domingo, 2 de novembro de 2014

Morra bem - Martha Medeiros

Zero Hora - 02/11/2014

Um dos meus textos mais conhecidos chama-se A morte devagar, que publiquei na véspera de Finados de 2000 e que logo ganhou o mundo com o título Morre Lentamente. No início foi equivocadamente atribuído a Pablo Neruda, por isso o espalhamento e seu sucesso. Passado tanto tempo, já me devolveram a autoria e hoje esse texto virou canção na França e entrou no roteiro de um filme italiano - sem falar nas traduções para o espanhol, que alguns desconfiados ainda acreditam ser seu idioma de origem.
Na época, aproveitando a proximidade do Dia dos Mortos, escrevi puxando as orelhas (não os pés) daqueles que morrem em vida: os que evitam o risco, a arte, a paixão, o mistério, as viagens, as perguntas – apenas atravessam os dias respirando.

Hoje, neste dia de Finados, 14 anos depois, reitero: não morra lentamente. Morra rápido, de uma vez só, sem delongas. Morra quantas vezes for necessário.

 Quando fiz meu mapa astral, ouvi da astróloga: “Você tem dificuldade de lidar com ambivalências, gosta das coisas esclarecidas, para o bem ou para o mal”. E ela concluiu: “Morrer é algo que você faz bem, ficar em banho-maria, não”.
Sombrio? Soturno? Ao contrário. Entendi com clareza sobre o que ela falava. Morte é a antessala da luz. Não a morte definitiva, que encerra o assunto, mas as diversas mortes em vida, os vários falecimentos a que somos submetidos. É preciso morrer bem enquanto se vive.
Cada final de amor é uma pequena morte, por exemplo. Morre lentamente quem fica alimentando fantasias de retorno, planejando vinganças, cultivando lembranças com naftalina. Sei que dói, mas não deixe esse amor definhando na UTI, dê logo a extrema-unção, acabe com isso, morra rápido, morra de vez, para que possa renascer ligeiro também.
Finais de carreira, finais de amizade, finais de ciclo: mortes que acontecem aos 30, aos 40 anos, em qualquer idade. Dói, dói demais, não estou negando a dor, mas o que você prefere? As dúvidas, as ilusões, o apego? Prefere a sobrevida a uma vida nova? Confie na experiência de quem já se enterrou algumas vezes. Morra. Morra bem morrido, baby.
Final de juventude, final da faculdade, final de uma viagem de intercâmbio: vai ficar agindo como se tivesse 18 anos para sempre? Mate o garoto, renasça adulto.

 A morte daqueles que amamos é trágica, mas nossa própria morte, não. Ela é uma contingência de nossa longa existência, e essa não é uma frase cínica, simplesmente é assim. Nossos sonhos morrem. Nosso passado morre. Nossas crenças, nossas fases. Fazer o quê? Morra bem. Morra com categoria. Com dignidade. O menos lentamente possível. Morra de morte bem arrematada, uma, duas, três mil vezes, morra em definitivo sempre que for exigido, para sobrar tempo.

Nova Arena - Eduardo Almeida Reis

TIRO E QUEDA » Nova arena

Consta que a priprioca é abortiva, enquanto as raízes da tiririca passam por afrodisíacas, fato que deve ser divulgado para acabar com a praga.


Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 02/11/2014




É impressionante a implicância da mídia do Sudeste com os nossos irmãos do Nordeste. Quem foi que disse, em que lei está escrito que o Ceará não pode ter um Coliseu? Se Roma tem um, começado a construir no ano 70 antes de Cristo, por que diabo o município cearense de Alto Santo, a 246 quilômetros de Fortaleza, não pode ter seu Coliseu? O romano é uma das sete maravilhas do mundo moderno e o alto-santuense tem tudo para entrar na lista das sete maravilhas do mundo futuro.

Argumentos pueris e preconceituosos têm sido usados para criticar o Coliseu cearense, tais como o fato de ter sido usada verba federal em sua construção e a capacidade para 20 mil pessoas, quando a totalidade dos felizes habitantes do município nordestino, de mamando a caducando, anda pelos 17 mil alto-santuenses.

Vamos por partes, que Roma, terra do outro Coliseu, não se fez num dia. Verbas federais podem ser aplicadas na construção de estádios, hospitais, escolas, creches, estradas, hidrelétricas: não foram inventadas apenas e tão somente para ser furtadas por determinados partidos políticos. Quanto à capacidade de um estádio para 20 mil pessoas num município de 17 mil que não tem time de futebol, bem se vê que a mídia do Sudeste não conhece a eficiência reprodutiva do cearense. O time é irrelevante: logo, logo, o Coliseu de Alto Santo ficará pequeno quando há shows sertanejos, funkeiros, violeiros e pagodeiros para manter lotada a novel arena.

