sábado, 30 de novembro de 2013

A matéria do poder - Jose Castello

O Globo 30/11/2013

Chega-me de Teresina, Piauí, “O
rato da roupa de ouro”, narrativa
infantil de Dilson Lages Monteiro,
com ilustrações de Angela Rego
(Nova Aliança Editora/Portal
Entretextos). Um delicado esforço
para aproximar as crianças de um dos mais
complexos temas do mundo contemporâneo: o
poder. Crianças precisam de limites. A compreensão
da opressão, porém, as ajuda a entender
melhor os limites desses limites e a distinguir
o respeito ao outro do desprezo pelo outro.
Um tema doloroso, que Dilson transforma, porém,
em um relato inspirador.

“A sombra da lua caminhava entre pedras. Galhos
secos espreguiçavam seus braços e pernas”,
começa Dilson, humanizando a natureza e tornando-
a menos angustiante. Os animais que a
habitam vivem sob o jugo de um rato. Ele dá as
regras, ele diz como cada um dos bichos deve
ser. “Vence os dias o mais adaptado, o mais rápido,
o mais atento, o maior em esperteza e sabedoria”,
pensa. E é assim, segundo seus próprios
valores, e sem considerar os alheios, que governa
um casarão abandonado.

Tanto o rato é esperto que, em vez de impor seu
governo com a violência, o impõe com a adulação.
Sua política é a da submissão de almas. Tira seu
poder não tanto da força, que não tem, mas da astúcia,
precioso e perigoso veneno. Mas o rato também
tem seu limite: a cobra, que desliza pelas frestas
do casarão. Diante dela, o rato todo poderoso
treme. A cobra é seu inferno e, mais que isso, a
fronteira que delimita seus atos.

Talvez — penso aqui — a cobra o leve a experimentar
a precariedade do poder. Escritores conhecem
isso muito bem. Com seus rascunhos,
anotações, esboços, eles tentam controlar narrativas
e personagens sobre os quais, a rigor, não têm
controle algum. Todo escritor tem um limite: sua
própria fraqueza. Também o rato, cada vez que se
defronta com a cobra, prova dessa fronteira precária
que ele, no entanto, logo ignora.

O relato de Dilson é narrado por um frágil gafanhoto
que, a toda hora, é obrigado a ouvir do rato
uma ameaça: “Quero ver apodrecer cada pedaço de
sua folhagem, gafanhoto imprestável”. O poder é
cheio de vielas e de becos escuros. Na escuridão de
suas entranhas muita coisa parece ser o que não é.
“Cheguei a pensar que me poupava em sinal de gratidão”,
admite o gafanhoto. “Eu ensinei o rato a pular e isso lhe 
permitiu saltar para um galho quando, de surpresa,
uma serpente deslizava, pronta para o ataque”. Mas 
se existe algo que o rato — o poder — não tem 
é gratidão. Não tem limitespara seu ódio. Também com os
grilos e os caracóis o rato aprendeu a transformar-se em coisa
morta, aprendeu a camuflar-se.Julgava não lhes dever nada por
isso. Mas o poder vê a piedade como uma forma de medo.

Qualquer leitor, por mais jovem que seja, pode
constatar as insuficiências do poder que o rato
acredita possuir. A começar por sua veneração pela
serpente — “Admiro mesmo os mais fortes” —
que, apesar de majestosa, é a fronteira de sua desgraça.
O rato admira ainda as borboletas e os insetos
voadores, porque, do contrário, com o frágil recurso
da leveza, são capazes de escapar de situações
que, para ele, pesado e iludido, se transformam
em intenso perigo.

Um dia, uma tempestade arrasta o rato poderoso
para um buraco, onde ele se vê prestes a sufocar.
A natureza é muito mais forte do que ele, com
sua arrogância, supõe. O gafanhoto se protege da
enxurrada montado no topo de uma árvore bem alta. 
“Do rato,só tive notícias no dia seguinte.
Para minha surpresa, dava ordensem um palácio”. 
A arrogância do poder não tem fim e,mesmo da 
desgraça, um rato pode tirar mais força. No buraco,
seu corpo, em vez da lama,se cobre com um estranho pó
amarelo, que ele logo entende tratar-se de ouro. Mais ainda:
logo entende que se tornou num pequeno Midas, que transforma 
tudo o que toca em ouro também. “O rato, então, percebeu
que um poder misterioso tornava ouro tudo o que tocava”. 
A generosidade do poder parece inesgotável,enquanto, 
na verdade, ela só se impõe sob certas condições. 
Se damos atenção a suas palavras,vemos que esse poder 
gerado pela desgraça se torna ainda mais ameaçador. Mas
 é ele quem ameaça:“Quem não obedecer transformarei em ouro”.

Só resta a sapos, grilos e gafanhotos, abatidos
como escravos, transportar pedaços de ouro para
a toca real. “No buraco já não cabia peça de
ouro”. Mas o rato irá aprender que o poder é transitório,
que a realidade dá bruscas guinadas e,
quando menos se espera, inverte o destino das
coisas. A realidade é fluida, móvel, e mesmo o
mais sólido poder, mais cedo ou mais tarde, pode
ser arrastado pela enxurrada do real. Uma nova
tempestade transforma seu buraco de ouro e pureza
em um mar de lama. “Parece que as águas
de todos os esgotos da cidade andavam juntas,
tamanho a força com que entravam no esconderijo
dos bichos”. A lama é o reverso do ouro. Ela
surge para indicar não só os limites do poder,
mas parte expressiva de sua origem.

O poder é fluido porque ele é sempre uma tomada
de posição diante do poder. O que faço? O que
efetivamente posso fazer? O que faço com o que
efetivamente posso? Perguntas complexas atapetam
o caminho dos poderosos. A única maneira de
tornar-se digno do poder é, em vez de descartá-las,
enfrentá-las. Mas o rato, confuso, levado pela lama
revolta, desmaia. “Acordou faminto, no antigo buraco
em que morava. Olhou ao redor. Ninguém. Ia
sair, mas tremeu. Sentiu a respiração das serpentes”.
O limite do poder é outro poder.

Enquanto isso, o grilo — que sempre apostou
na leveza e nos saltos e se contentou com a precariedade
de sua pequena força —, sarado da
perna, volta a sorrir. Ele compreende que o poder
é leve e transitório. Nunca dele esperou a salvação,
mas apenas uma forma precária de proteção.
Nunca o viu como destino final, mas como
um caminho não para levá-lo para fora de si, mas
para trazê-lo de volta a si. Por isso continua livre.

A história de Dilson Lages Monteiro conduz
seus pequenos leitores a uma confrontação precoce
(e divertida) com a fragilidade dos valores humanos.
Mostra-lhes que eles são móveis, que eles
são instáveis, que eles são transitórios — que eles
são, enfim, o que define o próprio humano

Cruzada contra a prostituição

O Globo 30/11/2013

MORALISMO OU DRAMA SANITÁRIO?

França se divide sobre projeto de lei do governo que penaliza clientes em até R$ 11.900

FERNANDO EICHENBERG
Correspondente
eichenberg@oglobo.com.br



-PARIS- O governo esperava aprovar com relativa tranquilidade
o novo projeto de lei sobre a prostituição
na França, mas foi surpreendido por um acalorado
debate, com divisões parlamentares — mesmo no
seio de sua maioria, liderada pelo Partido Socialista
(PS) — marcadas por oposições entre associações
civis, intelectuais e a falta de unanimidade na opinião
pública. A nova legislação, com votação prevista
na Assembleia Nacional para o dia 4, prevê a penalização
dos clientes de prostitutas com a aplicação
de uma multa de € 1.500 (R$ 4.760), aumentada para
€ 3.750 (R$ 11.900) em caso de reincidência. Segundo
sondagem do instituto CSA esta semana,
68% dos franceses seriam contra a penalização dos
clientes de prostitutas.
A proposição foi discutida ontem num Parlamento
com poucos deputados presentes, ao mesmo
tempo em que nas proximidades ocorriam manifestações
de rua contra e a favor da lei. No plenário,
a ministra do Direito das Mulheres, Najat Vallaud-
Belkacem, definiu a prostituição hoje na França como
um “drama sanitário”, defendeu a lei como um
passo importante no combate ao proxenetismo e
ao tráfico de prostitutas, e refutou que esteja havendo
uma intervenção moral do Estado na vida sexual
dos cidadãos.
— Por que pagar pelo corpo de uma mulher? Pela
razão de que elas consentiriam isso? Esse é o argumento
mais fácil e mais preguiçoso, o mais inoperante
para justificar a compra de serviços sexuais. A
questão não é a sexualidade, não estamos aqui para
fazer a polícia da moral, mas para defender nossos
princípios mais essenciais — disse a ministra.

