitas de antigamente, o prato menos vendido do cardápio é o filé à francesa. A combinação de filé grelhado com batata palha, arroz e salteado de ervilha, presunto em tiras e palmito na manteiga, tão apreciada no passado, hoje goza de pouca popularidade por lá. Mesmo representando muito pouco nas vendas (o campeão é o filé à parmegiana), ele parece estar longe de ser extinto.

“Alguns clientes tradicionais nossos gostam desse prato. É um prato bom para dar cara tradicional à casa e, para manter uma certa tradição, deixo pratos como esse no cardápio”, justifica Edmar Roque, proprietário da casa. Curiosamente, o filé à cubana (à milanesa, com batata palha, frutas e cebola empanadas, ovo frito e arroz), outra receita que vem de décadas atrás, vende bem melhor. Vá entender.

Analgésico para as emoções

Estudo mostra que paracetamol diminui a intensidade com que experiências, tanto negativas quanto positivas, são vivenciadas


Vilhena Soares
Estado de Minas: 30/04/2015



Um dos medicamentos mais consumidos no mundo, o paracetamol (ou acetaminofeno, como chamado nos Estados Unidos) é utilizado, principalmente, para reduzir dor e desconforto físico. Porém, estudo recente publicado na revista Psychological Science mostra que a droga é capaz de anestesiar não só o corpo, mas também as emoções – tanto as negativas quanto as positivas. Os autores do trabalho acreditam que esse efeito colateral se deva à ação que a substância exerce sobre determinadas áreas do sistema nervoso e acham que a pesquisa pode ajudar a desvendar melhor a ação do remédio no corpo humano.

Os cientistas responsáveis pelo experimento partiram de estudos anteriores que buscavam identificar efeitos desconhecidos do paracetamol. “Pesquisas recentes em psicologia indicaram que a substância pode tornar menos agudas algumas emoções negativas, além de aliviar a dor física”, contou Geoffrey Durso, principal autor do trabalho e estudante de doutorado em psicologia social da Universidade do Estado de Ohio. “Nosso estudo queria responder se o paracetamol pode trabalhar para neutralizar as reações dos indivíduos a experiências ruins”, completou.

Os resultados, porém, mostraram que o remédio tem potencial para amortecer todo tipo de emoção, o que inclui as positivas. Para chegarem a essa conclusão, os pesquisadores recrutaram 82 estudantes da universidade. Metade deles recebeu um comprimido de 1.000mg de paracetamol, enquanto a outra tomou uma pílula idêntica, mas sem efeito (placebo). Depois de 60 minutos, que eram o tempo necessário para que a droga fizesse efeito sobre o grupo que a havia ingerido, os voluntários foram expostos a 40 fotografias que haviam sido selecionadas para causar reações emocionais diversas, como tristeza e alegria. Eram exibidas imagens como as de crianças em sofrimento ou animais de estimação brincando com seus donos.

Enquanto viam as fotos, os participantes deviam classificá-las de acordo com uma escala que ia de -5 (muito negativa) a +5 (muito positiva). Passada essa fase, as imagens eram novamente exibidas e, dessa vez, os participantes deviam indicar a intensidade da emoção que tinham experimentado ao ver cada imagem. Para isso, usavam uma escala de 0 (pouca ou nenhuma reação) a 10 (reação emocional extrema).

Os resultados mostraram que os participantes que tomaram paracetamol avaliaram todas as fotografias com “menos emoção” do que os voluntários que ingeriam o placebo. “As pessoas que tomaram o analgésico não sentiam os mesmos altos e baixos emocionais como as pessoas que tomaram placebo”, declarou, em comunicado, Baldwin Way, coautor do estudo e professor assistente de psicologia do Instituto Behavioral Medicine Research de Ohio.

INCERTEZA Os cientistas ainda não sabem por que o paracetamol produz tal efeito no organismo humano, mas suspeitam que há alguma ação específica sobre o sistema nervoso central. “O acetaminofeno exerce uma variedade de efeitos, seja mudando a neurotransmissão de serotonina no cérebro e reduzindo a sinalização inflamatória, seja diminuindo a ativação nas áreas do cérebro responsáveis pela emoção. Algum desses efeitos ou uma combinação deles pode ser responsável pelos efeitos psicológicos que observamos”, acrescentou Geoffrey Durso.

Para Maria Martha Campos, professora do Instituto de Toxicologia e Farmacologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), essa dúvida é difícil de ser sanada. “O paracetamol é um analgésico muito usado, mas conhecemos pouco sobre seus mecanismos de ação no corpo humano. Não sabemos diretamente quais são seus alvos, apenas que ele age no sistema nervoso central”, explicou. “Por não saber como funciona em detalhes, é difícil inferir por que ele diminuiria as emoções também”, complementou a especialista, que não participou do estudo.

Segundo a brasileira, o efeito apontado na pesquisa americana não precisa ser interpretado como algo negativo à saúde. “Não existe um efeito sedativo. A pessoa não fica mais apática do que outros estudos já mostraram. O cenário só muda se a substância for usada em quantidades excessivas”, ponderou.

O próximo passo dos pesquisadores é investigar mais a fundo os efeitos dos analgésicos no organismo humano. Maria Martha Campos acredita que mais respostas possam surgir com pesquisas que desvendem as ações do medicamento de forma mais clara. “Temos relatos de que o uso desse remédio em animais com depressão fez com que eles se recuperassem.”

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Snack culture - Martha Medeiros

ZERO HORA 29/04/2015

Wagner Brenner, do site Update or Die, postou um texto alarmante. O título: “Socorro, não consigo mais ler livros”. Nele, o autor desabafa dizendo que já foi um leitor obstinado, porém, hoje, se o texto não embalar de uma vez, só com muito esforço ele conseguirá continuar a leitura. A extensão tornou-se um problema. Seu hábito agora é de ler apenas cacos, fragmentos, aperitivos, o que se chama snack culture, informação instantânea em drágeas. Ele admite que perdeu a capacidade de se concentrar.
Caso isolado? É só ver os comentários deixados sobre seu post: estão lá uma infinidade de “comigo acontece o mesmo”, “igual a mim”, “também não leio mais” etc. Algumas pessoas inclusive confessaram ter tido dificuldade de ler o próprio desabafo de Wagner, que foi longo. Mal iniciaram o primeiro parágrafo e já pularam para as linhas finais. Ninguém mais tem tempo a desperdiçar. Quando pegam um livro, os leitores já começam a esbravejar com o autor: “Vai, anda, já entendi, para de enrolar”. Veja só, literatura virou sinônimo de enrolação. Qualquer coisa que não diga logo a que veio é porque está embromando. A revolução tecnológica exterminou a paciência.

O tempo em que nos dedicamos ao trabalho, somado ao tempo que passamos nas redes sociais, reduziu o ritmo de nossas leituras. É fato. Aconteceu comigo também. Cheguei a me preocupar, mas tirei 13 dias de férias em fevereiro e, mesmo me mantendo conectada, li quatro livros no período, dois deles com mais de 300 páginas. Ficou claro que ainda estou apta a me envolver. Porém, de lá para cá, minha média vem sofrendo uma queda indesejada. Quatro livros em 13 dias, só saindo de circulação de novo.
Falta de tempo se resolve com administração, portanto, vou tratar de me reorganizar. Mas a incapacidade de se deixar seduzir por algo que não cumpre uma promessa imediata pode afetar negativamente não só a leitura, mas diversas outras áreas do cotidiano. Daqui a pouco, ninguém mais conseguirá prestar atenção na história que um amigo está contando, ninguém mais entrará no jogo das conquistas amorosas, ninguém mais se dedicará a preparar uma refeição, ninguém mais escutará uma palestra, curtirá um recital, dará uma caminhada de olho na paisagem. A menos que tenha um smartphone na mão, para ganhar tempo. Tempo para o que, não me pergunte.
Não sei se é o fim do mundo. O fim do mundo já se anunciou diversas vezes e ainda estamos aqui, então tudo indica que sobreviveremos. Ao menos nossa própria existência está cada vez mais longeva, na contramão das reduções. Se antes morríamos aos 60, aos 70, agora podemos chegar aos 100. O que temos feito com esse acréscimo de vida? Nada de mais. Só de menos.

Quando a geladeira e a televisão conversam

É cada vez mais comum a produção de equipamentos, como carros e eletrodomésticos, conectados à internet. Pesquisadores europeus criam plataforma que facilita a comunicação entre dispositivos feitos por fabricantes diferentes


Roberta Machado
Estado de Minas: 29/04/2015 



Estima-se que, na próxima década, cerca de 100 bilhões de máquinas estejam conectadas à internet. Mas a previsão não significa que haverá 10 computadores funcionais para cada pessoa no planeta. Na verdade, o número indica como a expansão da rede deve englobar um número crescente de dispositivos que, originalmente, não faziam parte do mundo conectado. Geladeiras, aparelhos de ar-condicionado, lâmpadas e carros estão entre as ferramentas que, gradativamente, aprenderão a usar a rede para captar e interpretar informações com o objetivo de antecipar as necessidades dos usuários, num fenômeno chamado de internet das coisas (IoT, na sigla em inglês).

