domingo, 24 de novembro de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Shakespeare e o Chile‏

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Shakespeare e o Chile 

Estado de Minas: 24/11/2013




Não vou falar sobre os 450 anos de nascimento de Shakespeare, que serão comemorados em 2014.

Também não vou me demorar lembrando o curso que dei na Universidade de Concepción, no Chile, em 2006, ano em que Michelle Bachelet foi eleita presidente. Pouco depois de minha estada ali, a cidade de Concepción quase desapareceria vitimada por um terremoto. Evidentemente, não há qualquer relação entre o curso e o terremoto. Claro que a eleição de Bachelet foi também um terremoto. Vi a euforia das pessoas com a escolha da mulher que havia sido ministra da Defesa, filha do general assassinado pela ditadura do Pinochet.

Mas também não me demorarei nisso, embora possa relatar coisas curiosíssimas que um ex-assessor de Allende me contou. Por exemplo: quando Bachelet era ministra, foi à Coreia do Norte e comentou com alguém, reservadamente no seu quarto, que havia se esquecido de trazer roupa de gala para a recepcão. Esqueceu-se de que naquele país todas as conversas eram espionadas, havia microfones por toda parte. Para surpresa sua, no dia seguinte, a transferiram de quarto e havia ali vestidos de gala para ela usar.

Mas o que me interessa agora é outra coisa: a tragédia que Shakespeare poderia ter escrito se vivesse nos nossos dias. Aquele bardo que buscava temas na Dinamarca e outros reinos encontraria no Chile a sua trama.

Li um artigo de Ariel Dorfman em que ele comenta “a tortuosa presença do general Fernando Matthei na vida dos candidatos à Presidência do Chile”. Dorfman nasceu na Ucrânia, foi viver na Argentina, assumiu a nacionalidade chilena e creio que mora nos Estados Unidos. É autor daquele best-seller Para ler o Pato Donald. O texto é brilhante. Só faltou dizer que Shakespereare é o autor da realidade que se vive no Chile hoje. Vejam: seguindo o gosto do dramaturgo inglês, tudo se passa nos palácios com uma visita a cemitérios e calabouços. E com direito a invocação aos mortos. O presente e o passado se misturam, vivos e mortos vivem num tormento só.

Confiram: Bachelet, candidata pela segunda vez a presidir o Chile, é filha do general Alberto Bachelet. Seu pai foi torturado e assassinado pela ditadura Pinochet. Mais do que isso: o pai de Bachelet era amigo íntimo de outro general – Fernando Matthei. Este sabia que o amigo estava sendo torturado e não tomou nenhuma atitude. Justificava-se dizendo: “Prevaleceu a prudência sobre a coragem”. Prudência, vejam bem, é o nome que ele dá àquilo que chamamos de covardia.

O drama continua no palco chileno. A filha de Matthei, Evelyn, é hoje candidata à presidência do país. Tal como Michelle, filha de Alberto. Evelyn até chamava o pai de Michelle Bachelet de tio Alberto. Como nas tragédias shakespearianas, tudo ocorre no palácio e dentro da família em torno do trono.

Shakespeare não sabe o que está perdendo. De repente, entra em cena outro elemento dramático que torna a peça ainda mais intrigante. Não bastava a disputa entre Michelle e Evelyn, ambas filhas de generais: um contra Pinochet, outro a favor; um torturado e assassinado, outro ocupando o cargo de diretor da Academia de Guerra da Força Aérea. Além das duas mulheres em posições filiais e partidárias opostas, surge agora outro filho, de outro partido, a terceira ponta do triângulo dessa tragédia shakespeariana, histórica e chilena. O outro candidato a presidente é Marco Enríquez-Ominami, que vem a ser nada mais nada menos que filho de Miguel Enríquez, o líder do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR) morto pela polícia secreta em 5 de outubro de 1974 numa rua de Santiago.

Três filhos. Três candidaturas. Três ideologias. Três opções. Três lados de uma tragédia.

O que Shakespeare está esperando? O assunto está aí.

Senta e escreve, rapaz!

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