Presente
Voltando de um passeio a Belém, capital do estado do Pará, boa amiga mandou-me presente contendo glúten, substância azotada, viscosa, extraída de cereais, depois de eliminado o amido. Como não sou intolerante ou alérgico a essa proteína, posso consumir o presente original.

Já o motivo do passeio foi originalíssimo: aproveitar passagem aérea BH-Belém-BH comprada por R$ 100 com muita antecedência. Isso me faz supor que uma passagem de ida e volta por R$ 200 anime a boa amiga a visitar o Estado Islâmico.

Sedexado de BH para o philosopho, o presente chegou intacto: duas garrafas de cerveja artesanal produzidas pela Amazon Beer (since 2000), uma Forest de bacuri e uma Red Ale de priprioca. Homessa! Cerveja de priprioca, também chamada piripirioca, Cyperus articulatus, uma ciperácea aromática e medicinal, natural da Amazônia, parente do junco e do papiro, cujas raízes liberam uma fragrância leve, amadeirada e picante com notas florais. É considerada invasora. Por ser aparentada com a tiririca, muita gente receia cultivá-la.

Consta que a priprioca é abortiva, enquanto as raízes da tiririca passam por afrodisíacas, fato que deve ser divulgado para acabar com a praga. No folclore, o Piri-Piri era importante guerreiro da Amazônia. Conta-se que exalava cheiro maravilhoso capaz de atrair qualquer índia. Pelo sim, pelo não, no dia em que criar coragem para degustar a Red Ale, pretendo trancar bem trancada a porta do apê em que me escondo para evitar uma invasão de mineiras, pois a mistura do cheiro do Piri-Piri com o aroma do charuto pode produzir fragrância ainda mais maravilhosa que a da piripirioca.

Beltrano
Seu nome não interessa, mas ele existe, é mineiro e muito rico, mas muito rico mesmo. Foi reeleito deputado em 2014. Há sete anos, conversando sobre política brasileira com um jornalista muito rodado, muito relacionado, que já viu tudo em matéria de malfeitos, perguntei-lhe se conhecia alguém que se candidatasse pensando trabalhar pelo bem do país. O jornalista respondeu: “O Beltrano”. Por sinal, nosso amigo comum, ou, pelo menos, cavalheiro com o qual mantínhamos relações cordiais, tipo jantar de aniversário nosso ou de terceiros.

Concordei com a resposta da raposa midiática, porque o Beltrano, riquíssimo, ocupadíssimo, viajando feito louco pelo Sudeste inteiro, devia mesmo estar pensando fazer como deputado algo pelo país em que nasceu e enricou. Passam-se os meses e o encontro jantando com a mulher em casa de amigos. Conversa vai, conversa vem, sem que fosse perguntando, ele me diz: “Meus negócios melhoraram muito depois que fui eleito deputado”. Donde se conclui que é melhor não concluir nada e deixar como está para ver como é que fica.

O mundo é uma bola


2 de novembro de 1895: primeira corrida de automóveis na América. Em 1930, Haile Selassié, nascido Tafari Makonnen ou Ras Tafari, torna-se o 111º imperador da Etiópia, mas podia ter poupado o planeta dos pavorosos cabelos rastafári, que devem ser impossíveis de lavar. Em 1988, primeira propagação de um vírus na internet.

Em 69 a.C. nasceu Cleópatra, rainha do Egito, que morreria em 30 d.C. Em 1470 nasceu Eduardo V, da Inglaterra, que seria rei durante dois meses. Morreu com 13 aninhos. Em 1745 nasceu Maria Antonieta, arquiduquesa da Áustria e rainha da França, guilhotinada em 1793.

Hoje é o Dia de Finados sem feriadão, para tristeza do Piscinão de Ramos, cujas areias são mais limpas que as do Leblon.

Ruminanças
“O grande escritor não precisa ser muito inteligente nem muito culto. A inteligência e a cultura são contudo indispensáveis nos escritores menores” (Lêdo Ivo, 1924-2012). 

EM DIA COM A PSICANáLISE » Dois autores

Estado de Minas: 02/11/2014 



Duas publicações recentes da Editora Scriptum chamam a atenção pela qualidade. Livros bem finalizados, com belas capas, elaborados com cuidado e competência. São trabalhos bem distintos de autores da cidade.

Compêndios de amor, do poeta Kaio Carmona, autor também de Um lírico dos tempos (Scortessi, 2006). No lançamento recente, Carmona, como bom poeta, arrisca-se a falar de tema a que muitos se dedicaram antes dele, o amor, e ainda assim, na forma de sonetos, manda bem. A sequência é progressiva e o ritmo é fiel ao amor real: “A medida do amor”; “Outras medidas do amor”; “A desmedida do amor”; “O amor além da medida”.