26 PARLAMENTARES NO BLOCO DO ‘NÃO’

Levado ao Parlamento por deputados do PS e da
União por um Movimento Popular (UMP), principal
partido de oposição, o projeto de lei não agradou
a todos. Um grupo de 26 parlamentares, de diferentes
tendências políticas, incluindo senadores,
lançou uma petição na qual acusa a proposta de
“inspiração moralizadora, marcada por uma preocupação
de higienismo social”, sem levar em conta
a “complexidade” do tema. “Que mulheres e homens
recorram à prostituição não forçada é uma
realidade. Estigmatizá-los não resolve nada. É hora,
para a sociedade e a fortiori para o legislador, de
romper com esses preconceitos que humilham essas
mulheres e homens e que não honram aquelas
e aqueles que os utilizam por razões puramente
ideológicas”, diz o texto.
Para Morgane Merteuil, dirigente do Sindicato do
Trabalho Sexual (Strass), que defende os direitos
das “trabalhadoras do sexo”, a penalização do cliente
favorecerá a precarização das prostitutas e também
os riscos de casos de violência. “Tornar o exercício
da prostituição mais difícil é sempre torná-lo
mais perigoso, mais violento; e aquelas que pagam
o preço são as menos privilegiadas, aquelas que,
entretanto, se pretende mais ajudar. Quanto mais
difícil para eu entrar em contato com clientes, mais
minhas exigências em relação a eles diminuem.
Aumento com isso minha probabilidade de ser exposta
a um certo número de riscos, principalmente
a violências”, escreveu.
O Strass exige a revogação de todas as leis que
atrapalham a prática da prostituição. Contra o projeto
de lei estão também a organização Médicos do
Mundo, o ex-ministro socialista da Cultura Jack
Lang, a atriz Catherine Deneuve e a filósofa feminista
Elisabeth Badinter, que considerou a abolição
da prostituição “uma quimera”. A favor estão a associação
feminista Osez le Feminisme, grupos de auxílio
a prostitutas como Mouvement du Nid, o geneticista
Axel Kahn, a ex-ministra conservadora Roselyne
Bachelot e a pensadora Sylviane Agacinski,
para quem a prostituição é “uma servidão arcaica”
e “o comércio da carne, uma negação da pessoa”.



AJUDA A QUEM QUISER MUDAR DE VIDA

Relatora do projeto, a deputada Maud Olivier
(PS) acusou de “hipocrisia” os opositores da lei:
— Basta que apenas uma prostituta se diga livre
para que a escravidão das demais seja respeitável
ou aceitável? Como achar glamour nas dez à quinze
penetrações diárias a que são submetidas prostitutas
forçadas por razões evidentemente econômicas,
com consequências dramáticas para a saúde?
O Escritório Central para a Repressão do Tráfico
de Seres Humanos estima em até 40 mil as prostitutas
na França (já o Strass fala em até 400 mil), a maioria
vítima de redes de tráfico e de proxenetismo de
países do Leste Europeu (Bulgária, Romênia), da
África (Nigéria, Camarões), da América do Sul (Brasil
incluído) e da China. O projeto de lei prevê também
a implantação de sistemas de proteção e de assistência,
com acompanhamento social e regularização
temporária de documentos para prostitutas
estrangeiras envolvidas pelo tráfico e proxenetismo
que quiserem mudar de vida.
A Frente de Esquerda anunciou apoio à nova lei,
diferentemente de certos deputados da direita, descontentes
com a facilitação da regularização de
prostitutas ilegais no país. O grupo dos ecologistas
avisou que votará contra, argumentando que o projeto
de lei não faz distinção entre as prostitutas vítimas
das redes de tráfico e as independentes.





Com políticas distintas, vizinhos fazem da iniciativa francesa um ‘laboratório

Mesmo países que descriminalizaram
a atividade, como a Holanda, ainda

enfrentam redes de tráfico

-PARIS- Os relatores do projeto de lei francês sobre a
prostituição se inspiraram em grande parte no
exemplo da Suécia, que desde 1999 proíbe a “compra
de serviços sexuais”. A prostituição no país escandinavo
não é ilegal, mas os clientes de prostitutas
estão sujeitos a multas e mesmo a uma pena de
até seis meses de prisão. O valor da penalidade é
calculado em relação à renda do cidadão condenado,
geralmente correspondente a meio salário
mensal. Segundo dados do governo, a prostituição
de rua foi reduzida à metade na década posterior à
aprovação da lei — de 2.500 a 1.250 prostitutas —
mas aumentou fortemente na internet.
A vizinha Noruega aprovou uma legislação similar
em 2009, mas que pune também os noruegueses
que recorrerem a prostitutas no exterior.
Em julho de 2012, no entanto, um relatório
do Pro Sentet, um centro de ajuda às prostitutas
da capital, Oslo, apontou que a situação havia
piorado, com o deslocamento do comércio sexual
para a clandestinidade e um aumento de
casos de clientes violentos.
Na Holanda, dotada de uma legislação considerada
uma das mais liberais da Europa, a prostituição
é legal e autorizada. Desde o ano 2000,
as prostitutas têm status jurídico e direito a benefícios
públicos sociais. As prefeituras são responsáveis
pela concessão de licença para abertura
de estabelecimentos que empregam prostitutas.
Apesar disso, o país ainda enfrenta o problema
da prostituição ilegal e das redes de tráfico.
Já na Espanha, desde 2002 a prostituição é

legal em prostíbulos, mas proibida nas ruas.

LEI NA ALEMANHA ATRAIU IMIGRANTES
No caso da Alemanha, a prostituição é legal desde
2002. As prostitutas têm direito a seguro-desemprego
e seguro-saúde, podendo ser autônomas ou assalariadas.
Mas segundo estudos, passada uma década,
apenas 1% das prostitutas tem um contrato
de trabalho. Dos cerca de 400 mil trabalhadores sexuais
alemães estimados, somente 44 (sendo quatro
homens) se registraram para obter os benefícios
da Previdência Social. Em seu livro recém-lançado
“Prostituição, um escândalo alemão”, a feminista
Alice Schwarzer sustenta que a legalização da venda
de serviços sexuais atraiu para o país “as mulheres
mais pobres dos países vizinhos” (as autoridades
estimam que em torno de 80% das prostitutas
são estrangeiras), colocando-as à mercê da exploração
e das redes clandestinas.
Para a ativista, a Alemanha se tornou “uma paraíso
para os cafetões”. Nos últimos anos, bordéis gigantescos
surgiram, contando, segundo as estimativas,
com 1,2 milhões de clientes diários. Em
“Chamada contra a prostituição”, publicado em
sua revista “Emma”, Alice Schwarzer fez um apelo
para que a lei alemã de 2002 seja revista, e como
exemplo, citou a iniciativa francesa. Se a França
aprovar a nova legislação na semana que vem, os
vizinhos europeus estarão atentos aos resultados
obtidos pelo país nos próximos anos. (F.E.)

Delicatessen musical romana - Luiz Mott

A Tarde - 30/11/2013

Luiz Mott
Professor titular de Antropologia da Ufba
luizmott@oi.com.br

Aprendi a gostar de música clássica nos
oito anos de seminário dominicano, e
com o passar dos anos, gosto cada vez
mais de Bach, Vivaldi, Mozart, Sattie. Raramente
perco concertos em Salvador e quando
na Europa, aí então, “lavo a égua”.
Em Roma posso me dar ao luxo de escolher
quase toda tarde e noite dois ou três concertos
grátis em maravilhosas igrejas, palácios e salas
musicais. Os mais frequentes são concertos de
órgãos barrocos, perfeitamente restaurados,
muitas vezes comtelão para se ver o frenesi das
mãos e pés de virtuoses intérpretes. Um dos
organistas era cego!

Ouvi certa vez um concerto de órgão a quatro
mãos, raridade. Assim como também nunca
havia visto no Brasil um sexteto de flautas, as
mais graves fazendo o papel de baixo contínuo
à moda de violoncelo. Em maio passado, na
deslumbrante Biblioteca Casanatense, fui a um
concerto de Mozart para dois cravos, detalhe
preciosista: a partitura era original da época!
Alguns dias após, outro concerto inédito entre
nós: “Fisarmônica”. Confesso que não conhecia
esse nome sofisticado para sanfona e acordeão.
Pois é: incrível o efeito sonoro deste instrumento
popular executando música clássica,
igualzinho a órgão!