No entanto, o potencial desse futuro tecnológico é ameaçado por um problema de comunicação: equipamentos com funções diferentes, feitos por fabricantes diferentes, quase sempre falam linguagens diferentes. Por isso, um consórcio europeu dedicou os últimos três anos à criação de uma linguagem única, que permita às máquinas se comunicarem de uma maneira eficiente.

Dessa forma, equipamentos que já trabalham com base em informações retiradas da rede, como temperatura ambiente ou umidade do ar, vão contar também com dados coletados por outras máquinas em um ambiente privado. Isso significa que uma lâmpada poderia comunicar ao ar-condicionado quando os moradores da casa estão presentes, ou que o forno micro-ondas trabalhasse em parceria com a geladeira.

“Um micro-ondas e uma geladeira são máquinas, e máquinas hoje em dia são inteligentes. E nós podemos fazê-las ainda mais espertas permitindo as chamadas comunicações de máquina para máquina”, explica Sofoklis Kyriazakos, pesquisador da Universidade de Allborg, na Dinamarca. A instituição de ensino dinamarquesa é uma das sete organizações que se uniram no projeto europeu BETaaS, criado para desenvolver a linguagem unificada entre equipamentos. O plano, iniciado em 2012, foi concluído há poucos dias e contou com investimento de 3,3 milhões de euros.

A tecnologia máquina para máquina (M2M, ou machine to machine, em inglês) é uma dinâmica que dispensa a intervenção humana. Kyriazakos dá como exemplo um sistema automático de irrigação, que, com base no M2M, é capaz de funcionar por conta própria e de forma mais eficiente do que um dispositivo comandado por um humano. Basta colocar os irrigadores em contato com sensores inteligentes, que informem o dispositivo sobre a umidade do ar, a temperatura ambiente e a possível presença de pessoas no local.

BABEL Esse “diálogo” diminui a distância entre os mundos virtual e real e garante que a informação trocada entre as máquinas seja estável e livre de erros. “A internet das coisas é baseada no conceito de que a conexão pela internet fornece tanto o acesso a dados remotos de sensores quanto o controle remoto do mundo físico. Isso abriu portas para o desenvolvimento de várias soluções de monitoramento e controle que resolvem problemas em áreas específicas”, ressalta Belen Martinez Rodriguez, pesquisadora da empresa Tecnalia, que faz parte do consórcio BETaaS.

Além do grupo europeu, há outras iniciativas que procuram desenvolver uma linguagem eletrônica que facilite a conectividade entre dispositivos. Há diferentes grupos apoiados por companhias como a Intel, a Microsoft e a Google que atualmente concorrem pelo título de protocolo-padrão da internet das coisas. Mas esses padrões tendem a atender aos interesses de cada uma das empresas envolvidas no projeto, o que tem resultado numa verdadeira torre de Babel, em que diferentes tipos de aparelhos competem entre si.

“Embora essas iniciativas ofereçam plataformas horizontais, elas não cumprem requisitos importantes para a internet das coisas, como qualidade de serviço, confiabilidade e contextualização. Além disso, essas plataformas são baseadas em arquiteturas de nuvem centralizada, o que pode ser difícil de combinar com características da internet das coisas, como alta mobilidade, grande número de anotações e baixa latência”, ressalta Martinez.

ABERTO Para superar essas limitações, o projeto europeu procura oferecer um modelo de referência que funcione em qualquer situação, com aparelhos de qualquer marca. O software foi testado com sucesso em dois cenários hipotéticos: um no qual a plataforma foi usada para controlar um sistema de irrigação em um jardim, e outro em uma infraestrutura da dimensão de uma cidade inteligente. Nas duas situações, o funcionamento dos aparelhos era ditado com base nas informações colhidas por outras máquinas.

A comunicação eficiente entre os aparelhos da cidade inteligente permitiu, por exemplo, que um motorista encontrasse um carro em um estacionamento alertando um sistema que intensifica a iluminação do poste localizado próximo ao veículo. A internet das coisas ainda poderia ser usada para acessar o transporte público, reservar quartos de hotel e até mesmo receber dicas personalizadas de programas culturais com base na localização do usuário e da previsão climática.

“Isso vai mudar a forma como vivemos e trabalhamos”, declara, em comunicado, Ramjee Prasad, diretor do Centro de Teleinfraestrutura da Universidade de Aalborg. “Consumidores vão desfrutar de um grande número de serviços inovadores, enquanto, de uma perspectiva de negócios, nós podemos gerar valor explorando objetos conectados à internet para a criação de novas e inovadoras aplicações”, ressalta Prasad.

A plataforma BETaaS também foi projetada como um sistema de código aberto, que pode ser acessada e modificada por qualquer usuário ou empresa. “Uma comunidade de plataforma open source é um caso vantajoso para todos, pois há pessoas que usam e exploram a plataforma e que também vão se beneficiar do trabalho incremental que for produzido”, aponta Sofoklis Kyriazakos. “Em palavras simples, a disponibilidade da plataforma BETaaS vai permitir que os primeiros usuários trabalhem nela, e o que fizerem será explorado para melhorá-la”, resume.

O modelo é similar ao usado no sistema operacional Linux: quanto mais pessoas usarem a linguagem, mais eficiente ela se tornará. O desenvolvimento de uma plataforma de código aberto também é mais veloz e barato do que um produto criado por uma única empresa. O trabalho do BETaaS se limita a criar um produto mais simples, enquanto os detalhes relacionados a problemas específicos ficam a cargo da experiência dos próprios usuários. 

terça-feira, 28 de abril de 2015

Veneno viciante

Segundo novo estudo, pesticida muito usado na agricultura não só tem sabor imperceptível para as abelhas como também afeta o cérebro dos insetos, tornando-os dependentes. Presença do produto nos campos ameaça vida das colônias


Paloma Oliveto
Estado de Minas: 28/04/2015




Abelha da espécie Bombus terrestris em campo de flores na Inglaterra: preferência pela glicose misturada ao inseticida neonicotinoide (Jonathan Carruthers/Divulgação)
Abelha da espécie Bombus terrestris em campo de flores na Inglaterra: preferência pela glicose misturada ao inseticida neonicotinoide

Cruciais para a polinização de campos agrícolas e para a manutenção da biodiversidade, há muito as abelhas têm sido ameaçadas por diversas classes de pesticidas. Dois artigos publicados na revista Nature indicam que os riscos são ainda maiores do que se imaginava. Cientistas da Universidade de Newcastle, na Inglaterra, e do Trinity College de Dublin, na Irlanda, descobriram que elas são atraídas por um tipo bastante comum de inseticida, os neonicotinoides. Além de não evitar essas substâncias, por não conseguirem sentir seu gosto, os insetos preferem plantas com a substância tóxica porque o veneno desencadeia, em seus cérebros, um mecanismo de recompensa.

Derivados da nicotina, esses produtos agem nos insetos de forma semelhante ao que o cigarro faz com os humanos. “Os neonicotinoides funcionam como uma droga. As plantas contaminadas com esses pesticidas tornam-se mais atraentes às abelhas porque elas são mais recompensadoras do que as demais. Imagine o impacto que isso pode ter em todas as colônias e nas populações de abelhas”, disse, em coletiva de imprensa por telefone, Geraldine Wright, principal autora do estudo e pesquisadora do Instituto de Neurociências da Universidade de Newcastle. “Uma coisa muito grave é que esses insetos não conseguem sentir o gosto dos neonicotinoides em sua comida. Portanto, elas estão em constante risco de envenenamento”, observou.

Os neonicotinoides são a classe de inseticidas mais utilizada no mundo. Evidências dos efeitos negativos desses produtos químicos para as abelhas polinizadoras fizeram a União Europeia restringir o uso de três produtos à base da substância em campos que atraem abelhas. Um dos estudos que estimularam a medida também foi publicado na Nature, alguns anos atrás, e mostrou que os neonicotinoides e os piretroides estavam matando zangões e prejudicando a alimentação dos insetos.

A moratória europeia, decretada em 2013, contudo, se encerra em julho deste ano. Grupos ambientalistas temem que o lobby da indústria de fabricantes impeça a renovação da proibição de venda e o banimento desses inseticidas do mercado europeu. No Brasil, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) fez uma reavaliação dos artigos científicos sobre os neonicotinoides em 2012, mas não encontrou evidências suficientes que indicassem a morte em massa das abelhas.


Ambientalistas defendem banimento de alguns agrotóxicos devido à agressão e à ameaça às colônias  (Maj Rundlöf/Divulgação)
Ambientalistas defendem banimento de alguns agrotóxicos devido à agressão e à ameaça às colônias


ANÁLISE DE NEURÔNIOS Geraldine Wright contou que, na época em que se decretou a moratória na União Europeia, surgiram argumentos de que não seria necessário banir os neonicotinoides, bastando cultivar fontes alternativas de néctar e pólen. Dessa forma, as abelhas poderiam se alimentar dessas plantas e, consequentemente, ficariam livres dos riscos. “Mas nosso estudo mostrou que essa não é uma alternativa viável porque as abelhas – tanto a europeia (Apis mellifera) quanto as polinizadoras Bombus terrestris preferem soluções que contêm sacarose misturada com neonicotinoides à sacarose sozinha”, disse.

