sábado, 19 de outubro de 2013

Prosa, cinema e teatro - João Paulo

O poeta e compositor foi autor de crônicas e contos e levou sua paixão para o cinema e o teatro. Filme Orfeu negro, baseado em musical para o palco, foi premiado com a Palma de Ouro e o Oscar


João Paulo

Estado de Minas: 19/10/2013 



 (Pedro Moraes/divulgação)


...Às vezes quero crer mas não consigo
É tudo uma total insensatez
Aí pergunto a Deus: escute, amigo
Se foi pra desfazer, pra que é que fez?...


Oscar Niemeyer, Vinicius de Moraes, Tom Jobim e Lila de Moraes: ao fundo, o cartaz de Djanira para Orfeu da Conceição (José Medeiros/Jobim Music)
Oscar Niemeyer, Vinicius de Moraes, Tom Jobim e Lila de Moraes: ao fundo, o cartaz de Djanira para Orfeu da Conceição


A força da poesia e a da música na vida e obra de Vinicius é tão intensa que nublou outras realizações do artista. O prosador, por exemplo, autor de crônicas reunidas em dois livros, Para viver um grande amor e Para uma menina com uma flor, ficou marcado por uma avaliação incorreta. Pelo título dos livros, e pelo fato de intercalar poemas e textos em prosa, ficaram para a história como sendo volumes reunidos às pressas, com escritos de circunstância, vazados por uma prosa poética descompromissada. Livro para jovenzinhas sonhadoras dadas a suspiros.

Mesmo com textos publicados na imprensa a partir dos anos 1940, os livros merecem ainda hoje leitura atenta. Vinicius mescla vários subgêneros, da crônica a contos fantásticos. O escritor, que sempre foi muito vaidoso, no mais egocêntrico dos gêneros (todo cronista adora falar com o próprio umbigo), dá lições aos colegas de ofício, introduzindo um ensaísmo leve em seus textos. Influência inglesa que, em alguns momentos, se parece com o estilo de outro brasileiro admirador da sutileza e do humor britânico, Machado de Assis.

No entanto, o melhor das crônicas de Vinicius são os exercícios de memória. O escritor fala sobre a viagem a Ouro Preto na companhia de Rodrigo Melo Franco de Andrade; faz pequenos retratos de amigos, como Caymmi, Guignard e Antonio Maria; relembra o Rio de sua infância. Mas o cronista também sabe pôr o dedo na ferida, ao descrever um Rio de favelas, falta d’água e enchentes. Uma cidade que tem de um lado a garota de Ipanema e de outro o cheiro da miséria do Morro do Pinto.

Outra arte que sempre interessou Vinicius de Moraes foi o cinema. Em 1947, chegou a estudar com Orson Welles e Greg Tolland. No mesmo ano, com Alex Viany, fundou a revista Filme. Escrever sobre cinema ajudava a equilibrar o orçamento do poeta. Entre 1941 e 1953, publicou críticas de filmes nos jornais A Manhã, Diário Carioca e Última Hora. Seus escritos sobre a sétima arte foram reunidos na antologia O cinema de meus olhos – Textos sobre cinema, organizado por Carlos Augusto Calil em 1991, e publicado pela Companhia das Letras.

Sua maior aproximação ao cinema, como não podia deixar de ser, se deu pela via da música. Suas canções fazem parte da trilha de dezenas de filmes (cerca de 70 longas-metragens de várias nacionalidades), entre eles produções dirigidas por David Lynch e Pedro Almodóvar. No Brasil, sua primeira canção ouvida na tela grande foi Eu não existo sem você, no filme Pista de grama, de 1958.

Mas a grande experiência de Vinicius com o cinema foi sem dúvida o filme Orfeu negro, de Marcel Camus, de 1959, livremente adaptado da peça Orfeu da Conceição. O filme ganhou os dois mais importantes prêmios do cinema mundial, a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Vinicius não gostou do filme. E nem podia gostar. Trata-se de cinema para gringo ver, cheio de exotismos. Os estrangeiros adoraram (a mãe de Obama era fã do filme de Camus) e os brasileiros até hoje torcem o nariz.