Não menos celestial foi um concerto de
“charanga” a cargo de um jovem argentino:
instrumento típico dos Andes, tipo bandolim,
feito com a carapaça do tatu ou
armadillo. Uma delicatessen ouvir Piazzola
e Pixinguinha adaptados para o charango.
E não foi a única vez que a música brasileira
esteve presente nestes concertos: além do
Carinhoso, na barroca biblioteca jesuítica
do Colégio Romano, artistas da equipe do
célebre Morricone, que musicou La Dolce
Vita e outras obras primas de Fellini, executaram
Bahia, de Caymmi, com trinados
de uma soprano que provocou na plateia
“multipli orgasmi!”

Miguel Angelo esculpiu o inimitável Davi
na mesma década em que o Brasil foi descoberto.
Milênios de civilização clássica nos
separam do velho/belo mundo! Corramos
“alla ricerca del tempo perduto”!

General dá lugar a nome de guerrilheiro

ATarde - 30/11/20123

EDUCAÇÃO Comunidade quer batizar de Carlos Marighella o colégio que faz homenagem a Emilio Garrastazu Médici

CLEIDIANA RAMOS

Uma eleição escolar pode decretar uma ironia histórica: o nomedo ativista político Carlos Marighella (1911-1969) passaria a denominar uma escola em substituição ao do general-presidente Emilio Garrastazu Médici (1905-1985). Hoje, começa a votação no colégio, que fica no bairro do Stiep. Após avotação, a direçãoda instituição de ensino vai pedir a substituição do nome à Secretaria Estadual de Educação (SEC).

Vítima da repressão
A ironia é porque Marighella, líder da luta armada po meio da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi morto na repressão aos opositores da ditadura militar exatamente quando Médici era o presidente do Brasil.
“Mudar o nome da escola é um anseio antigo, principalmente dos professores da área de Ciências Humanas, como Filosofia e História. Este ano, resolvemos levar o projeto de mudança de nome à frente”, explica Aldair Dantas, diretora do Colégio Estadual Presidente Emílio Garrastazu Médici.
O colégio fundado em 1972 tem cerca de mil alunos e oferece cursos do ensino fundamental,
a partir da 6ª série, ensino médio e formação profissionalizante. Na eleição, o baiano Carlos Marighella concorre com o conterrâneo Milton Santos (1926-2001), conhecido por revolucionar a abordagem da geografia. Santos teve que deixar o país por conta da repressão política a partir da ditadura militar.

Informação
Em pesquisas internas já é possível perceber uma confortável vantagem para Marighella. Hoje, os pais serão convidados a votar e, a partir de segunda-feira, alunos e professores fazem sua escolha. Os votos serão registrados, de forma aberta, em um livro.
“Queremos garantir um projeto completamente transparente e democrático”, diz a diretora Aldair Dantas. Embora a comunidade escolar lidere o movimento para mudar o nome da escola, a palavra final é da SEC.

Palestras
Além de material produzido pelos alunos, como vídeos e exposição, a escola programouduas palestras para hoje. Como tema das apresentações, estão os perfis de Marighella e Milton Santos.
Por meio da sua assessoria de comunicação , a SEC explicou que a iniciativa partiu da comunidade do colégio. Se a ideia partiu da escola, pelo menos o debate sobre o golpe militar e seus desdobramentos está sendo estimulado pela SEC por meio do projeto Ditadura Militar - Direito à Memória – 50 anos do golpe de 64, lançadoemjulho deste ano.
A reportagem procurou o Ministério da Defesa, por meio da assessoria de comunicação, para saber se há algum tipo de preservação da memória dos generais que presidiram o país durante o regime militar. Até o fechamento desta edição não houve retorno.

Elogio
Autor do livro Marighella: o inimigo número um da ditadura militar, o jornalista e escritor Emiliano José, elogia a iniciativa.
“O ideal é que a escola ficasse com o nome tanto de Marighella como de Milton Santos. Como não é possível, eles já merecem parabéns pela beleza de iniciativa”, diz. SegundoEmiliano,o governo de Médici foi o de maior terror. “Parte do processo civilizatório do Brasil é tirar o nomede ditadores de prédios públicos. Eu considero Médici um assassino, pois em seu governo houve um pico de assassinatos e torturas”.

Alerta
Antropólogo e ex-preso político, Roberto Albergaria elogia a iniciativa, mas alerta para o que considera risco de invisibilizar a participação de civis no sistema ditatorial. “Não se pode concentrar todo o mal na figura dos militares, pois grandes medalhões da política e da intelectualidade baiana compactuaram com eles
para manter seus privilégios ou se omitiram”, assinala. Albergaria foi militante do Partido Comunista Revolucionário (PCBR). Em 1974 foi preso. Estudante universitário na época, passou seis meses preso e seis anos respondendo a processo.
“Nesse período, não consegui emprego e nem mesmo a carteira de habilitação. Era um terrorista e comunista, o equivalente a um pária na época”, conta. Em 1980, foi para a França, onde fez sua pós-graduação na Universidade de Paris IV, a famosa Sorbonne.
“O poder estava na mão dos militares, mas ganhou o apoio da classe média e a indiferença do povão, como acontece em vários contextos ditatoriais. É difícil encarar, mas o nazismo aconteceu também porque parte expressiva da sociedade alemã foi conivente”, aponta.
Para o antropólogo, o silêncio sobre parte da memória deste período tão conturbado da história brasileira é resultado da omissão do estado brasileiro, mesmo após o retorno da democracia.
“Na Bahia, quase nada foi feito para a abertura dos documentos desse período. A Comissão da Verdade chegou após a perda de vários documentos”, avalia.






Fernando Rocha, o jogral de Glauber - JC Teixeira Gomes

A Tarde/BA - 30/11/2013

JC Teixeira Gomes
Jornalista, membro da Academia de Letras da
Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

Fernando Rocha
foi sobretudo o
jornalista. Talvez
tenha sido o último
“pé de boi” da
imprensa baiana:
era o primeiro a
entrar na redação
e o último a sair

O pior momento na vida de um jornalista, certamente o mais traumático, é aquele em que ele se transforma no inventariante das perdas da sua geração, ou seja, passa a escrever o obituário dos colegas mortos. Há meses comentei aqui a morte de uma querida amiga, a jornalista Regina Ribas, ocorrida no Rio. Volto hoje a fazê-lo para registrar o falecimento do jornalista Fernando Rocha, que comigo se iniciou na profissão em 1958, no Jornal da Bahia, mas que cumpriu praticamente toda a sua trajetória em A TARDE, onde exerceu várias funções de destaque, como homem de confiança de Jorge Calmon e Cruz Rios, aos quais era muito ligado.

Foi um homem múltiplo. Tendo-se destacado na imprensa, lecionou durante anos no curso de jornalismo da Ufba, onde também desenvolveu uma experiência administrativa no reitorado de Miguel Calmon, na direção da superintendência de pessoal. Em seguida, chefiou a assessoria de comunicação nos reitorados de Augusto Mascarenhas e de Macedo Costa, cargo em que permaneceu durante um período da gestão de Germano Tabacof. Simultaneamente, passou a ensinar na antiga Escola de Biblioteconomia e Documentação da Ufba, depois Facom, onde ocupou a chefia do departamento de jornalismo. Até hoje, os alunos de Fernando Rocha evocam a figura do mestre competente, de voz altissonante, ressoando também nas aulas de cursos pré-vestibulares. Foi ainda diretor da ABI.

Amante da música popular, participou em Salvador do programa nacional de calouros de uma rede de TV, na condição de jurado. Mas o que mais o alegrava foi ter sido recitador dos espetáculos de poesia realizados por Glauber Rocha, FernandoPeres, Calazans Neto e Paulo Gil no Central, conhecidos como “As Jogralescas”, quando encenou, com grande sucesso, um poema de Garcia Lorca. Ele costumava dizer: “Eu fui jogral de Glauber!” Era seu título de glória.