Essa descoberta, inclusive, se deu por acaso. Uma aluna de Writght investigava se as abelhas conseguiam detectar substâncias tóxicas no alimento e, para isso, colocou os insetos em uma caixa que continha um pote de sacarose pura e outro com sacarose e neonicotinoides. “Muitas pessoas presumem que as abelhas são capazes de fazer essa diferenciação, evitando naturalmente o veneno”, explicou a neurocientista. Caso os animais rejeitassem o segundo pote, era sinal de que conseguiam sentir o gosto da substância química. Contudo, ocorreu justamente o contrário. As abelhas ignoraram a sacarose e se fartaram da mistura de açúcar com pesticida. “Ficamos chocadas porque esse era um resultado realmente inesperado”, relatou.

O experimento foi ampliado e repetido com um número maior de inseticidas neonicotinoides, e as abelhas se comportaram da mesma forma. Para saber se elas sentiam o gosto da substância, a equipe de New Castle idealizou um teste mais sofisticado, que rastreava a resposta dos neurônios contidos na boca dos insetos, em contato com o veneno. Essas células identificam os gostos diversos e mandam sinais para o cérebro. Contudo, os pesquisadores verificaram que isso não ocorria com os pesticidas – aparentemente, as abelhas não conseguem detectar o sabor do produto. “Em outras palavras, elas não têm um mecanismo que identifique os neonicotinoides em soluções de sacarose. Então, elas não sentem o gosto, mas escolhem essas soluções”, disse Wright.

Segundo a cientista, são necessários novos experimentos para descobrir por que isso ocorre, mas ela acredita que, assim como em fumantes, que se viciam no cigarro porque a nicotina ativa os centros de recompensa do cérebro, os pesticidas neonicotinoides agem da mesma maneira nas abelhas, já que a substância ativa desses produtos é justamente a nicotina.

ESCLARECIMENTOS Para Jane Stout, professora de botânica da Faculdade de Ciências Naturais do Trinity College de Dublin, os resultados não deixam dúvidas de que não há solução fácil para o problema dos neonicotinoides. “Podemos tirar duas lições principais dessas pesquisas”, disse a coautora dos estudos na coletiva de imprensa. “Primeiro é que as abelhas polinizadoras e as produtoras de mel enfrentam uma grave ameaça. A outra é que não adianta plantar fontes alternativas de alimento nos campos agrícolas em que o neonicotinoide é usado porque as abelhas vão preferir as que contêm o veneno”, afirmou.

Em uma análise publicada na própria Nature, os cientistas Niegel E. Raine e Richard J. Gill, da Universidade de Guelph e do Imperial College London, respectivamente, disseram que, embora o trabalho contribua para a compreensão sobre os riscos dos neonicotinoides para as abelhas, ainda há pontos que precisam ser esclarecidos.

“Por exemplo, precisamos de mais evidências sobre como a exposição ao neonicotinoide afeta as colônias ao longo das estações e como os resíduos (do produto) no solo interagem com outros estressores ambientais”, escreveram. “Também precisamos de um entendimento maior a respeito da forma como os neonicotinoides afetam outros polinizadores e pestes inimigas das plantações. Fundamentalmente, precisamos descobrir o balanço exato entre os riscos das exposições ao neonicotinoide para insetos polinizadores e o valor desses pesticidas para garantir a qualidade dos campos agrícolas”, defenderam.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Mama África

Mama África 

 Em seu primeiro disco desde Recomeço (2008), a baiana Virgínia Rodrigues interpreta nos idiomas kikongo e kimbundo. "Estou sempre cantando as coisas do meu povo e, desta vez, quis ir mais fundo na questão", diz


Ailton Magioli
Estado de Minas: 27/04/2015




A cantora Virginia Rodrigues, que lança o álbum Mama kalunga, em que conta com participações como a da peruana Susana Baca (Sora Maia/Divulgação (Virginia))
A cantora Virginia Rodrigues, que lança o álbum Mama kalunga, em que conta com participações como a da peruana Susana Baca

Sete anos depois de Recomeço (2008), Virginia Rodrigues volta ao disco, com aquele que é o mais conceitual de seus trabalhos. Por mais erudito que possa soar, Mama kalunga, da Casa de Fulô, não resiste ao apelo popular do refrão da canção do paulistano Geraldo Filme. “Vá cuidar da sua vida/Diz o dito popular/Quem cuida da vida alheia/Da sua não pode cuidar”, canta Virginia.

Ela, por sua vez, está cada vez mais centrada em sua própria criação, e diz que buscou, com Mama kalunga, fugir de tudo que soasse como folclore ou coisas do gênero. “Estou sempre cantando as coisas do meu povo e, desta vez, quis ir mais fundo na questão”, afirma a cantora. O trabalho voltado à temática afrobrasileira acabou contribuindo para fazer Virginia Rodrigues e sua música serem mais conhecidas na Europa e nos Estados Unidos do que no Brasil.

Voz firme, possante, é à capela que Virginia Rodrigues abre Mama kalunga, cantando Ao senhor do fogo azul, de Gilson Nascimento. A seguir, é a vez da música que dá título ao disco, cuja autoria pertence ao baiano Tiganá Santana, não por acaso o produtor do disco, ao lado de Sebastian Notini, percussionista sueco radicado na Bahia.

As participações especiais em Mama kalunga incluem a da veterana atriz Ruth de Souza, na leitura introdutória de um texto em homenagem à divindade Mameto Zumba, também conhecida entre os adeptos de religiões de matrizes africanas como Nanã – senhora da morte, da sabedoria e da lama como matéria-prima. A lendária cantora afroperuana Susana Baca canta com Virginia um antigo cântico afrocubano. E há ainda Ricardo Pereira.


 (REPRODUÇÃO
)


LÍNGUAS AFRICANAS No disco, pela primeira vez a cantora baiana canta em línguas africanas, mais especificamente kikongo e kimbundo, ao estudo das quais se dedicou nos últimos anos. Dois violões, duas percussões e um violoncelo estão na formação que acompanha Virginia. Ela levou todas ao palco, na estreia do show, que ocorreu na semana passada, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Além do repertório integral do novo disco, o show traz a Bachiana nº 5 e Melodia sentimental, ambas de Heitor Villa-Lobos.

Melodia sentimental, como lembra a cantora, faz parte de todos os seus shows. “É a primeira vez que canto as duas juntas”, diz, admitindo ser uma ousadia da parte dela cantar a Bachiana nº 5.

Apesar de haver frequentado durante cinco anos cursos livre de música erudita, Virginia teve sua formação em coros de igrejas católicas e protestantes. Oriunda do Bando Teatro Olodum, Virginia Rodrigues atribui ao diretor do grupo baiano, Márcio Meirelles, sua estreia no palco. “Hoje sou apenas cantora, o que sempre quis ser. Mas o cantor também tem um pouco do ator, já que ele tem de interpretar.”

Do mineiro Abigail Moura (Babalaô/Amor de escravo) ao já citado paulistano Geraldo Filme (Vá cuidar de sua vida), passando pelo pernambucano Moacir Santos (Sou eu, com Nei Lopes) o carioca Paulinho da Viola (Nos horizontes do mundo) e os baianos Roberto Mendes (Teus olhos em mim), Ederaldo Gentil (Luandê), Gilson Nascimento (Ao senhor do fogo azul) e Tiganá Santana (Mama kalunga/Mukongo/Monami/Saluba), a cantora gravou, ainda, de domínio público, o cântico tradicional afrocubano Belen cochambre, em adaptação de Susana Baca.

CRÍTICA » Álbum não procura ser fácil e exige curiosidade
Kiko Ferreira

A cantora baiana Virginia Rodrigues costuma ser tratada com os mesmos gestos e apupos dedicados a nobrezas como Nina Simone, Miriam Makeba e Bessie Smith. O Le Monde, o New York Times, o ex-presidente Clinton e o talking head David Byrne foram alguns canais que ajudaram a dar a ela fama internacional.

Caso clássico de artista mais conhecida lá fora do que em sua própria terra, Virginia está de volta com seu quinto álbum, Mama kalunga, sequência de um disco de pegada erudita, feito para o selo clássico Deutsche Gramophon, com os afro-sambas de Baden e Vinícius, e um álbum de canções brasileiras com o piano de Cristóvão Bastos.

Descoberta por Caetano, no final dos anos 1990, durante um ensaio do grupo de teatro do Olodum,Virginia virou imediatamente uma artista cult, com a voz de meio soprano burilada em corais de igrejas católicas e repertório adquirido ouvindo rádio, enquanto desempenhava funções de manicure, cabeleireira, empregada doméstica, lavadeira e passadeira de roupas. Antes de ser intérprete, personagem.

