domingo, 8 de setembro de 2013

40 anos depois, o Chile canta Victor Jara - DORRIT HARAZIM


O GLOBO - 08/09/2013

Passaram-se quarenta anos.
Duas novas gerações de chilenos
sequer eram nascidas
quando o dia se fez noite na
manhã do 11 de setembro de 1973 e a
ditadura se instalou no país por 17
anos. Mas, na próxima quarta-feira,
40º aniversário do golpe militar que
desapareceu com 2.300 opositores e
torturou perto de 40 mil, o Chile vai
relembrar.

A cada efeméride tem sido assim. E
nas datas redondas como a deste ano
o passado se aviva mais.

Em Deltona, cidade situada ao sul
de Daytona Beach, no estado da Flórida,
um vendedor de automóveis
americano de 64 anos preferiria permanecer
à margem dessas lembranças.

Ele se chama Pedro Pablo Barrientos,
tinha 24 anos e era tenente do
Exército chileno em 1973. Mudou-se
em 1989 para os Estados Unidos, onde
tratou de adquirir nova cidadania.
Esta semana, a família do músico Victor
Jara entrou com um processo contra
ele numa corte distrital de Jacksonville.
Acusa-o de ter torturado Jara
pessoalmente e sido o autor do primeiro
dos 44 tiros que vararam o corpo
do cantor popular depois de preso.

A ação foi encaminhada em nome
da viúva e de suas duas filhas pelo
Centro de Justiça e Responsabilidade,
de São Francisco, baseada na Lei de
Proteção a Vítimas de Torturas. Sancionada
em 1991, essa legislação federal
permite que cidadãos residentes
nos Estados Unidos sejam processados
em território americano quando
suspeitos de violações de direitos humanos
em outros países.

Pela primeira vez este que é um dos
episódios mais encruados do 11 de
setembro chileno parece ter uma real
chance de ser esclarecido.
Na semana inicial do golpe todos os
boatos eram críveis, por inverificáveis.
A nova ordem militar de Augusto
Pinochet havia cortado boa parte das
linhas telefônicas na capital, e o toque
de recolher era draconiano, impedindo
que uns soubessem com certeza
da sorte dos outros.

No caso de Victor Jara, soube-se apenas
que fora preso junto com uma centena
de estudantes e professores da
Universidade Técnica Estadual e que,
cinco dias depois, a bailarina inglesa
Joan Turner Jara fizera o reconhecimento
do corpo do marido no necrotério
municipal. Sepultou-o sozinha, no
Cemitério Geral de Santiago, com a
ajuda do motorista do rabecão.

O venerado Jara era a voz do Chile
socialista de Salvador Allende. Cancioneiro
e poeta, compositor popular,
professor e ativista político, além de
dramaturgo e apaixonado pelas raízes
folclóricas da Nueva Canción Chilena,
era um letrista engajado e autor
de músicas que arrebatavam a classe
operária (“Te Recuerda Amanda”).
E esta voz tinha sido eliminada. As
primeiras falsas certezas asseguravam
que ele fora levado para o Estádio
Nacional onde lhe teriam decepado
as mãos de músico antes de executá-
lo, como ocorrera com Che Guevara
após sua captura na Bolívia — só
que Guevara já estava morto ao ser
mutilado.

Na verdade, Victor Jara sequer conseguiu
chegar ao Estádio Nacional.
Morreu numa arena menor. No centro
de detenção improvisado do Estádio
Chile foi logo identificado por um oficial
e teve uma primeira avalanche de
chutes e coronhadas à vista de todos.
Com várias costelas quebradas e um
olho inutilizado, permaneceu imóvel
24 horas ao alcance da bota militar,
sem alimento ou água. Naquele mesmo
estádio, quatro anos antes, fora
aclamado vencedor do primeiro Festival
da Nueva Canción Chilena com
“Oração de um trabalhador”.

No domingo dia 16 circulara a notícia
de que alguns detentos seriam libertados,
o que levou os demais a escrever
mensagens para esposas, filhos,
pais, amigos. Victor Jara foi um
dos mais ansiosos. Só parou ao ser arrastado
por dois soldados até uma saleta
de transmissão do estádio. Mas
conseguiu deixar para trás as duas folhas
de papel que escreveu, rapidamente
escondidas pelo advogado Boris
Navia.

Não eram cartas para a mulher nem
para as filhas. Era um poema. Não tinha
título. Descrevia o ambiente à
sua volta. Foi-lhe dado, post mortem,
o título “Estadio Chile”.
Os detentos fizeram duas cópias,
entregues a um estudante e um médico
que seriam libertados. Um deles
foi revistado. Navia, que escondera o
manuscrito original numa fenda
aberta na sola do sapato, foi levado
para o centro de torturas do velódromo.
Mas a terceira cópia alçou voo e
correu mundo.

A última visão que Navia e seus
companheiros tiveram de Jara foi do
seu espancamento a golpes de fuzil
na saleta do estádio. No final da mesma
tarde, cruzaram o saguão principal
para serem transferidos para o Estádio
Nacional. Ali se depararam com
cerca de 50 cadáveres espalhados pelo
chão. Entre eles, o de Victor Jara.
Foi somente em 2009 que a investigação
conduzida pelo juiz Miguel
Vásquez conseguiu chegar ao nome
do homem que teria apertado o gatilho
do primeiro tiro contra a nuca do
prisioneiro. Depois, o oficial teria ordenado
aos soldados presentes que
prosseguissem com a fuzilaria. Embora
Pedro Barrientos negue jamais
ter sequer cruzado com o músico, a
família Jara espera que o Supremo
Tribunal chileno encaminhe o aguardado
pedido de extradição aos Estados
Unidos.

Se Barrientos algum dia retornar,
talvez se pergunte para que serviu
tanta brutalidade. O Estádio Chile foi
rebatizado de Estádio Victor Jara. As
fitas máster das gravações do músico
que a ditadura se empenhou em destruir
foram laboriosamente substituídas
por outras versões. Brotaram remixagens,
remasterizações, foi lançada
uma caixa com 9 CDs, republicada
uma antologia com seus poemas.
Bandas jovens o interpretam como
um dos seus, companheiros velhos o
cantam como no passado. Hoje, Victor
Jara teria 81 anos.

Dorrit Harazim é jornalista

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