No conjunto dessas atividades, porém, Fernando Rocha foi sobretudo o jornalista. Talvez tenha sido o último “pé de boi” da imprensa baiana, quer dizer, aquele profissional que era o primeiro a entrar na redação do jornal e o último a sair, designação consagrada na imprensa brasileira pela fidelidade do chefe de reportagem de O Globo, Alves Pinheiro, que nunca abandonava o posto. Se juntos iniciamos nossas atividades no Jornal da Bahia, numa turma de “focas” liderada por Glauber e integrada por Florisvaldo Mattos, Paulo Gil e Calazans, logo ele deixaria o novo matutino para ingressar em A TARDE, na qual permaneceu até o fim da sua trajetória, dos anos 60 aos 80. A este jornal, que Renato Simões, em seu último artigo, qualificou com propriedade de “edifício da palavra”, dedicou o melhor do seu talento de organizador, tendo participado entusiasticamente da renovação gráfica do jornal, como subsecretário da redação.

Foi durante sua longa permanência em A TARDE que Fernando Rocha desenvolveu intensa vocação para a boemia nas noites baianas, chegando a fazer sombra ao maior dos boêmios da década de 60 em Salvador, o jornalista e poeta Jeová de Carvalho. Situada no coração da cidade, conhecida como “o vespertino da praça Castro Alves”, A TARDE ficava próxima dos principais centros da boemia dos anos 60 e 70, a casa Rumba Dancing, o TabarisNight Clube, o “rendez-vous” Meia Três, na ladeira da Montanha, e o bar Cacique, ao lado do cinema Guarany, hoje Glauber Rocha. Ora, como A TARDE já circulava como matutino e Fernando Rocha trabalhava até altas horas da noite, do jornal para a boemia era só um pulo. Mas, enfim, era uma boemia íntegra e lírica, sem drogas ou perversões, que nunca impediu que Fernando Rocha fosse um amoroso chefe de família, ao lado da mulher Maria Helena, insuperável no devotamento ao esposo diabético, da filha Bete e da netinha Renata, muito amadas, bemcomo do genro Tony, realmente um núcleo familiar sem igual, no contexto das relações difíceis e fragmentárias dos dias que correm. Enfim, trabalhando em jornais diferentes e rivais, construímos uma amizade que o tempo, que tudo desbarata, apenas conseguiu consolidar. A morte jamais vencerá no tempo a muralha das lembranças sólidas

João Paulo - Que educação queremos?‏

Que educação queremos? - João Paulo

Estado de Minas: 30/11/2013



A professora Joana D'Arc Camargo e seus alunos da Escola Municipal Hugo Werneck: quando os meninos de Portinari e do Morro das Pedras se encontram     (Jair Amaral/EM/D.A Press)
A professora Joana D'Arc Camargo e seus alunos da Escola Municipal Hugo Werneck: quando os meninos de Portinari e do Morro das Pedras se encontram


Na quarta-feira, a manchete deste jornal gritava: “Colégios mineiros no topo do Enem”. Tudo indicava, inclusive a foto festiva que enfeitava o alto da capa, que se tratava de uma boa notícia. Bastou ler a reportagem, sobretudo os depoimentos de diretores de escolas que não mantiveram lugares de destaque registrados no ano passado, para ver que estamos atravessando um absurdo deserto de valores. Na verdade, a educação foi a grande perdedora nesse evento lamentável, já que a relação fornecida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao Ministério da Educação (MEC), nada mais significou que instrumento de marketing para as escolas bem posicionadas na relação, ou alimento de reclamação e choro para as que foram preteridas ou perderam posição no ranking.

A situação não é nova. Há muito a educação no Brasil se tornou um negócio. Até aí, nada de mais, é o solo em que nos firmamos numa sociedade de mercado. No entanto, mesmo na mais estrita ética de qualquer negócio, o mais importante é a qualidade de seu produto. No caso das escolas, na intangível materialidade da educação, o “produto” pode ser traduzido de muitas formas: civilidade, consciência crítica, conhecimento, capacidade de ação social, solidariedade, humanismo. Ou seja, essas são as habilidades e valores que desejamos ver em nossos filhos ao fim do processo educacional.

No entanto, a lista do Inep e sua exploração pelas escolas particulares mostra que o cenário é outro. Tanto a direção das instituições de ensino como os professores e alunos se sentem participantes de uma grande gincana, cujo prêmio é a distinção, a diferenciação, o destaque. Estar à frente de outros é mais importante que estar ao lado de todos. Se um colégio, ou para usar nome mais antigo e expressivo, um educandário, vale o nome que tem, deveria buscar a solidariedade, não a competição. Esse clima de disputa, no entanto, não prejudica apenas o aspecto moral, mas também o pedagógico.

Como dizia Freud, a educação é uma tarefa impossível, seja pela perenidade do processo (por isso medir seria sempre um equívoco e comparar um erro ainda mais grave), seja pela singela realidade de que ninguém ensina ninguém: as pessoas aprendem no contato social, sempre em mão dupla. E é bom lembrar o criador da psicanálise, já que o comportamento dos diretores de escolas que perderam posições no pódio armado pelo Inep demonstra um inequívoco traço persecutório. Eles garantem que vão entrar com recurso junto ao MEC para rever a relação. Se sentiram traídos pelos deuses aos quais fizeram suas libações.

As declarações dos diretores e supervisores estampadas na reportagem de quarta-feira, neste sentido, não precisam de comentários em sua explícita entrega da frustração em que se encontram por não mais ocupar lugares de destaque. Eles lamentam não poder comemorar os resultados e, o que é mais grave, o fato de não poder dar aos alunos o atestado do sucesso do processo pedagógico, como se a chancela do Inep fosse mais importante que outros indicadores qualitativos, aos quais deveriam estar atentos. Como a cidadania e o saber, por exemplo.

Tudo parece indicar que a pontuação tem um peso forte na valorização dos colégios no mercado da educação privada. Estar em boa posição é argumento para cobrar mais caro. Nisso, a divulgação dos resultados do Enem por escolas se mostra equivocado. Ora, ou o resultado serve para identificação de problemas, e com isso deveria contribuir para direcionar ações de apoio e investimento aos estabelecimentos, ou é apenas instrumento de propaganda para majorar preços, que parece ser o caso. E, o que é mais grave, há um efeito Pigmalião às avessas: quanto pior o índice, mais isolada ficará a escola. O parâmetro comparativo de realidades distintas incentiva o preconceito. O que incide ainda mais na escola pública em seu descaso com carreira dos professores, traduzido em salários indignos e abaixo do patamar previsto em lei. Sem que faltem sequer as chicanas que transformam salários em subsídios para burlar a regra constitucional.

Sem amor

Mas há três outros problemas graves nessa história. O primeiro é a tendência das escolas em criar uma atmosfera interna de cobrança e competitividade, que em nada atende a propósitos pedagógicos e éticos, mas apenas à conquista de degraus mais altos no pódio. Assim, os alunos que estão lá para aprender, e que eventualmente tenham problemas de aprendizagem, são convidados a se retirar do recinto com a pecha de fracassados. Em nome da disputa, vão sendo afastados os sujeitos do processo educacional exatamente pelo fato de precisarem de educação. A melhor escola não é de melhores alunos, mas a que trata melhor diferentes tipos de alunos, sobretudo os com maior dificuldade em aprender.

O outro desvio grave está ligado muitas vezes à própria ideologia religiosa de algumas escolas da capital, como o Santo Antônio e o Loyola, que reclamaram da exclusão da lista dos “top ten”. Em vez de reafirmarem seus propósitos educativos, evidenciam sua filiação ao ethos da competitividade com a decisão de questionar o Inep. Colégios fundados por congregações de jesuítas (como o papa Francisco) e franciscana (com sua humildade de origem) não ficam bem na missa rezada em nome da disputa e da exclusão da diferença de ritmos e estilos de inteligência. Prestam um desserviço à educação, à religião e à ética e ainda desestimulam seus alunos na senda nobre da solidariedade.

A teologia católica é fundada em diversos valores, mas a base é caridade. Uma distorção histórica fez da caridade em nosso país uma espécie de desvio compensador das más intenções. Os caridosos tratam sempre do resto, dividem o que têm de bom e doam o que não presta, acham que os pobres só precisam de comida e que tudo mais é luxo. Essa postura chauvinista, felizmente abandonada por teologias mais humanistas, que recuperaram o sentido de amor presente na palavra caritas, está na base da ligação do Estado brasileiro com a Igreja católica, em conúbio que gerou uma série de vantagens para as escolas ditas religiosas, da doação de terrenos à isenção de impostos por décadas. Quando os educandários religiosos passam a ser guiados por intentos capitalistas de forma tão desabrida, talvez tenha chegado a hora de cobrar a conta. Quem sabe na forma de cota de bolsas para estudantes sem condições de pagar mensalidades. Não como “caridade”, mas como direito legítimo de usufruir da riqueza gerada socialmente pelo trabalho de várias gerações.