Nascida numa família de raízes banto, angolanas, ela se declara “filha de Ogum de Ronda com Nanã e Iemanjá Ogunté. Ou seja Nkosi, Ganga Zumba e Kaiála – como é chamado na minha nação, que é Angola”. E é partindo dessas raízes que ela concebeu Mama kalunga , produzido por Sebastian Notini e pelo cantor Tiganá Santana, celebrizado por gravar  em línguas africanas.

Daí que três das treze composições foram criadas e cantadas nos idiomas kicongo e kimbungo. E uma quarta é um tema tradicional da santeria cubana. Aliados à voz de pegada lírica, carregada de dramaticidade e uma certa solenidade, são motivos de estranheza aos ouvidos comuns, exigindo boa vontade e curiosidade de quem se aventura no tom quase ritualístico do álbum.

Mesmo quando o objeto do canto é a canção popular brasileira típica, Virginia não facilita, não busca soar “popular”. O célebre samba Nos horizontes do mundo, de Paulinho da Viola, chega lento, com um acompanhamento de violão e cello que ressalta os desenganos e sofrimentos da belíssima letra.

E Vá cuidar de sua vida, de Geraldo Filme, com palmas , tambores e pandeiro fazendo cozinha de samba de roda, parece ter um quê de câmera lenta. Daí que o melhor do disco é quando a cantora soa como um mix afro de Mônica Salmaso e Nana Caymmi na belíssima  Teus olhos em mim (Roberto Mendes e Nizaldo Costa) e seus versos antológicos: “tira seus olhos de mim/ teus olhos não podem me ver/ meus olhos chorando assim/ com medo de te perder”.

E a épica Luandê (Ederaldo Gentil) forma um daqueles retratos certeiros de Salvador: “não preciso de alforria/ antes da abolição/ a lição eu já sabia/ na Bahia, todo branco/ tem um negro na família”. Aí ela canta como se lavasse roupa, rodasse a saia, nadasse num rio de águas límpidas.

A porção mais “MPB” se fecha bem com Sou eu,de Moacir Lopes e Nei Lopes, com a suavidade da voz de Tiganá Lopes criando um belo contraste com o bronze de Virginia, numa letra que trata de luz, paz e bondade sem soar piegas ou falsamente inocente. Pra fechar a casa e ir dormir, a bela Dembwa (10 de agosto) soa como síntese do disco, com mais uma bela imagem: “Dembwa é o ofício de abrir os braços/ quando não há quem se abraçar”.

Com direção musical de Iura Ranevsky, que assume o violoncelo, o CD tem como base musical os violões de Bernardo Bosisio e Webster Santos e as percussões de Sebastian Notini e Marco Lobo.

Nas cores extras, participação da cantora afroperuana Susana Baca no Canto tradicional Afrocubano Belen cochambre e da atriz Ruth Souza, um mito das artes dramáticas brasileiras que, aos 94 anos, faz uma leitura introdutória, na abertura de Yaya zumba, de um texto em homenagem à divindade Mameto Zumba. Cereja de um bolo consistente e saboroso.

domingo, 26 de abril de 2015

No horizonte do espanto - Ronaldo Cagiano

No horizonte do espanto 

  Romance premiado de João Batista Melo evoca o clima tenso do período que antecedeu a 2ª Guerra Mundial sob a perspectiva de duas crianças na Belo Horizonte dos anos 1940


Ronaldo Cagiano
Especial para o EM
Estado de Minas: 25/04/2015



oão Batista Melo: questionamento dos valores sob o crivo da justiça e do humanismo



 (Wladia Drummond/Divulgação)
oão Batista Melo: questionamento dos valores sob o crivo da justiça e do humanismo


Vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais e finalista do Prêmio Benvirá de Literatura (2014), Malditas fronteiras, do mineiro João Batista Melo, aborda a recorrente questão da insularidade do estrangeiro na ótica de duas crianças que, na Belo Horizonte da década de 1940, compartilham questionamentos e perplexidades, a reboque do clima de apreensão que antecede a 2ª Guerra Mundial.

Pelo olhares argutos de Valentino (filho de um empresário xenófobo) e da pequena e cega Sophie (neta de Konrad, um mestre cervejeiro alemão que vive a eterna busca da uma receita perdida de uma cerveja bávara) vão se descortinando tempos e geografias, numa simbiose entre presente e passado, diante da bruma indecifrável do futuro. Num movimento pendular entre Alemanha e Brasil, tendo Ettal e Belo Horizonte como cenários de suas deambulações afetivas e territoriais, a infância onírica é destronada, marcada tanto pelo medo e instabilidade emocional diante da possibilidade de ingresso do Brasil no conflito quanto pela amargura dos que, no exílio, assistem, inermes, ao plano bélico que desaguou no Holocausto.

Transcendendo o teatro dos horrores desse período e as tensões dos personagens que, com suas consciências, sutilezas e projeções psicológicas alimentam a trama e servem de sustentação a seu projeto narrativo, o romance também se particulariza pela linguagem extremamente delicada e poética, cujo acento diáfano não dissimula a dimensão trágica dos acontecimentos.

Entre o Brasil e a Alemanha, o romance de Melo é uma profunda e apaixonada discussão sobre valores, instaurando uma percepção ética e humanitária sobre a injustiça e os malefícios da intransigência e do preconceito, essas as verdadeiras e malditas fronteiras que empanam a beleza da existência e amordaçam qualquer espírito de compaixão pelo outro e pela diferença. Expõe o instinto maquiavélico e a pulsão de barbárie ainda tão enrustidas nas consciências das pessoas e dos líderes políticos e que afloram justamente nesses momentos catastróficos, de beligerância entre estados e nações.

Pelos olhos sensíveis de duas crianças, a narração ganha status de um profundo questionamento sobre a brutalidade desse mondo cane em que a realidade, com toda sua carga escatológica e apocalíptica, é desnudada por meio de uma aguda consciência crítica, mostrando as dicotomias e a incompreensão naquele momento da história.

O espaço abissal entre o ver e o sentir, quando está ausente qualquer possibilidade de entendimento, é simbolizado pela sensação de embate entre a cegueira real e a cultural, que a voz do velho Konrad, num dos momentos altos do livro, reverbera: “Cada ser humano percebia de modo distinto o sol e as florestas, a chuva e as pessoas com quem convivia, e em cada pupila se retratava algo diverso. Assim, havia um céu que era seu, nuvens que eram suas, orvalhos que eram seus. Mas uma posse por afinidade, não por propriedade. Tudo isso ameaçou mudar com o nascimento de Sophie cega, mostrando para Konrad novas formas de perceber o mundo”.

Malditas fronteiras, sem dúvida, é um dos mais significativos romances brasileiros contemporâneos sobre um tema milenar e recorrente na literatura universal, o do apartheid de raças e povos e as terríveis consequências do rastro de dilaceramento físico e íntimo dos que foram compelidos a uma existência de sombras e sustos, ao degredo do pré e pós-guerra, com seus escombros e espantos; enfim, ao despertencimento.

* Ronaldo Cagiano é autor de Dicionário de pequenas solidões    (Ed. Língua Geral) e O sol nas feridas (Dobra Editorial), entre outros.


TRECHO:

“As bombas vão libertar aqueles que estão presos na Alemanha, nos campos de prisioneiros. Vão acabar com o mal que ameaça dominar o mundo. Mas é sobre aqueles homens lá embaixo que jogo minhas bombas. É preciso que seus líderes percam a guerra. Que Hitler acabe. Que Mussolini acabe. Que Goebbels. Que Goering. Mas é sobre aqueles homens lá embaixo que jogo minhas bombas. E sei que preciso jogá-las porque senão eles matarão meus amigos, meus conterrâneos de Minas Gerais, há um monte deles por aqui. E então eu jogo minhas bombas. E sonho com aqueles homens todas as noites. Espero que esteja tudo bem em Belo Horizonte. Esse é um consolo. Persigo os fascistas alemães e italianos aqui para que eles não cheguem até a Serra do Curral ou até a Pampulha”.

Malditas fronteiras
. De João Batista Melo
. Editora Benvirá
. 289 páginas, R$ 32,50

 (Benvirá/Divulgação)

Heliodora, Bárbara - Jota Dangelo

Heliodora, Bárbara 

  A mais respeitada crítica de teatro do Brasil, Bárbara Heliodora deixa não só uma lacuna com sua morte, mas também um importante legado para a cultura nacional


Jota Dangelo
Estado de Minas: 25/04/2015



Nascida Heliodora Carneiro de Mendonça, ela foi ensaísta, tradutora, jornalista e crítica teatral
 (Vanor Correia/GERJ )
Nascida Heliodora Carneiro de Mendonça, ela foi ensaísta, tradutora, jornalista e crítica teatral


As artes cênicas perderam no último dia 10 a crítica teatral Bárbara Heliodora. Mais do que uma competente analista de espetáculos teatrais, ela era uma das mais importantes pesquisadoras do teatro brasileiro, defensora intransigente da modernização das artes cênicas no país, posicionando-se desde o início de sua carreira contra os remanescentes do “velho teatro” encastelados na Associação Brasileira de Críticos Teatrais e no antigo Serviço Nacional de Teatro. Uma luta histórica que ficou marcada pelos notáveis textos que a colunista escreveu naquele período.