Leitura agradável e cativante, em que seguimos sentimentos dos amantes do início ao fim das suas alegrias e dores, já que o amor, ao contrário de nos acalmar, pode invariavelmente nos arrancar os pés do chão. Já dizia uma amiga: “Amor é coisa de gente grande, com efeitos similares ao de uma droga pesada. Escraviza, subordina”.

Entre ternura, amor, paixão, tesão e abandono, nas mais diversas situações, Carmona nos convida, com sensibilidade, a adentrar na casa do amor. Pela porta dos fundos, persegue ecos de corações e paixões suprimidas, visita quartos de paixões caladas e trancadas, que se remoem, passa à sala dos amores ocultos e proibidos, penetra na despensa de amores cansados, empoeirados pelo tempo. Pela janela, vê, na varanda, paixões violentas se atracando e matando, até encontrar o senhor da casa.

Na introdução de Compêndios do amor, Marcelo Dolabela nos fisga: a) a paquera e preliminares são a eternidade que se quer átimo; b) as possibilidades do sexo e suas variações são ótimas e bem-vindas; c) o instante depois, átimos ótimos evocando o bardo inglês John Donne, são raros sabores que poucos conhecem, são átimos de eternidade.

Medicina  

O outro livro, A janela da escuta – Relato de uma experiência clínica, da psicanalista e médica Cristiane de Freitas Cunha, relata o resultado de duas décadas de trabalho da equipe multidisciplinar de Medicina do Adolescente e do Núcleo de Anorexia e Bulimia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Nas palavras do prefaciador, dr. Roberto de Assis Ferreira, a obra defende uma posição clínica, “um nadar contra a corrente”, na prática da medicina contemporânea. Exercita-se aí o que é essencial na clínica, a particularidade do caso, a singularidade do paciente, num exercício de escuta que permite ir além da prática objetiva da medicina, abrindo espaço para a subjetividade daquele jovem que vem, na maioria das vezes, pelas mãos dos pais preocupados com um sintoma, um sofrimento enigmático que aflige a família e mortifica o sujeito.

O trabalho de Cristiane procura abrir na prática médica uma janela para a escuta psicanalítica, propondo ao médico escapar um pouco do terreno técnico, permitindo que emerja a angústia do paciente, para que, a partir dela, possa se perguntar o que ela quer dizer.

A equipe interdisciplinar tece a rede que abriga o que interessa: o joio. O resto separado do trigo, propondo a migração da clínica do olhar para a clínica da escuta. Ao contrário de perguntar onde dói, a pergunta é: o que incomoda?

Abre-se, assim, espaço para a palavra e para que o adolescente possa dizer do seu mal-estar, desvencilhando-se das nomeações impostas pelo outro, permitindo que haja a invenção de uma língua própria, seu próprio nome.

O livro traz o relato de casos clínicos interessantes, nos quais podemos observar a retificação subjetiva operada nos pacientes, a partir do convite à palavra, de escuta atenta e do espaço aberto para acolher a demanda e dar a ela o tratamento merecido. Muito interessante para psicanalistas e interessados em tratamento de adolescentes com problemas alimentares.

Guerreiros vegetarianos

Análise de restos mortais dos séculos 2 e 3 d.C. mostra que os gladiadores romanos se alimentavam de grãos e buscavam se manter acima do peso, para que a gordura os protegesse nas batalhas


Paloma Oliveto
Estado de Minas: 02/11/2014





É bom esquecer aquela imagem de lutadores atléticos vestidos com pedacinhos de pano que só deixavam à mostra seus músculos bronzeados. Os gladiadores, garantem pesquisadores da Universidade Médica de Viena, eram vegetarianos gordinhos, que se alimentavam de grãos, legumes e verduras. Uma imagem bem diferente dos fortões que, em filmes hollywoodianos, aparecem devorando carne crua antes de entrar na arena.

A constatação dos cientistas veio depois da análise dos restos mortais de 53 pessoas, incluindo 22 guerreiros, que jaziam em um cemitério descoberto em 1993 na Turquia. O sítio arqueológico data dos séculos 2 e 3 d.C. e foi um importante achado, uma vez que é raríssimo encontrar vestígios dos célebres gladiadores.

Esqueletos dos escravos feitos lutadores de arena pelos romanos haviam sido achados, até então, apenas em Pompeia (Itália), Eboracum (Inglaterra), Augusta Treverorum (Alemanha) e Colônia Augusta Aroe Patrensis (Grécia). Ainda assim, o material escavado nesses sítios nunca foi revalidado por pesquisadores e não se tem certeza se, de fato, pertencia aos gladiadores.