Por fim, a opção entre a consciência crítica e o adestramento diz muito dos valores do nosso tempo. Uma educação voltada para aprovação em concursos e para a seleção de profissões por classes sociais (que podem pagar colégios mais eficientes) é reprodutora, no sentido indicado por Bourdieu e Passeron: não serve para ler e criticar o mundo, mas para reconstituir a cada geração os mesmos privilégios das anteriores. Uma educação voltada para o mercado é puro treinamento, alienante e alienador, focalizado em avaliações produtivistas. Não ensinam a questionar o mundo, mas a como se dar bem nele. Trata-se do cumprimento de uma agenda vinculada à produção e que vê no homem e na mulher apenas a força de trabalho. Não é um acaso que se fale tanto em educação profissionalizante para os pobres (a classe média não quer seus filhos nesses bancos escolares desprestigiados) e se critique tanto o acesso dos pobres ao ensino superior (como se eles conspurcassem a diferenciação de classes e, muitas vezes, de raça, teimando em combater políticas de cotas e outros instrumentos de inclusão).

Outro lado

Se o clima de competição conspícua e anti-humanista absorve os colégios ditos de ponta, os bons exemplos não param de vir da ação dos professores realmente comprometidos com a educação. Que são seguramente a maioria. O chororô das escolas da Zona Sul católica de BH não impediu, na mesma semana da divulgação da lista do Enem, que dois exemplos também ganhassem divulgação fora do difícil dia a dia do ensino público. Na Escola Municipal Gracy Vianna Lage, localizada na Rua 63, 23, no Bairro Jardim dos Comerciários, em Venda Nova, os alunos e professores se uniram para produzir um vídeo sobre o preconceito racial que mostra o verdadeiro sentido da palavra educação.

Desde que o ensino sobre história e cultura afro-brasileiras passou a ser obrigatório, tem sido um esforço da comunidade escolar encontrar formas de debater o conteúdo que permeia a vida social, mas que ainda não ganhou tradução em instrumentos pedagógicos. Com atuação de meninas de 8 e 9 anos, a E. M. Gracy Vianna Lage realizou o curta-metragem Bom pra quê?, uma brincadeira sobre a diferença dos cabelos das crianças, que vai participar de mostra em Brasília, em 2 de dezembro. Mais que ensinar sobre relações étnico-raciais, trata-se de uma atitude construtiva, integradora e geradora de solidariedade social. Além de desmanchar, com as armas da inteligência e sinceridade, toda a burrice que há por trás da discriminação.

Outro bom exemplo foi dado pela professora Joana D’Arc Camargo, que, com seu empenho pessoal, levou toda a turma de jovens de sua escola do Morro das Pedras para conhecer de perto os painéis Guerra e Paz, de Portinari, que estiveram expostos no antigo Cine Brasil, no Centro de BH. Para levar adiante seu projeto, ela foi nada menos que 23 vezes à mostra, levando as crianças em seu carro e arcando com toda a despesa do passeio. Com sua sensibilidade e conhecimento de história da arte, ela sabia que as crianças se identificariam com os personagens infantis criados pelo artista brasileiro. João Portinari, filho do pintor, ficou emocionado com a história.

A alegria dos jovens de Belo Horizonte pode ter origem numa competição que exclui ou numa sensibilidade que agrega. Podemos ser alegres pela distinção ou pelo pertencimento. Quando você ouvir alguém defendendo o investimento em educação, talvez seja um bom momento de perguntar: que mundo queremos construir? A escola que temos não é apenas uma antevisão do que seremos, mas um alerta para o que podemos estar nos tornando.

jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

Desafios da história - João Paulo

Desafios da história
 
Filósofo húngaro István Mészáros lança no Brasil estudo sobre a obra de Lukács e analisa a crise estrutural do capitalismo contemporâneo. Para ele, não há alternativa viável fora do socialismo



João Paulo

Estado de Minas: 30/11/2013


Autor de obras clássicas como Além do capital, Mészáros é também militante de causas sociais e políticas e defensor de uma educação humanista (Túlio Santos/EM/D.A Press)
Autor de obras clássicas como Além do capital, Mészáros é também militante de causas sociais e políticas e defensor de uma educação humanista

O mundo vive uma crise. O que não é novidade para ninguém. Se o diagnóstico é consensual, a forma de compreendê-lo e, sobretudo, de atacar suas causas e propor alternativas, continua dividindo as pessoas. No coração do debate que atravessa o planeta, uma das vozes mais importantes é a do filósofo húngaro István Mészáros. Considerado um dos mais destacados intelectuais marxistas contemporâneos (a própria filiação já é problemática para boa parte da humanidade), Mészáros é autor de obras fundamentais para a compreensão da sociedade, da política e da economia contemporâneas, como Para além do capital – rumo a uma teoria da transição, Estrutura social e formas de consciência e O poder da ideologia, entre outros.

Homem de pensamento, Mészáros é também intelectual engajado desde a juventude e, recentemente, se mostrou próximo de movimentos populares, como o Fórum Social Mundial, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil e mesmo do governo de Hugo Chávez, na Venezuela. Atentos, seus críticos – e mesmo certos admiradores – se apressaram em tentar dividir o pensador em dois: um deles autor de obra que é patrimônio incontornável da filosofia contemporânea (mesmo para discordar dela); e outro ligado às demandas da participação política ideológica, com os riscos habituais das polarizações. Mészáros, como não podia deixar de ser, nunca se negou a responder a essas críticas, deixando claro que o que o impele à política é exatamente a produção teórica.

A trajetória do filósofo ajuda a entender esse vínculo entre interpretação e busca de transformação do mundo. Nascido em Budapeste, em 1930, trabalhou como operário numa fábrica de aviões, depois de vários empregos. Frequentou a universidade com bolsa concedida pelo governo por ter se formado com notas distintas. Em 1950, publicou ensaio em que se batia contra a censura de obra teatral de Mihaly Vorosmarty. O texto chamou a atenção do filósofo Gyorgy Lukács, que convidou o jovem para ser seu assistente no Instituto de Estética da Universidade de Budapeste. A ligação com Lukács se estenderia por toda a vida, até a morte do filósofo autor de História e consciência de classe, em 1971.

Com o levante de outubro de 1956, Mészáros deixa a Hungria, dirigindo-se à Itália, onde se casa com Donatella, companheira de toda a vida. Em seguida, assume postos em universidades na Grã-Bretanha, México, Canadá e Estados Unidos. Em 1966, se fixa na Inglaterra, ligando-se à Universidade de Sussex, onde se aposentou em 1995. Em todos os momentos, ao lado de pesquisas filosóficas sobre temas como alienação, dialética, educação, ecologia e trabalho, manteve postura crítica em relação ao capitalismo contemporâneo e destacada militância política em vários contextos e cenários de disputas.

A reflexão de Mészáros está inserida em seu tempo e realidade histórica. Tem ainda a marca forte da herança marxista. No entanto, como todo teórico criativo, ele foi capaz de avançar para aspectos ainda intocados ou que se tornaram realidade em razão da dinâmica da história. Inserem-se aí suas críticas ao sistema educacional capitalista (e a necessidade de se criar uma educação além do capital), ao novo modelo de imperialismo dos estados centrais e à emergência do desemprego crônico, consequência necessária da crise estrutural do capital que o mundo atravessa.

Metabolismo Entre as reflexões seminais do pensador acerca do estágio atual das forças produtivas está a retomada do que Marx chamava de metabolismo social. É preciso ir além do autor de O capital não porque a situação hoje esteja melhor, mas pelo fato de enfrentar problemas que ele nem sequer imaginava. E é no bojo da investigação sobre a desigualdade contemporânea que surge para Mészáros a necessidade política e ética do engajamento político. Para o filósofo, não basta a crítica, é fundamental o momento da práxis. Uma lição fundamental para a esquerda.

A noção de metabolismo, herança da biologia e da química, trata dos processos envolvidos na relação entre os organismos e meio ambiente. Marx vai combinar o conceito com a crítica à economia política, para demonstrar que há uma falha metabólica na produção agrícola industrializada de seu tempo. Para recuperar o metabolismo seria necessária a superação da alienação envolvida no processo de acumulação, com reformas no interior do sistema, em direção a uma produção que atendesse as necessidade sociais, inclusive da dignidade do trabalho. Isso já no século 19. No contexto do capitalismo financeirizado contemporâneo, a falha metabólica e a reprodução sociometabólica ganham dimensão quase absoluta.