Nascida no Rio de Janeiro em 29 de agosto de 1923, Heliodora Carneiro de Mendonça ganhou posteriormente o nome de Bárbara e, aos 12 anos, recebeu de presente de sua mãe, a poetisa Ana Amélia Carneiro de Mendonça, uma edição completa das obras de Shakespeare. Durante toda a vida manteve com a obra do bardo inglês uma simbiose existencial, íntima e permanente, que já em 1975, como acadêmica da USP/SP, resultou na defesa de sua tese de doutorado “A expressão dramática do homem político em Shakespeare”, publicada posteriormente em livro.

Consagrada como a maior autoridade do país em Shakespeare, Bárbara Heliodora foi responsável pela tradução da maioria das peças do dramaturgo, além de textos referenciais sobre sua obra, como Falando de Shakespeare, de 1997; Reflexões shakespearianas, de 2004, e Shakespeare: o que as peças contam – Tudo que você precisa saber para descobrir e amar a obra do maior dramaturgo de todos os tempos, de 2014.

Fim de jogo

Bárbara Heliodora começou como colunista teatral numa época em que a presença feminina na imprensa, particularmente no âmbito teatral, era, para dizer o mínimo, inusitado. Antes de ela assumir uma posição na crítica teatral, somente duas mulheres haviam exercido a atividade e, mesmo assim, por pouco tempo: Luiza Barreto Leite, ligada ao Jornal do Commércio, e a inglesa Claude Vincent, na Tribuna da Imprensa.

No ofício de crítica teatral, exercida com inteligência arguta, humor ferino e sinceridade dolorosa, sem condescendências em razão de amizades e círculos de convivência no meio teatral, Bárbara atuou na Tribuna da Imprensa (1957 e em 1990), Jornal do Brasil (1958–1964), revista Visão (1986–1989) e O Globo (1990–2014). Foi no Jornal do Brasil que Bárbara Heliodora, pela primeira vez, decide estar atenta ao que se passava nas artes cênicas em Minas Gerais.

Em 12 de dezembro de 1959, aniversário de Belo Horizonte, o Teatro Experimental estava estreando nacionalmente a peça Fim de jogo, de Samuel Beckett, apresentada pela primeira vez em Londres apenas dois anos antes. Era difícil dimensionar para nós, do Teatro Experimental, nossa satisfação em fazer parte de um empreendimento como aquele. Beckett era referência mundial numa nova e surpreendente dramaturgia, iniciada por ele com o sucesso mundial de Esperando Godot, que antecedera a Fim de jogo.

Bárbara Heliodora também estava atenta às novidades cênicas e compareceu à estreia do espetáculo do Teatro Experimental no Teatro de Bolso do Museu de Arte da Pampulha, recém-reformado. No elenco de Fim de jogo estavam Silvio Castanheira, Neuza Rocha, Ezequiel Neves e eu mesmo, com direção de Carlos Kroeber, cenário de João Marschner e iluminação de José Carlos Almeida Cunha.

Senhorita Julia

A segunda proximidade de Bárbara Heliodora com o teatro mineiro ocorreu muitos anos depois, quando Priscila Freire decidiu pela montagem de Senhorita Julia, de Strindberg, com o Teatro Escola da Cruz Vermelha, criado por ela. Algum tempo antes, a requintada crítica teatral tinha apresentado no Teatro Marília, sob sua direção, A comédia dos erros, de Shakespeare, com um grupo do Rio de Janeiro. O espetáculo não fez sucesso, não atraiu o público e nem foi bem recebido pela crítica.

Daise Prates presidia a Cruz Vermelha e o Teatro Marília pertencia àquela entidade. O grupo teatral carioca tinha se apresentado no Marília a convite de dona Daise, razão pela qual a presidente da Cruz Vermelha em Belo Horizonte convenceu Priscila a convidar Bárbara Heliodora para dirigir Senhorita Julia, na tentativa de amenizar, ou reverter, melhor dizendo, o insucesso da comédia de Shakespeare. Não foi uma boa estratégia: Senhorita Júlia foi um fracasso. Mais do que isso: um desastre, no dizer da própria Priscila Freire, particularmente na curta temporada da encenação no Rio de Janeiro.

O relativo insucesso na direção de espetáculos em nada desmerece o talento, o brilhantismo, a competência, o poder analítico e a contribuição notável de Bárbara Heliodora como crítica e ensaísta teatral, como tradutora de textos teatrais e livros antológicos sobre o teatro. Mais do que isso: em maio de 1964, foi convidada para dirigir o Serviço Nacional de Teatro, ao qual imprimiu seu sopro renovador até 1966. Entre 1966 e 1971, dirigiu o Conservatório Dramático Nacional, onde também atuaria como docente, reduzindo sua atividade jornalística. Apenas em 1985 retomaria suas atividades na imprensa.

Formar público
A saída de cena de Bárbara Heliodora tem um sentido histórico. Ela foi a última grande crítica de uma geração de jornalistas culturais que se imbuiu de um objetivo missionário: formar o público por meio de seus textos. Entre estes jornalistas, que fundaram com Bárbara o Círculo Independente dos Críticos Teatrais (CITC) no final dos anos 1950, estavam Paulo Francis (1930–1997), Bricio Abreu (1903–1970), Edgar Alencar (1908–1993) e Henrique Oscar (1925–2003).

Em boa hora, a professora Claudia Braga, doutora em artes pela Unicamp, com pós-doutorado nas universidades de Paris III, Sorbonne Nouvelle e Lyon II, organizou e publicou pela Editora Perspectiva, em 2007, o volume de 948 páginas Bárbara Heliodora – Escritos sobre teatro, registro indispensável da obra crítica e ensaística de uma das figuras mais importantes do universo das artes cênicas no Brasil.

* Jota Dangelo é diretor, ator, dramaturgo e gestor cultural 

EM DIA COM A PSICANáLISE » Palavra parada

EM DIA COM A PSICANáLISE » Palavra parada


Regina Teixeira da Costa - reginacosta@uai.com.br
Estado de Minas: 26/04/2015 




Existem pessoas inspiradas. Como as admiro e, por isso mesmo, desculpem-me a franqueza, as invejo (em 50 tons)! As pessoas assim dotadas precisam expressar seus sentimentos. Geralmente, encontram meios criativos para fazê-lo e, dessa forma, tocam as outras que, ao se depararem com seu feito, identificam-se e compartilham de um grande e prazeroso entusiasmo.

Freud escreveu sobre os “Escritores criativos e devaneio” (1908). Interessado pela criação imaginativa, comparou o brincar infantil com a criação poética. Ele indaga se não estariam na infância os primeiros traços da capacidade imaginativa, já que a criança prefere o brincar e usa nessa atividade muito da realidade em que vive. Freud sugere que, ao brincar, toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio. O autor nos ensina que a antítese do brincar não é o sério, mas sim o real. Um equívoco frequente.

Além de colocar os escritores criativos e sua capacidade de fantasiar e de criar como herdeiros do brincar infantil, Freud ainda afirma serem as fantasias oriundas dos desejos insatisfeitos. Toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória.

Nós, literalmente, pegamos uma boa carona no que os artistas criam e por isso mesmo desfrutamos de suas obras com tanto prazer. Freud era um excelente leitor, amava a literatura. Sergio Paulo Rouanet escreveu o livro Os dez amigos de Freud (Companhia das Letras, 2003) em dois volumes, apresentando 10 dos escritores preferidos e as afinidades do pai da psicanálise.

Os escritores sabem pelo menos intuitivamente a importância das palavras e como são fundamentais por urdirem os laços que nos ligam aos demais. Elas são a cura que nos alivia dos males sofridos e, ao mesmo tempo a faca que corta e fere frequentemente nosso semelhante. O conselho: devemos cuidar mais do que sai da boca do que do que por ela entra, é bíblico. Encontrei outro dia uma poetisa, Viviane Mosè, que escreveu: “Pessoas adoecem da razão, de gostar de palavra presa. Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima. Lágrima é dor derretida, dor endurecida é tumor”.