O cineasta Cacá Diegues, que 40 anos depois dirigiria seu próprio Orfeu, se referiu da seguinte forma ao filme de Marcel Camus: “Apesar de seu sincero encantamento pela paisagem humana e geográfica do Rio de Janeiro, apesar mesmo de um certo carinho pelo que estava registrado, o filme enveredava por visão exótica e turística da cidade, o que traía o sentido da peça e passava muito longe de suas fundadoras e fundamentais qualidades. Embora hoje, depois de revisões mais recentes, reconheça que há naquele filme certas qualidades indecifráveis para mim na época, saí do cinema sentindo-me pessoalmente ofendido”.

Outro filme com a digital de Vinicius de Moraes no argumento e roteiro é Garota de Ipanema, de Leon Hirszman. Para fechar uma história de amor com o cinema, o Poetinha foi tema do documentário Vinicius, de Miguel Faria Júnior, de 2005. É, até hoje, documentário com uma das maiores bilheterias no Brasil, com mais de 270 mil pagantes.


Sempre vivo
 (Jobim Music/Reprodução)
Um mito grego adaptado para o cenário de uma favela carioca, escrito em decassílabos. A ideia não era assim tão nova. Muitos escritores foram seduzidos pela história do lendário Orfeu, um dos mais misteriosos personagens da mitologia. Orfeu foi recriado por Virgílio, Ovídio, Calderón de la Barca, Lope Vega, Corneille, Pierre de Ronsard, Shelley e Rilke. Tornou-se personagem de ópera de Monteverdi e Gluck e cantatas de Haydn, Rameau e Offebnbach. A lista é infinita. Vinicius está em boa companhia.

O texto do poeta carioca foi publicado em 1954, na revista Anhembi. Em 1956, ganhou música de Tom Jobim, apresentado a Vinicius por Lúcio Rangel especialmente para o trabalho. Numa das gafes mais repetidas da história da cultura brasileira, Tom teria perguntado: “Tem um dinheirinho nisso?”. A encenação, com direção de Leo Jusi e cenário de Oscar Niemeyer, lotou o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que, pela primeira vez, viu subir ao palco atores negros como protagonistas. A primeira temporada ficou em cartaz de 25 a 30 de setembro daquele ano.

Os mil exemplares do programa, desenhado por Carlos Scliar, foram distribuídos no foyer do teatro e se esgotaram na primeira récita. Hoje, são peças de colecionador. Em 1º de outubro, a Odeon lançou uma bolacha de 10 polegadas, com Roberto Paiva cantando temas de Orfeu no lado A (os discos, como a vida, tinham sempre dois lados), e uma overture e recitativo de Vinicius com a Valsa de Eurídice ao fundo, no lado B.

A peça voltaria ao cartaz no Teatro de República, mas com cenários menores de Fernando Pamplona, encerrando a experiência de Niemeyer com o teatro por excesso de beleza. O cenário do arquiteto – uma crítica que se tornaria recorrente entre os ignorantes – era bonito demais para ser prático. As opiniões sobre o espetáculo foram em geral positivas, com comparações com Porgy e Bess, de Gershwin, e exaltações à poesia de Vinicius e à música de Tom, por nomes como Jorge Amado e Radamés Gnatalli. Manuel Bandeira defendeu que a história ficaria melhor no cinema. Treze anos depois, Camus pôs a ideia em prática. Não se sabe o que o poeta pernambucano achou do filme.

Vinicius de Moraes escreveu outras peças de teatro: Procura-se uma Rosa, baseada em uma história de jornal, com a colaboração de Pedro Bloch; Cordélia e o peregrino (texto dos anos 1930 retomado em 1965); e As feras. Em 1995, foi publicado o livro Teatro em versos, organizado por Carlos Augusto Calil (Companhia das Letras).
Homem de muitos instrumentos, Vinicius garantia que era hábil com as panelas (Arquivo Pessoal)
Homem de muitos instrumentos, Vinicius garantia que era hábil com as panelas


Água na boca  

Em matéria de prazer, nada ficava de fora na vida de Vinicius. Pensando nisso, Daniela Narciso e Edith Gonçalves organizaram o livro Pois sou um bom cozinheiro (Companhia das Letras), com histórias gastronômicas ligadas a diferentes momentos da vida do Poetinha. Com direito a receitas inspiradas na vida do compositor, criadas por chefs como Alex Atala, Flávia Quaresma e Claude Troisgros, entre outros. Minas e as temporadas em Ouro Preto não ficam de fora, sem falar da célebre visita de Vinicius e Neruda ao Tavares, em BH, restaurante especializado em caça, onde os dois poetas se deliciaram com a variedade de pimentas da casa.

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