Entre os aspectos que serão destacados por Mészáros nesse contexto estão a dimensão do custo ecológico, a destruição do emprego, o crescimento desordenado, a injustiça social, o reforço da lógica imperialista em termos de comércio internacional. A reprodução sociometabólica do capital enfrenta limites claros e está minando as condições de existência não apenas de uma classe, mas de toda a humanidade. Não se trata mais de um jogo de vencedores e derrotados, mas de um cenário onde todos estão perdendo a cada dia. Basta examinar os danos ao meio ambiente, a ausência de empregos para os jovens, a tendência à retirada de benefícios sociais, a proteção do sistema financeiro acima de todos os crimes, os impactos sobre o clima, os impasses da mobilidade em razão do consumo e da especulação imobiliária que torna as cidades bunkers sob vigilância armada, entre dezenas de outros sintomas de esgotamento. O capitalismo atual não tem como se reproduzir nas bases em que se estabeleceu.

A saída, de acordo com as reflexões e atitudes de Mészáros, apontam para uma mudança qualitativa. O problema não é de produtividade, mas de ausência de igualdade substantiva. Mais que uma questão técnica, a sustentabilidade, palavra tão em moda e que se arrisca a ser incorporada à própria lógica do capital, precisa ser tomada em sua dimensão política e popular. O capital, de acordo com o pensador húngaro, não é capaz de resolver suas contradições intestinas nem os problemas que emergem de sua crise atual, como o desemprego e a destruição ecológica. Mészáros propõe, na teoria e na prática, uma transição voltada para a lógica fundamentada no trabalho. Que pode ser o outro nome do socialismo possível. Caso contrário, parece nos alertar Mészáros, só restará esperar a barbárie.


PENSAR/ENTREVISTA/ISTVáN MéSZáROS » "É preciso acordar"

Pensador húngaro, um dos mais importantes críticos do capitalismo, defende mudanças estruturais


Mariana Peixoto

 (Túlio Santos/EM/D.A Press  )


István Mészáros, de 83 anos, é um nome conhecido entre os estudiosos de filosofia no Brasil. Várias de suas obras já foram traduzidas e lançadas no país. Além disso, ele tem vindo habitualmente ao Brasil desde 1983 e suas reflexões têm ajudado a orientar o debate político na esquerda nacional e da América Latina. O filósofo húngaro esteve no país este mês para participar de debates e lançar livros, entre eles seu O conceito de dialética em Lukács, além do segundo volume da Ontologia do ser social, de Lukács, e da coletânea de ensaios Gyorgy Lukács e a emancipação humana, organizado por Marcos Del Roio (todos pela Boitempo). Ele esteve no centro do ciclo de conferências “A dialética de Lukács e o enigma do Estado” em São Paulo, Marília e Goiânia. Em Belo Horizonte, onde participou de encontro na UFMG na terça-feira, ele conversou com o Pensar sobre a crise estrutural do capitalismo e os impasses e alternativas que essa situação apresenta. Falou também da relação com Lukács, de quem foi aluno e depois assistente, e do sentido das revoltas sociais que vêm tomando conta das ruas e praças do mundo.

Como foi sua relação com Lukács como aluno e, posteriormente, como assistente e amigo?

Eu o descobri em uma livraria por meio de uma compilação de ensaios literários (Mészáros tinha 15 anos e havia lido todos os livros que Lukács analisava na obra). Gostei tanto, ele falava de maneira esclarecedora da responsabilidade dos intelectuais, um tema até hoje relevante. Depois comprei todos seus livros. Isso foi logo após a guerra, início de 1946. Fui conhecê-lo em 1949. Naquela época, ele era professor da Universidade de Budapeste e encontrei-me em uma posição estranha, de um jovem estudante que tinha que defendê-lo. Ele foi atacado por toda a imprensa e eu me importava muito com aqueles ataques. Logo depois, virei seu assistente na universidade. Ele era professor de estética, que também foi meu primeiro campo de estudos. E já entre 1955 e 1956 me tornei seu professor-adjunto. Depois da Revolução de 1956, ele ficou um tempo preso, foi deportado para a Romênia. Foi um período difícil, tanto que deixei a Hungria um pouco depois, primeiro fui para a Itália e depois para a Inglaterra. Mas continuamos amigos até a morte dele (em 1971). Foi um relacionamento de 22 anos.

Como o senhor avalia a relevância do pensamento de Lukács hoje, em estética e política?

Ele foi um dos maiores filósofos do século 20, pode-se argumentar que tenha sido o maior pela realização de trabalhos em diferentes áreas. Seus primeiros trabalhos não foram obras marxistas, eram neokantianos. Na época, ele era muito influenciado por Hegel. Veio a se tornar marxista depois da Revolução Russa, quando entrou para o partido, mantendo-se ativo por muitos anos. Um de seus livros mais conhecidos, lido até hoje em todo o mundo, História e consciência de classe, é de 1923. Mais tarde, ele publicou grandes trabalhos sobre filosofia e também muita coisa no campo da estética. Nessa seara, e que ainda não foi traduzido aqui, sua produção tem o dobro desse livro (aponta para o volume Ontologia do ser social II, com suas 850 páginas). Espero que alguma dia a Boitempo o publique. É magnífico. E quando terminou a obra sobre estética, começou a escrever sobre ética.

Lukács escreveu que vivia uma época desfavorável, que pode ser também uma definição para nosso tempo.

Essa imagem descreve tudo (aponta para a reprodução de O campo de Chipka, quadro do pintor russo Vasili Vereshchagin que ilustra a capa d’O conceito de dialética em Lukács). Era o tempo da Guerra Russo-Turca (1877/1878) e a imagem ilustra uma época nada favorável. Essas pessoas estão mortas para que a artilharia possa prosseguir. Ou seja, fizeram seu trabalho em condições muito difíceis, para que a cavalaria tivesse condições de marchar em direção à vitória. Ele diz: não é isso, a vitória só virá mais tarde. Lukács falou disso há muito tempo e não se pode dizer que ainda tenhamos alcançado a vitória.

Diante de um período hostil como o que vivemos agora, que tarefas se tornam urgentes no pensamento e na ação política?

Em minha última passagem pelo Brasil, dois anos atrás, apresentei em diferentes cidades a palestra “Crise estrutural precisa de mudança estrutural”. Não podemos fazer apenas pequenas mudanças aqui e ali quando um problema é fundamental. Há poucos anos, todo o sistema financeiro mundial entrou em colapso. Trilhões de dólares que haviam sido colocados em bancos. O que foi feito em torno disso foi cavar buracos. De um buraco eles transferiram o conteúdo para outro, e para outro, e para outro. Isso nunca será bem sucedido. Há um famoso ditado que afirma: quando você está no fundo do buraco, pare de cavar. Ainda estamos a cavar. É por isso que falo de mudança estrutural em nossas relações na sociedade, economia, cultura, filosofia e política, é claro. Existem enormes problemas na política mundial, não posso pensar em qualquer parte do mundo em que não haja manifestações.

O senhor afirma que o capitalismo vive uma crise estrutural. O que isso significa em termos econômicos e sociais?

Vou um pouco mais longe do que o capitalismo, porque estou sempre falando sobre o capital, que não é apenas o capitalismo. Se você for muito generoso, pode dizer que o capitalismo tem cinco século, de um período de 2 mil, 3 mil anos. Nosso problema é realmente mudar o capital. O capitalismo foi alterado na Rússia, na Europa Oriental. E o que aconteceu? Todos eles entraram em colapso. As pessoas podem falar de derrubada do capitalismo. Sempre escrevi que o que pode ser derrubado também pode ser restaurado. O capitalismo foi derrubado na Rússia em 1917 e depois restaurado de forma selvagem. Por isso estamos de volta a este absurdo, até pior do que antes. O capitalismo prometeu um Estado justo em todo o mundo. E não se fala em Estado de Bem-Estar Social em mais do que cinco países. E o que está acontecendo com esses países que conto em uma só mão? Desaparecendo em seus grandes problemas. Se você pegar o exemplo dos Estados Unidos, que supostamente seria o mais dinâmico, agora estão tendo que se virar com uma dívida de US$ 17 trilhões. Obama prometeu que o déficit orçamentário cairia pela metade. Na mesma época, dois anos atrás, falei numa palestra que ele iria dobrá-lo, não reduzi-lo pela metade. E quem estava certo? US$ 17 trilhões, onde isso vai parar?