A palavra é vital de fato e, quando encontramos quem as use bem, ficamos fascinados. A força da palavra, seja falada, escutada, escrita, sustentada, é de inacreditável influência e poder. A psicanálise trabalha com a palavra presa e com a pedra que ela significa para um sujeito. A verdade íntima de cada um de nós espera ser resgatada de um recôndito estado de desconhecimento. Espreita palavras a serem pronunciadas. Ou não. É o que a poeta Sandra Viola toca nos seguintes lindos versos:

“Como uma pedra no mar/há em mim/uma palavra parada

Pedra e palavra aguardam/(inutilmente)/ a poesia”

Os Largados - Martha Medeiros

Zero Hora 26/04/2015

Sem computador, sem televisão e sem bateria no celular, me restou o ato heroico de ler um livro
Antigamente eu rosnava a cada vez que ficava sem luz em casa. Agora até festejo, e não só pela economia na conta. Dias atrás, a energia elétrica caiu às quatro da manhã e só retornou perto do meio-dia. Sem computador, sem televisão e sem bateria no celular, me restou o ato heroico de ler um livro do começo ao fim, de um fôlego só. Por sorte, Os Largados, do italiano Michele Serra.
Divertir e comover. Combinação diabólica plenamente atingida pelas 125 páginas que contam a história de um pai exasperado com o filho de 19 anos que vive entocado com seus gadgets eletrônicos. Um guri que não conversa, se veste com molambos, come no sofá, não vê a cor do céu, enfim, desperdiça sua juventude.
Enquanto o pai busca caminhos para se conectar com essa criatura amorfa (caminhos inclusive no sentido literal: acredita que se conseguir convencer o garoto a acompanhá-lo numa trilha, nem tudo estará perdido), vai elaborando mentalmente um livro que sonha em escrever sobre uma fictícia Guerra Mundial entre Jovens e Velhos. E é aí que Os Largados diz a que veio.
É só olhar para trás e lembrar as inúmeras diferenças que tínhamos com nossos pais. Quem não? O conflito de gerações é um clássico na vida de qualquer um. Porém, essa guerra se dava no mesmo campo de batalha. Podíamos pensar de forma distinta, mas comíamos todos à mesma mesa, a música vinha do único equipamento de som instalado na casa, fazíamos passeios familiares, conversávamos – ou discutíamos, brigávamos, que seja, mas dentro de um universo comum.
Não é mais assim. Diz o pai ao filho, no livro: “Agora tenho a sensação – a suspeita? o terror? – de uma mutação tão radical que dificilmente, um dia, poderemos nos reconhecer, você e eu, no mesmo prazer”. E continua: “Partiu-se uma corrente – da qual eu sou o último elo”.
A questão é: que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê, que se comunica à distância com os outros, que perdeu o idealismo, que fica zonza e por vezes até paralítica diante das variadas opções disponíveis de sexo, amor, carreira?
Estão 100% plugados, mas cada vez mais desconectados de nós, os últimos analógicos desta era. Largados num novo mundo que está sendo construído à nossa revelia. Não, o livro não é pessimista ou trágico, ao contrário. É extremamente engraçado, mas com uma graça firmemente apoiada na inteligência, na ironia e na reflexão. E dá o devido espaço a uma emocionante descoberta: nesta guerra entre jovens e velhos, a razão circula entre os dois exércitos e tem múltiplas formas de se apresentar.


Leia, porque o livro é muito bom. E também porque livros, este ou qualquer outro, continuam sendo fornecedores de uma energia que se mantém on em qualquer circunstância. O cérebro não cai.

sábado, 25 de abril de 2015

Trinta tons de Milton

Álbum-tributo aos 50 anos de carreira do músico reúne jovens artistas de 11 estados brasileiros. Eles fazem releituras de sucessos e do lado B do ícone do Clube da Esquina


Ana Clara Brant
Estado de Minas: 25/04/2015 



O paulista Dani Black, o paraense Felipe Cordeiro, a carioca/mineira Aline Calixto, os paranaenses Thaís Gulin e A Banda Mais Bonita da Cidade, os pernambucanos da Orquestra contemporânea de Olinda e os cearenses do Selvagens à Procura da Lei são alguns dos artistas da nova geração que farão um tributo aos 50 anos de carreira de Milton Nascimento.

Alguns deles têm uma relação mais íntima com a obra de Bituca e com o próprio. Outros, contudo, não têm o ícone-mor do Clube da Esquina como referência e sequer o gravaram antes. O objetivo é prestar uma homenagem única, em versões inéditas de 30 canções que marcaram a trajetória do cantor e compositor de Três Pontas, no sul do estado.

“Fui atrás de artistas de estéticas e gêneros completamente diferentes. Rap, MPB, indie, samba, erudito, justamente para imortalizar a música desse gênio. Todos os convidados são representantes da nova safra da nossa música e possuem alguma influência ou admiram o Milton”, afirma o idealizador do projeto, batizado de Mil Tom, o produtor Pedro Ferreira. Em 2012, o produtor lançou a elogiada coletânea Re-Trato, que contou com 32 releituras de Los Hermanos.

Ferreira diz que a iniciativa é independente, sem fins lucrativos e que o resultado não será comercializado. O tributo renderá um álbum duplo, com 15 faixas cada um, que poderá ser conferido, a partir de junho, no site Scream&Yell (www.screamyell.com.br), onde estará disponível para streaming e download gratuito.

O disco também terá uma arte da ilustradora paraibana Luyse Costa. Com relação ao repertório, o produtor procurou deixar os artistas à vontade para escolher as canções. Cada um elegeu sua própria faixa. Poderia até ser uma composição sem a assinatura de Bituca, mas teria que ser uma música imortalizada por ele.

Paisagem da janela (Lô Borges e Fernando Brant) foi a escolhida do cantor e compositor Dani Black, que passou de fã a amigo de Milton Nascimento. “É uma composição maravilhosa, que tem uma simplicidade, uma coisa meio intuitiva. Acho interessante fazer uma releitura, porque ela é bem conhecida e é bacana brincar com ela. Como a maioria do público conhece a original, acho que vai ser interessante conhecer a minha versão”, diz.

Dani, que escuta as canções do compositor mineiro desde criança. Quando conheceu pessoalmente o cantor, tornaram-se amigos. Por isso ele é um entusiasta da homenagem concebida por Pedro Ferreira. “Todo mundo participando e depois joga na rede. Quem se interessar, ouve e compartilha. É um projeto muito livre. Cada artista faz do jeito que quer. Não há restrição alguma. Você dialoga, literalmente, com o mundo todo. Gosto muito dessa iniciativa, porque é um jeito de você movimentar e celebrar essa cena nova da música brasileira”, afirma.

Já a banda carioca Baleia não é próxima de Bituca como Dani Black, mas, curiosamente, quando lançou seu primeiro disco, começou a notar influências da turma do Clube da Esquina. “Não foi algo consciente, porque nunca foi uma referência direta. Mas passamos a escutar e a gostar bastante e ver que realmente havia um diálogo, mesmo inconsciente. Desde então, fomos explorando algumas músicas. Várias delas estão à frente do tempo até hoje. São hipercontemporâneas”, analisa um dos vocalistas do grupo, Gabriel Vaz.

Quando foram convidados para participar do projeto Mil Tom, os músicos da Baleia toparam de primeira, até porque, segundo Gabriel, a banda adora ter motivos para fazer versão da música dos outros. “É muito divertido e, nesse caso, seria uma maneira de fechar essa relação com o Milton e com o Clube da Esquina”, justifica.

A música escolhida é uma espécie de lado B do lado B, E daí?, parceria de Bituca com Ruy Guerra (Tenho nos olhos quimeras/Com brilho de trinta velas/Do sexo pulam sementes), que faz parte do disco Clube da esquina 2. “Ela é meio desconhecida, mas ficamos encantados. Achamos essa canção muito diferente, tem um clima que a gente gosta. Apesar de E daí? ter caminhos melódicos variados e uma letra extensa, estamos animados.”

O cantor e compositor paraense Felipe Cordeiro é outro que está animado para criar sua releitura de Cravo e canela (Milton e Ronaldo Bastos), que, de acordo com ele, é uma composição que vai permitir mostrar a sua sonoridade. Felipe pretende usar sua guitarra, além dos beats de computador. “Eu me identifiquei com Cravo e canela, pelo suíngue, principalmente. Nunca gravei nada do Milton, e será um desafio interessante e inusitado. Eu me aproximo mais do pessoal da Tropicália do que de alguém como ele, que tem uma tradição mais enraizada, um artista mais ligado ao cancioneiro. Mas tenho certeza de que vai ser uma experiência única”, afirma.