Até que, no início da década de 1990, arqueólogos localizaram o cemitério de Éfeso, onde, desde 69 a.C., há registros de lutas de gladiadores, comandadas pelo governador romano Lúcio Licínio Lúculo. “Artefatos, principalmente lamparinas e grafites com ilustrações de lutas, sugerem que esses combates se tornaram cada vez mais importantes ao longo dos anos e atingiram seu máximo entre os séculos 2 e 3 d.C.”, conta Karl Grosschmidt, paleontólogo da Universidade Médica de Viena, que há anos estuda os restos mortais descobertos na Turquia.

TREINO E DIETA O grupo social dos gladiadores consistia principalmente de prisioneiros de guerra, escravos e condenados pela Justiça. De acordo com as leis romanas, havia, ainda, duas classes de lutadores. Os menos afortunados, condenados ad gladium, eram jogados na arena com uma espada, sem receber qualquer treinamento especial. O fim era quase certo: a morte. Já aqueles condenados ad ludum entravam para a escola de gladiadores, onde recebiam treinamento e educação apropriados.

Ao contrário do que se pensa, nem todos desse grupo terminavam massacrados na arena. À medida que lutavam, podiam ser reabilitados socialmente, escapando do trágico desfecho. E, apesar da probabilidade de morrer numa luta ser de um em cada nove no primeiro século depois de Cristo, existiam, ainda, os gladiadores voluntários. Além disso, outras pessoas que não os prisioneiros podiam frequentar as rigorosas escolas de combate. Cidadãos comuns, senadores, nobres e até imperadores tinham direito a receber treinamento nas ludus, as escolas de gladiadores.

Grosschmidt conta que textos romanos de época mencionavam que os guerreiros da arena consumiam uma dieta específica, chamada gladiatoriam saginam, que incluía cevada e feijão-fava. “O consumo de cevada fez com que ganhassem o apelido depreciativo de hordearii, ou comedores de cevada, revela o pesquisador. “Presumindo que os registros históricos sobre hábitos dietéticos dos gladiadores fossem precisos, então acreditamos que seria possível detectar diferenças nos traços de elementos químicos deixados pelos nutrientes em seus ossos e nos esqueletos dos romanos comuns”, afirma. Com essa ideia na cabeça, ele liderou uma equipe de cientistas que analisou isótopos estáveis e compostos inorgânicos detectados no material escavado. “O objetivo do estudo foi reconstruir a dieta dos gladiadores, em comparação à dos habitantes da Éfeso romana da época”, diz.

Traumas O paleontólogo conta que, no cemitério, foi possível reconhecer os lutadores devido às lesões nos esqueletos, típicas desses guerreiros, como decapitações e múltiplos traumas ósseos. Pequenas amostras foram retiradas dos restos mortais dos 53 indivíduos enterrados no cemitério e analisadas pelos cientistas com um espectroscópio, equipamento que detecta níveis atômicos de carbono, nitrogênio e sulfúrio no colágeno presente nos ossos, assim como estrôncio e cálcio.

Comparado às informações bioquímicas dos cidadãos comuns romanos, cujos esqueletos também foram analisados, o resultado mostrou que os guerreiros se alimentavam principalmente de grãos e vegetais. Enquanto os níveis de zinco e estrôncio são balanceados em onívoros, nos vegetarianos eles são muito mais altos, e foi isso que se viu no organismo dos guerreiros.

Além disso, a razão de estrôncio e cálcio sugere uma suplementação desse segundo elemento na dieta: “Nos gladiadores, é uma proporção elevada, sugerindo, talvez, que eles tomavam um suco de plantas contendo pó de osso, algo que é mencionado em textos antigos. Era uma espécie de tônico, que eles ingeriam depois dos treinos”, diz Fabian Kanz, do Departamento de Medicina Forense da Universidade Médica de Viena e também autor do estudo. “As coisas eram similares ao que vemos hoje — tomamos cálcio e magnésio em forma de tabletes efervescentes, por exemplo, depois de um esforço físico”, lembra.

Para Karl Grosschmidt, os gladiadores não deviam gostar nada da dieta, que fazia parte da rotina de preparação dos guerreiros. “Eles tinham de comer muito dessa comida todos os dias para ficar muito gordos e fortes”, afirma. Embora a imagem de um homem com sobrepeso não combine com a de um atleta, o pesquisador esclarece que formar camadas de gordura sob a pele e por cima dos músculos era essencial para tentar se livrar dos golpes de espada nas lutas da arena. “Com certeza, isso os protegeria dos ferimentos dilacerantes e de danos aos nervos e vasos sanguíneos. Era como um escudo natural”, diz.