O Brasil viveu recentemente uma grande movimentação política nas ruas. Como esse movimento se insere na onda de protestos globais e que tipo de política parece sugerir, frente ao descrédito da representação tradicional por parte dos manifestantes?

Essas manifestações estão em todo lugar. Depois da Primavera Árabe, vocês podem dizer que tiveram seu Outono Brasileiro. A representação tradicional é um grande problema. Você não pode dizer que este movimento tenha alguma coordenação mundial. Não há unidade entre as manifestações, ainda que estejam ocorrendo na Espanha, Itália, França, Grécia, África... Qual é o país em que não existam grandes protestos? Certamente essas manifestações não podem ser contidas simplesmente pelas forças parlamentares tradicionais. O parlamento é uma formação histórica, tem suas funções, mas a política vai muito além dele. De tempos em tempos, quando houver um grande problema, o sistema capitalista não pode enviar os generais, os militares, como vocês experimentaram no passado. Aliás, qual o país da América Latina que não experimentou isso? E isso veio em decorrência da crise dessas sociedades. E os generais continuam em seus lugares, o que pode ser um grande problema para o futuro, porque todos estão acomodados. Cito uma frase de Gore Vidal, que dizia que na América existe um sistema de partido único com duas asas à direita. E posso dizer o mesmo da Inglaterra, França, Alemanha. A crise estrutural é o problema.

Qual seria o papel da esquerda em meio a essa crise estrutural?

Minha resposta será em duas frases curtas: Acorde. Comece a trabalhar. Kant, no século 18, falou “acorde do torpor”, e ele estava falando de filosofia. Acho que podemos colocar esse mesmo desafio para a esquerda. Há tantas divisões nela. Para haver uma mudança estrutural, é necessário, de alguma forma, reunir as forças da esquerda e começar a trabalhar em cima de problemas fundamentais, pois é tudo tão visível. Negativamente, você não resolve nada. A direita conservadora, o neoliberalismo, é um completo absurdo. Alguns neoliberais advogam ativa e agressivamente sobre o que chamam liberalismo/imperialismo. O que significa: tomar de volta as antigas colônias e governá-las com mão de ferro. E colocar nisso a palavra liberal, que se tornou palatável. Mas e as condições sociais? John Major, quando era primeiro-ministro britânico, em 1992, disse que o socialismo estava morto, que o capitalismo é que funcionava. Na época, dei a seguinte resposta a isso: O capitalismo funciona? Para quem? E por quanto tempo? Estou falando disso porque há algumas semanas, o mesmo John Major, já não primeiro-ministro, disse que é terrível pensar que no próximo inverno, na Inglaterra, milhares de pessoas terão que escolher entre comer ou se aquecer.

Dessa maneira, as palavras de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, continuam atuais?

Se eu tivesse que modificar Rosa Luxemburgo escreveria: socialismo ou barbárie se você tiver sorte. Porque a humanidade está fadada ao extermínio, a menos que se levante do grande buraco em que se encontra. O século 20 viveu duas guerras colossais graças ao capitalismo. Se houver outra como uma delas, será o fim. Rosa Luxemburgo não conhecia nenhuma arma catastrófica quando escreveu sobre “socialismo ou barbárie”. Aquilo foi no início do século, as armas nucleares vieram em 1945. O que ela diria agora?


O CONCEITO DE DIALÉTICA EM LUKÁCS
. De István Mészáros
. Editora Boitempo, 174 páginas

Escrito no final dos anos 1960 e lançado em 1972, o ensaio de Mészáros evidencia não apenas a grande compreensão da obra lukacsiana como o rigor para a pesquisa de um tema filosófico complexo, como a dialética, que atravessa todo o edifício teórico do pensador húngaro. O texto é relativamente curto e denso (a edição brasileira é completada com importante material, como cronologia, bibliografia, caderno de fotos e o artigo “Gyorky Lukács: a filosofia do tertium datur e o diálogo existencial”). Mészáros articula leitura dupla sobre o tema da dialética: a primeira percorrendo a obra de Lukács em busca do desenvolvimento do conceito ao longo de seu percurso; outra tendo como fio condutor o aprofundamento teórico. Assim, no primeiro momento, o livro analisa a presença da dialética no pensamento lukacsiano desde os primeiro livros, como História e consciência de classe e Jovem Hegel, até os livros de maturidade, como a Estética e a Ontologia do ser social, com reflexões sobre a mudança de perspectiva do autor. Em seguida, Mészáros estuda de que forma categorias como continuidade e descontinuidade, e totalidade e mediação estão presentes na concepção de dialética de Lukács, Um dos aspectos mais destacados do estudo é a sensibilidade para, ao mesmo tempo que propõe uma análise conceitual detida e criativa, articular a questão da dialética com as provocações da história, algo que não pode ser relevado no itinerário filosófico e político do pensador húngaro.


ONTOLOGIA DO SER SOCIAL II

. De Gyorgy Lukács
. Editora Boitempo, 848 páginas

Um dos mais importantes pensadores do século 20, o húngaro Gyorgy Lukács (1885-1971) é autor da contribuição mais significativa do marxismo aos temas estéticos. Autor de uma monumental Estética, além de ensaios sobre literatura e romance histórico, Lukács teve ainda vida atribulada pelas questões políticas de seu tempo e pela militância em seu país e no movimento comunista internacional. Na maturidade, põe a si mesmo o desafio de escrever uma ética, que complementasse o edifício erigido com os vários volumes de sua Estética. Ao se dar conta da tarefa, avalia que seria necessário, anteriormente, voltar ao fundamento ontológico da realidade social. E põe-se a escrever a obra que coroaria sua intensa vida intelectual, Ontologia do ser social, em mais de 1,5 mil páginas, a qual terminou pouco antes de morrer. Já na casa dos 80 anos, Lukács trabalhava 10 horas por dia no livro. Chega agora ao Brasil o segundo volume da obra, em tradução de Nélio Schneider. O que o primeiro volume trouxe de revisão histórica do tratamento da ontologia dado pelo neopositivismo, pelo existencialismo, por Hartmann e Hegel, até a redescoberta dada por Marx ao propor uma ontologia que saísse do domínio do ser individual em direção ao ser social, ganha no segundo volume um tratamento sistemático. Lukács, ao descrever a gênese do ser social, lança mão das categorias de trabalho, reprodução, ideologia e estranhamento. O objetivo do pensador, como avalia Guido Oldrini no prefácio da tradução brasileira, é “elaborar uma teoria completa da emancipação humana, da superação da mera singularidade particular (o individualismo burguês) em direção àquilo que, para o homem, é sua essência, o realmente humano”.

Arnaldo Viana - Os ausentes‏

Os ausentes - Arnaldo Viana
arnaldoviana.mg@diariosassociados.com.br

Estado de Minas: 30/11/2013




Vamos chamá-lo de Manoel. Profissional liberal, cinquentão. No começo, ia direto do emprego para casa. A mulher, dia sim dia não, estava na academia ou em visita à mãe, a amigas. As duas filhas, na faculdade. Sentia-se só. Aos poucos, traçou nova rotina até se acostumar a sair do trabalho e passar no botequim para um aperitivo, alguns copos de cerveja. Formou uma rede de amigos para falar de futebol, cinema, mulheres, profissões. Despedia-se não antes das 22h. As filhas se formaram e Manoel demorou a perceber que as meninas não mais frequentavam aulas noturnas.

“É mesmo. É certo que as encontrarei em casa quando sair do trabalho.” Passou no bar para bebericar apenas. Cumprimentou a turma, bebeu dois copos de cerveja e se despediu. Deixou os amigos espantados. “Virou camisolão de repente, cara?” Manoel não deu ouvidos à provocação, desceu a rua até o ponto de táxi. Chegou em casa antes das 20h. A mulher estava em um chá beneficente. As filhas, trancadas nos quartos. Provavelmente, com os dedos nas ferramentas das redes sociais. Tentou mais uma, duas, três vezes. Esteve com a mulher. As meninas, não.

Retomou à rotina do boteco. Os amigos festejaram cantando trecho de canção do compositor Adelino Moreira: “Boemia, aqui me tens de regresso e suplicante te peço a minha nova inscrição. Voltei pra rever os amigos que um dia eu deixei a chorar de alegria…”. Desenhou nos lábios um sorriso amarelado, pediu uma cerveja, uma dose de uísque sem gelo e brindou. Naquela noite, quando chegou em casa, surpreendeu a menina mais nova na cozinha. “Oi, filha, quase não te vejo. Nossos horários não combinam.” A resposta o gelou: “Você, cara, é um pai e um marido ausentes”.