FAIXA A FAIXA


Confira as canções e os intérpretes de Mil Tom

Ponta de areia - A banda mais bonita da cidade (PR)
Saudade dos aviões da Panair (Conversando no bar) - Aláfia (SP)
Vera Cruz - Aline Calixto (MG) 

 (Henrique Gulatieri/Divulgação


)


Cais - Ana Larousse (PR)
E daí? - Baleia (RJ)

 (Carolina Vianna/Divulgação)


Maria Maria - Banda Tereza (RJ)
Beijo partido - Blubell (SP)
San Vicente - Bruno Souto (part. Banda Chá de Pólvora) (PE – SP)
Paisagem na janela - Dani Black (SP)

 (Henrique Gulatieri/Divulgação)


Credo - Dom Pepo (MG)
Cravo e canela - Felipe Cordeiro (PA)

 (Euler Junior/EM/D.A Press)


Para Lennon e McCartney - Fernando Temporão (RJ)
Canoa, canoa - Filarmônica de Pasárgada (SP)
Nos bailes da vida - Gisele De Santi (RS)
O rouxinol - Karol Conka (PR)
Sereia - Letuce (RJ)
Nada será como antes - Los Porongas (AC)
Caxangá - Orquestra Contemporânea de Olinda (PE)
Travessia - Pedro Morais (MG)
Paula e Bebeto - Pélico & Bárbara Eugênia (SP – RJ)
Paixão e fé - Phill Veras (MA)
Tudo que você podia ser - Rashid (SP)
Nuvem cigana - Selvagens à procura de lei (CE)
Caçador de mim - {Sí}monami (PR)
Amor de índio - Thaís Gulin (PR) 

 (Jorge Bispo/Divulgação )


O Trem azul, The Outs (RJ)
Canção amiga - Tiberio Azul (PE)
Pablo - Tono (RJ)
Clube da esquina n° 2 - Vanguart (MT)
Canção do sal - Verônica Ferriani (SP)

Admitem-se fãs

Não serão apenas os músicos poderão homenagear Milton Nascimento. O público também está sendo convidado pelo site Scream&Yell a fazer parte da criação da coletânea, por meio de um concurso de fotografias que ilustrará o futuro disco. Os fãs podem fotografar momentos que representem ou remetam a cada uma das 30 músicas selecionadas para o álbum e enviar para o e-mail do projeto (coletanea.mil.tom@gmail.com). Será escolhida uma imagem para ilustrar cada faixa. A curadoria ficará a cargo dos integrantes e colaboradores do site. “Já têm chegado imagens muito interessantes e acho importante essa participação dos anônimos que admiram o Bituca também”, diz o produtor Pedro Ferreira.


Milton são muitos


O cantor e compositor Dani Black, que regrava Paisagem da janela

 (DIVULGAÇÃO)
O cantor e compositor Dani Black, que regrava Paisagem da janela


Para homenagear os 50 anos de carreira do maior nome do Clube da Esquina, produtor convida 30 jovens artistas a gravar canções que se tornaram marcas registradas na voz de Bituca. O time reúne fãs confessos e novos admiradores. Previsto para junho, álbum duplo não será comercializado. Streaming e download gratuitos estarão disponíveis na internet. Fãs do cantor e compositor são convidados a participar do tributo, enviando fotos para ilustrar as músicas.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Força Maior - Martha Medeiros

Vou contar o início do filme Força Maior. Não é spoiler, pois esta cena importante, que desencadeia todo o resto, já foi comentada em outras resenhas, mas é melhor avisar.
Uma família convencional (mãe, pai e um casal de filhos pequenos) vai passar seis dias esquiando nas montanhas. Na manhã do segundo dia, estão num avarandado ao ar livre, almoçando, quando percebem uma pequena avalanche na montanha em frente. Em princípio, tudo bem, são comuns as avalanches controladas, mas esta parece ligeiramente descontrolada, até que, por precaução, as pessoas em volta começam a se levantar das mesas, ouvem-se gritos e então o caos se instala: tudo indica que a neve soterrará a todos.
Diante do perigo súbito, o pai pega seu celular e corre para longe. Deixa a esposa e as duas crianças para trás, que se agacham e esperam pelo pior – mas nada acontece. Ou acontece?
O pior, no caso, seria um acidente com mortos e feridos, mas não: apenas uma névoa seca cobriu o ambiente e logo todos voltaram a seus lugares. O pai retorna a seu assento e a família prossegue com o lanche, mas dali em diante nada mais será igual, pois aconteceu, sim, o pior. Aquele pai fez o que não se espera de seu papel tradicional: fugiu sem pensar em mais ninguém.
A maneira como o filme foi dirigido faz a gente sentir uma angústia similar à de cada membro da família. Ninguém mais sabe como deve se comportar. Tudo era tão certinho entre aqueles quatro, as “avalanches” emocionais eram sempre tão controladas, e, de repente, a descoberta: pessoas seguem impulsos, têm ímpetos, se desgovernam.
Poderíamos reduzir o filme a uma questão trivial: os homens não seriam tão protetores quanto as mães, mas isso é uma falácia. O que o filme mostra é que criamos um padrão de comportamento que sustenta nossas emoções, e nos desestabilizamos quando esse padrão é quebrado.
Em uma cena significativa, a mãe conversa com uma turista que está no mesmo hotel e que, apesar de casada e com filhos, está viajando sozinha e tem algumas aventuras sexuais com outros hóspedes. São duas mulheres com visões antagônicas sobre o casamento – uma é conservadora, a outra, extremamente liberal –, mas o que poderia ser uma simples troca de experiências descamba para uma cobrança raivosa. A mãe não consegue disfarçar sua perplexidade (e uma pontinha de inveja, suponho) diante daquela estranha que se permite viver de forma tão livre, arriscando perder seus afetos. De que, aliás, a outra discorda, pois acredita que é justamente a honestidade em relação a seu desejo que fortalece seus vínculos.


Não temos domínio sobre ninguém, e o domínio que temos sobre nós mesmos é relativo. O que o filme deixa claro como a neve é que, se queremos tanto nos sentir protegidos, um bom começo seria aceitar que estamos deslizando em meio ao risco o tempo todo. Incluindo o risco de agirmos como nunca imaginamos.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Dez anos de festa

Será aberta no sábado a programação da Feira Nacional do Livro e do Festival Literário de Poços de Caldas, reunindo grande número de autores e expositores e mais de 80 mil títulos


Ana Clara Brant
Estado de Minas: 20/04/2015




O escritor Ignácio de Loyola Brandão participa pela terceira vez da Flipoços, aproveitando a nova oportunidade para lançar o livro Os olhos cegos dos cavalos loucos (Flipoços/Divulgação )
O escritor Ignácio de Loyola Brandão participa pela terceira vez da Flipoços, aproveitando a nova oportunidade para lançar o livro Os olhos cegos dos cavalos loucos


Na 1ª edição da Feira Nacional do Livro de Poços de Caldas, realizada em maio de 2006, o evento contou com apenas 30 expositores e uma programação voltada apenas para atividades infantis. Este ano, a feira, que é realizada simultaneamente com o Festival Literário de Poços de Caldas (Flipoços), vai reunir, de sábado até 3 de maio, no Espaço Cultural da Urca, na cidade do Sul de Minas, cerca de 50 expositores com mais de 80 mil títulos de livros a preços atrativos, dezenas de palestrantes e atrações variadas ligadas não só à literatura, mas à música, cinema, teatro e gastronomia.
“Começamos timidamente, com poucos convidados, mas a receptividade da população foi impressionante”, explica Gisele Ferreira, diretora da GSC, empresa organizadora do festival. “Poços é uma cidade muito literária, desde a sua criação, em 1872, e tudo isso favoreceu para que tanto a feira quanto o festival crescessem ao longo dos anos. A Flipoços se consolidou e se tornou um dos principais eventos de literatura do Brasil e o maior do estado”, destaca, enumerando alguns dos palestrantes confirmados: Ignácio de Loyola Brandão, Zuenir Ventura, João Carrascoza, Ana Miranda, Clóvis de Barros, Luís Erlanger, Antônia Pellegrino e Carlos Herculano Lopes.
Em 2015, o tema escolhido para celebrar os 10 anos do Festival Literário é “A literatura como resgate da velha infância”, que convida todos a uma reflexão sobre os bons tempos em que as brincadeiras de rua e os livros faziam parte do universo infantil. O patrono da Flipoços 2015 será o escritor, jornalista e cartunista mineiro Ziraldo, que participa pela primeira vez do evento. “A ideia é redescobrir a criança que existe dentro de nós por meio dos livros e fazer com que a garotada de hoje viva mais no mundo das crianças, com as brincadeiras de rua e jogos coletivos, do que no mundo da tecnologia. E o Ziraldo tem tudo a ver com isso, porque ele pega todas as gerações e ainda hoje vem conquistando os pequenos cada vez mais”, acrescenta Gisele.

Pedido de perdão Primeiro escritor de renome que foi à Flipoços, Ignácio de Loyola Brandão participa do evento pela terceira vez. Ele vai lançar nessa edição um livro que tem tudo a ver com a temática do festival: Os olhos cegos dos cavalos loucos. O escritor revela que levou 60 anos para escrever este livro, que é uma homenagem ao avô, Zé Maria, um marceneiro que construiu um carrossel de cavalos de madeira e cujos olhos eram bolinhas de gude. Um dia houve um incêndio e do carrossel só restaram as bolinhas, que ficaram guardadas numa caixa. Numa traquinagem, o neto Ignácio pegou as bolas de gude e foi brincar com os amiguinhos. No entanto, acabou perdendo todas elas.
“Vovô ficou muito deprimido porque era a única coisa que tinha restado do carrossel”, lembra o escritor. “Minha avó ficou cobrando quem tinha pegado as bolinhas, mas meu avô nunca acusou ninguém. Anos depois, ele me deu aquela caixa vazia, e me disse que sempre soube que era eu quem tinha pegado as bolinhas e que era para eu guardar as melhores coisas da minha vida dentro dela. Nunca guardei nada porque nunca achei que tivesse nada mais importante do aquilo que o meu avô tinha”, acredita Loyola, que considera Os olhos cegos dos cavalos loucos uma espécie de pedido de perdão ao avô.
Acostumado a participar de eventos literários país afora, Ignácio de Loyola Brandão afirma que quanto mais feiras, festivais, fóruns e bienais de literatura forem realizados, mais se chama a atenção para livros e autores, mas é importante que isso se transforme também em formação de leitores. “Acho fundamental levar os escritores para as escolas, para a periferia e outros locais porque há casos em que a feira fica lá e as pessoas acabam não tendo acesso, ficam com receio, ou não querem ir. Muitas vezes nós é temos que ir em busca do leitor.”