Refeito do golpe, tentou argumentar: “Eu, ausente? Vocês, sim, são ausentes. Sempre trancadas em seus quartos, fazendo sei lá o quê”. A filha saiu apressada e Manoel foi para a cama. Entregou-se às lembranças. Puxou da memória cenas da infância, dos jantares em família. Todos à mesa. Os pais comentando as tarefas do dia e os acontecimentos quase inocentes que ainda abalavam aquela cidade interiorana; os filhos falando da escola, dos deveres, das rígidas normas de disciplina das professoras. Lembrou-se também da mudança para BH.

Dos jantares, a família não abriu mão, mesmo se um ou outro faltava à mesa por causa da agitação da capital e das distâncias entre escola, trabalho e casa. Até o dia em que o pai chegou na boleia da caminhonete de uma rede de lojas e desembarcou com o motorista carregando uma grande e pesada caixa. E apresentou o objeto à mulher e aos filhos: “Agora, temos televisão”. Sem perceber, a família foi aos poucos abandonando a mesa. Comia sentada no sofá, de olho nas imagens ainda mal definidas em preto e branco. Acabaram-se as conversas sobre o dia de cada um, as histórias, a convivência. Os rumos dos personagens da novela se tornaram apelo mais forte.

 Quando saiu de casa para se casar, Manoel prometeu que teria uma família como aquela que tivera antes da mudança para a capital, da compra da TV. Quando as meninas eram pequenas, conseguia mantê-las boa parte do tempo longe da TV. Foram crescendo e pedindo um computador, um celular, uma TV para o quarto. Os aparelhos foram se modernizando e as filhas, a mais velha agora com 24 anos e a mais nova com 22, trocando-os, como se muda de roupa. “É inevitável”, disse a mulher. Quando, um domingo qualquer, consegue reuni-las, com ou sem os namorados, para um almoço em família, ei-las, à mesa, cutucando as maquininhas.

Uma noite, no bar, os amigos não entenderam quando Manoel propôs um brinde: “A nós todos, pais e filhos ausentes”. E pediu outra rodada.

O instante antes da máscara‏ - Douglas Alves Júnior

O instante antes da máscara 
 
Montagem da Cia. Luna Lunera, Prazer apresenta personagens que vivem o presente inevitável, com suas angústias e busca de satisfação frente à inevitabilidade da morte 
 
Douglas Alves Júnior

Estado de Minas: 30/11/2013


Cena de Prazer: espectador acompanha a dança da existência com seus limites e possibilidades (Adriano Bastos/Divulgação)
Cena de Prazer: espectador acompanha a dança da existência com seus limites e possibilidades

Há um fragmento da Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, chamado “Marcados”. Ele se encontra na parte final da obra, na seção “Notas e esboços”. Transcrevo-o integralmente:

“Ao atingir a década dos 40 anos, as pessoas costumam fazer uma estranha experiência. Elas descobrem que a maioria das pessoas com que cresceram e mantiveram contatos começa a demonstrar distúrbios em seus costumes e em sua consciência. Um torna-se tão negligente em seu trabalho que seus negócios começam a periclitar, outro destrói o casamento sem a menor culpa da mulher, um terceiro vem a cometer desfalques. Mas também os que não passaram por acontecimentos marcantes apresentam indícios de decomposição. A conversação com eles torna-se insípida, fanfarrona, desconexa. Outrora, o quarentão ainda recebia dos outros um élan intelectual, mas agora ele tem a impressão de ser quase o único a demonstrar espontaneamente um interesse objetivo.

A princípio, ele se inclina a considerar a evolução das pessoas de sua idade como um infeliz acaso. Justamente eles mudaram para pior. Talvez isso tenha a ver com a geração e seu destino exterior particular. Finalmente, descobre que essa experiência é familiar, só que numa perspectiva diferente: a da juventude frente aos adultos. Pois ele não se convencera então de que algo não estava certo com este ou aquele professor do colégio, com os tios e as tias, os amigos dos pais e depois com os professores da universidade ou com o mestre dos aprendizes! Seja porque exibiam algum traço maluco e ridículo, seja porque sua presença era particularmente maçante, incômoda, decepcionante.

Nessa época, ele não pensava nisso, aceitava a inferioridade dos adultos como um simples fato natural. Agora, ele tem a confirmação disso: nas condições atuais, o simples transcurso da vida, ainda que se conservem certas habilidades técnicas ou intelectuais, é suficiente para levar, já na força da idade, ao cretinismo. Nem mesmo as pessoas experimentadas no trato dos homens e das coisas estão excluídas. É como se as pessoas, como castigo de terem traído as esperanças de sua juventude e terem se ajustado ao mundo, fossem marcadas por uma precoce decadência (tradução de Guido de Almeida)

Acredito que Prazer, peça da Cia. Luna Lunera, retrata um momento antes desta condição, quando as “máscaras sociais” – para usar uma expressão que é dita na peça – ainda não se fixaram, com toda a “cretinice” que isso traz – como o texto acima descreve. Se essa suposição estiver certa, trata-se de expor a experiência, ainda rica de potencialidades, da hesitação entre aceitar o peso do “aqui e agora”, com toda a gravidade (o confronto com a morte, a solidão) e a graça (a alegria dos encontros) que ele traz, por um lado, e, como outra opção, fugir para outra dimensão do tempo, seja o paraíso perdido da infância, seja a morte – imitando o gesto do peixe que, de repente, pula do aquário.

É por isso que as personagens de Prazer são intensas, animadas por uma força que, a cada instante corre o risco de se esvair e que, por isso mesmo, impõe o movimento e a ânsia. É por isso, também, que a dança ocupa um sentido importante na peça. Ela surge em momentos – como também as ocasiões em que os amigos se reúnem para comer – em que um pacto entre a gravidade e a graça é conseguido, e se torna possível habitar o presente. Uma ação com o outro e para além das palavras, que retoma o banho de mangueira da infância.

A morte e mais ainda o medo da morte são o baixo-contínuo de Prazer. Trata-se da luta do prazer contra a morte. Todos sabem que, no final, a morte vencerá. Ela não precisa vencer antes da hora, é disso que se trata. A morte que vence antes do tempo é a morte em vida, e seu representante maior, o “medo que esteriliza os abraços”, como disse uma vez Drummond. Por que “prazer” e não “angústia” como nome da peça? Quero chamar de angústia a condição humana fundamental de fragilidade diante do corpo, da dúvida face ao sentido dos próprios projetos de vida e da incerteza quanto aos afetos dos outros.

As crianças, os jovens, os idosos, todos sentem angústia.

Em uma cultura em que o prazer se tornou uma obrigação, a angústia não é bem-vinda.

Segundo essa visão de mundo, ninguém deveria se mostrar triste. Seria um desperdício de tempo, seria um desperdício de prazer.

Porém... como lembra o subtítulo de um filme de Fassbinder, “a felicidade nem sempre é divertida”.

A graça é inseparável da gravidade. A dança é a expressão visível disso.

A repressão social da angústia e da tristeza gera nas pessoas obrigadas a se mostrarem sempre felizes uma infelicidade adicional, que talvez seja mais dura hoje em dia do que em qualquer outra época.

Os personagens de Prazer parecem existir no momento presente (ou muito recente) da nossa história, um tempo que veio depois do tempo em que quase tudo no país era visivelmente muito infeliz e as pessoas não precisavam esconder isso de si mesmas e dos outros. Eles espelham a dificuldade do momento presente, em que as infelicidades se acumulam de um modo difuso, se espalham, mas são entendidas como defeito individual ou circunstância disfuncional a ser resolvida tecnicamente (com remédios, ou com mais prisões) e desligadas da corrente da vida.

Talvez a aposta do título por Prazer e não Angústia seja porque a vida é “disfuncional”, ou melhor, que ela não se esgota na função. E o prazer não se desliga da angústia. A aposta no prazer é uma aposta estética, ética e política. O prazer recusa a obrigação do prazer. O prazer recusa a obrigação de formas de satisfação definidas previamente. O prazer recusa a ordem que se legitima não por ser a mais justa, mas a mais antiga.

Prazer propõe ao espectador um pacto com o presente: não se desligar da corrente da vida. Sentir o gosto, mastigar e comer o medo e a tristeza. Antes que estejamos todos sozinhos, sufocados por poderes estranhos a nós e mortos em vida.

Douglas Garcia Alves Júnior é doutor em filosofia pela UFMG, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de Depois de Auschwitz: a questão do anti-semitismo em Theodor W. Adorno.