Juventude Estreante na Flipoços, a escritora mineira Stella Maris Rezende, que mora no Rio de Janeiro, está bastante ansiosa por causa da palestra que fará sobre “A aventura de ler na juventude”. “Sempre ficava me perguntando quando iriam me convidar, porque é um evento superconsolidado. Pretendo falar sobre essa descoberta da leitura, a magia e outras coisas que surgem na juventude, como a sexualidade, as primeiras desilusões”, frisa.
Vencedora do Prêmio Jabuti de ficção em 2012 com o livro A mocinha do Mercado Central, Stella aprovou o tema do festival, ainda mais que está acostumada a escrever para crianças e acha extremamente relevante resgatar os valores antigos da infância. Nascida em Dores do Indaiá, ela é outra que tem participado de vários eventos de literatura no Brasil e só tem a celebrar a proliferação deles. “Todos são importantes e, apesar de se parecerem em vários aspectos, cada um tem a sua particularidade.”


Destaques da programação

Dia 25
Abertura Orquestra Ouro Preto com o espetáculo
Cantigas de bem querer
Palestra de Stella Maris Rezende
“A aventura de ler na juventude”

Dia 26
Homenagem especial e bate-papo com Ziraldo

Dia 27
Ignácio de Loyola Brandão lança
Os olhos cegos dos cavalos loucos

Dia 28
Encontro Arte da Periferia

Dia 29
Encontro dos Escritores Lusitanos

Dia 30
Bate-papo com o escritor e jornalista Luis Erlanger
João Carrascoza conversa sobre o livro Aquela água toda

Dia 1º
Zuenir Ventura e Merval Pereira debatem o jornalismo
Encontro “Ler é bacana”, com Thalita Rebouças e Babi Dewet

Dia 2
Bate-papo com Ana Miranda

10ª Feira Nacional do Livro de Poços
de Caldas e Festival Literário (Flipoços)

De 25 de abril a 3 de maio, no Espaço Cultural da Urca
– Poços de Caldas. Entrada franca. Para as palestras
masters é necessário ingresso, que é trocado por livros
doados Informações: www.flipocos.com 

domingo, 19 de abril de 2015

‘Os largados’ - Martha Medeiros

O Globo 19/04/2015

“Que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê, que se comunica à distância, que fica zonza diante das variadas opções de sexo, amor, carreira?”

 Antigamente eu rosnava a cada vez que ficava sem luz em casa. Agora até festejo, e não só pela economia na conta. Dias atrás, a energia elétrica caiu às quatro da manhã e só retornou perto do meio-dia. Sem computador, sem televisão, sem bateria no celular, me restou o ato heroico de ler um livro do começo ao fim, sem interrupção. Por sorte, “Os largados”, do italiano Michele Serra.

Divertir e comover. Combinação diabólica plenamente atingida pelas 125 páginas que contam a história de um pai exasperado com o filho de 19 anos que vive entocado com seus gadgets eletrônicos. Um guri que não conversa, se veste com molambos, come no sofá, não vê a cor do céu, enfim, desperdiça sua juventude.

Enquanto o pai busca caminhos para se conectar com essa criatura amorfa (caminhos inclusive no sentido literal: acredita que se conseguir convencer o garoto a acompanhá- lo numa trilha, nem tudo estará perdido), vai elaborando mentalmente um livro que sonha em escrever sobre uma fictícia Guerra Mundial entre Jovens e Velhos. E é aí que “Os largados” diz a que veio.


É só olhar para trás e lembrar as inúmeras diferenças que tínhamos com nossos pais. Quem não? O conflito de gerações é um clássico na vida de qualquer um. Porém, essa guerra se dava no mesmo campo de batalha. Podíamos pensar de forma distinta, mas comíamos todos à mesma mesa, a música vinha do único equipamento de som instalado na casa, fazíamos passeios familiares, conversávamos — ou discutíamos, brigávamos, que seja, mas dentro de um universo comum. Não é mais assim. Diz o pai ao filho, no livro: “Agora tenho a sensação — a suspeita? o terror? — de uma mutação tão radical que dificilmente, um dia, poderemos nos reconhecer, você e eu, no mesmo prazer.”

E continua: “Partiu-se uma corrente — da qual eu sou o último elo.”

A questão é: que novas correntes estarão sendo formadas pela garotada que não lê, que se comunica à distância com os outros, que perdeu o idealismo, que fica zonza ou, pior, paralítica diante das variadas opções disponíveis de sexo, amor, carreira?

Estão 100% plugados, mas cada vez mais desconectados de nós, os últimos analógicos desta era. Largados num novo mundo que está sendo construído à nossa revelia. Não, o livro não é pessimista ou trágico, ao contrário. É extremamente engraçado, mas com uma graça firmemente apoiada na inteligência, na ironia e na reflexão. E dá o devido espaço a uma emocionante descoberta: nesta guerra entre jovens e velhos, a razão circula entre os dois exércitos e tem múltiplas formas de se apresentar.

Leia, porque o livro é muito bom. E também porque livros, este ou qualquer outro, continuam sendo fornecedores de uma energia que se mantém on em qualquer circunstância. O cérebro não cai.      

Camarim - Martha Medeiros

Zero Hora 19/04/2015

O que eu menos queria naquele momento era comer, mas e a desfeita?

E o desperdício?

Como se sabe, escritores são convidados a palestrar em Feiras do Livro, Bienais e demais eventos literários. É uma forma de passar nossa experiência adiante, de estimular a leitura, de conhecer os leitores e de faturar um cachezinho, já que também pagamos contas.

Trilhei o Estado e boa parte do país realizando esses encontros, porém hoje quase não viajo a trabalho: preciso ficar mais tempo em casa escrevendo, as demandas aumentaram. Mas, de vez em quando, abro exceções, como quando estive numa cidade do interior do Rio. Tinha mesmo que ir para a capital, então dei uma esticada. Tudo certo, até que, dias antes de eu embarcar, a organização do evento me enviou um e-mail pedindo que eu fizesse as exigências de camarim.

Como é que é? Por alguns segundos, me senti o Axl Rose. A Lady Gaga. Me vi diante daqueles espelhos circundados por lâmpadas e elaborei mentalmente uma lista básica: champanhe brut, queijos franceses, bombons trufados, patê de foie gras, torradas italianas e Coca-Cola com meu nome no rótulo, ou nada feito. Acordei do transe com minha própria risada.

Respondi: olha, nem imaginava que haveria um camarim, mas, havendo, ficaria feliz com um banheiro e água mineral. Muito grata, até breve.

Eu não sabia, mas o bate-papo seria no sambódromo local. Havia centenas de pessoas me aguardando. Fui conduzida ao camarim por guarda-costas. Tinha alguma coisa errada: será que me confundiam com a Rihanna? Atravessei um longo corredor no backstage e por fim abriram uma porta com uma estrela dourada, como nos filmes.

Ao entrar, me deparei com uma mesa que humilharia nossos cafés coloniais. Nunca vi quantidade igual de frios, pães, salgadinhos, cachorrinhos, sanduíches, cupcakes, minipizzas, canapés, amanteigados. E, no centro, um grande pote de vidro repleto de MM´s coloridos. Lembrei da banda Van Halen, que sempre exige MM´s antes dos shows, só que sem a casquinha que reveste o chocolate. Os meus tinham a casquinha, era a graça da coisa. Guloseimas com monograma.

Tive vontade de chorar. O que eu menos queria naquele momento era comer, mas e a desfeita? E o desperdício? Havia umas quatro pessoas esperando eu avançar, incluindo um fotógrafo. Alcançavam guardanapos e sugeriam: comece por este, não deixe de provar o folhado, esse bolinho foi minha tia que fez, aquele papo-de-anjo é o predileto da prefeita.



Minha conversa com o público durou uma hora e meia, e passei o tempo todo aflita com um miolinho de pão que teimou em se instalar entre o incisivo e o canino superior. Essa coisa de escritor ser tratado como astro pop, convenhamos, é meio constrangedor. Mas, por via das dúvidas, incluirei na minha próxima lista uma dúzia de escovas de dente. Com cerdas de nylon ultra soft e de alguma marca dinamarquesa, pra não me mixar.