sábado, 16 de novembro de 2013

João Paulo - Revolta permanente‏

João Paulo

Estado de Minas: 16/11/2013 



Em junho o povo mostrou nas ruas quem manda. É bom não esquecer (Christopher Simon/AFP)
Em junho o povo mostrou nas ruas quem manda. É bom não esquecer

Este mês o mundo celebra o centenário do argelino Albert Camus (1913-1960), que se tornou mundialmente conhecido pelo romance O estrangeiro. Próximo ao grupo dos existencialistas que davam as cartas na intelectualidade europeia, Camus romperia com Sartre e sua turma em razão de divergências políticas. Enquanto o filósofo se firmava em suas posições comunistas, alinhadas com a União Soviética, o escritor argelino passou a desconfiar dos descaminhos soviéticos e se tornou defensor de um senso de revolta mais individual, quase metafísico.

No começo dos anos 1950, Camus publica o livro O homem revoltado, que marca o rompimento definitivo com Sartre. Com o olhar de hoje, pode-se dizer que Camus acertou na história, enquanto Sartre reinava na ideologia. Como se vê, a política é menor que a história e deve seu pedágio ao tempo. O livro de Camus pode ser lido ainda hoje com proveito. O comunismo soviético não existe mais. Que o senso de revolta tenha sido mais durável que a revolução é uma das boas lições que a história nos lega.

E é exatamente a revolta que hoje melhor define o sentido da política no mundo. A onda que se espalhou pelo planeta, mesmo sem saber, teve saudável inspiração camusiana. Com a desconfiança em torno das opções convencionais e do chamado realismo político – que não tem nada de real nem de político –, as pessoas foram às ruas para exigir novo patamar de representação, participação e competência na gestão do Estado.

No Brasil, a partir de junho, o que se viu foi exatamente um ultrapassamento do Estado pela sociedade. Se as táticas e estratégias habituais da esquerda apontavam a conquista do poder como estágio final, a partir do qual se estabeleceriam as bases de um novo arranjo de forças, hoje se sabe que questionar o poder é a tarefa por excelência da esquerda. Não apenas o poder conservador, mas todo tipo de poder. Enquanto os políticos tradicionais se digladiavam apontando a falha nos outros, o cidadão repudiou todos eles. O sistema político perdeu prestígio enquanto a política assumia novos horizontes.

Durante a movimentação que tomou conta do Brasil, muito se escreveu nos jornais e blogs, os debates foram intensos em várias instâncias, as teorias se esforçavam para dar conta da novidade. Entender o que se passava nas ruas não era apenas uma exigência da razão, mas um caminho para desdobrar a revolta em ações consequentes. Tudo que a teoria política, a história e a sociologia haviam ensinado até então parecia se desmanchar no gás lacrimogêneo.

Passados alguns meses, o fruto desse intenso trabalho de inteligência – em meio a muita burrice e má-fé – fez surgir as primeiras sínteses sobre as chamadas revoltas de junho. Alimentadas pela cobertura jornalística tradicional, mas vitaminada pelas novas mídias e canais militantes, o período já pode ser hoje compreendido e debatido em novas bases. Mais que aclarar um momento histórico rico, os estudos parecem abrir um novo período temporal na história recente brasileira. Essa é a inspiração dos estudos mais consistentes que estão chegando ao leitor.

Em movimento Livro que merece destaque nesse cenário é Imobilismo em movimento – Da abertura democrática ao governo Dilma, de Marcos Nobre (Editora Companhia das Letras). Professor de filosofia da Unicamp, Marcos Nobre havia sido um dos primeiros a lançar um olhar de profundidade sobre as revoltas de junho com o estudo Choque de democracia, as razões da revolta, publicado em formato de livro eletrônico no calor da hora. Seu novo trabalho, que acaba de ser lançado, mostra que havia um substrato para a análise, um estudo prévio que permitiu enquadrar as revoltas num esquema mais profundo de interpretação.

Marcos Nobre estuda um período muito recente, os últimos 30 anos, que parecem ter ficado entre parênteses em razão de interesses ideológicos. Como havia um inimigo comum, da ditadura militar aos governos neoliberais, o sistema político em si ficou blindado de críticas e intervenções mais corajosas dos analistas. Em outras palavras, o Brasil assumiu um perfil que o autor chama de “pemedebismo”, que pode ser resumido como a política do balcão de negócios, das alianças espúrias em nome da governabilidade, do moralismo de resultados.

Não se trata de uma crítica de um partido específico, o PMDB (que merece todas as críticas), mas de uma cultura que permite, por exemplo, que sua ética (ou falta de ética) se torne hegemônica no sistema político. Para viabilizar um governo, ainda que bem-intencionado (ou mesmo exatamente por ser bem-intencionado), valeria a pena sujar a mão no toma lá dá cá que escreve a história da maioria das legendas de aluguel que definem a política nacional?

É nesse cenário que se inscreve a interpretação das revoltas de junho. Em sua originalidade, fora dos padrões tradicionais de mobilização e distantes da cooptação pemedebista (inclusive a encastelada no Estado), o movimento das ruas explode o sistema político para impor nova agenda e nova relação entre a sociedade e o Estado. A democracia se enraizou na vida cotidiana. Não é um acaso que tenham sido os preços e a qualidade dos serviços o estopim de tudo. Nesse novo contexto, é tão importante o poder estatal como a gestão eficiente dos serviços devidos ao público. Não se aceita mais barganhar um pelo outro.

Outro livro que qualifica o debate é As ruas e a democracia, de Marco Aurélio Nogueira (Editora Contraponto e Fundação Astrojildo Pereira). Entre a análise de conjuntura e o esforço teórico, Marco Aurélio também sustenta suas observações num esquema histórico mais amplo. Ele explica que a crise não foi fruto de um acaso nem surgiu de repente, tendo germinado ao longo do tempo em razão de ações políticas específicas. Não se pode, lembra o autor, esquecer a insatisfação popular pela mediocridade da gestão, nem a revolta sempre renovada contra a corrupção do sistema.

Marco Aurélio reforça o fato de as revoltas terem se dado sob governos petistas, em razão da reprodução das bases de clientelismo, patrimonialismo e corrupção que o partido tanto criticou e com as quais passa a conviver. Mesmo reconhecendo as mudanças na sociedade brasileira, com o combate à miséria, a distribuição de renda e a incorporação de grandes parcelas da população no mundo do consumo e da legalidade trabalhista, nem por isso se estabeleceu um pacto que fosse leniente com os desvios e a incompetência em tocar a máquina e oferecer serviços de qualidade.

O pesquisador capta o surgimento de uma nova politicidade, de novas relações que tiraram a política da letargia e colocaram em desconfiança os modelos habituais de formação de consensos. Mudou a sociedade, a comunicação, as relações sociais. Mesmo com baixo poder de agenda, as ruas se firmam como uma espécie de inconsciente político em repouso, pronto para emergir à consciência e se rearticular em bandeiras específicas. A tarefa de dar consistência e continuidade à revolta ficou exatamente para a parte menos nobre do jogo: os partidos. O que fica claro é que a reforma política por si não resolve. As ruas pedem outra política.

Ano que vem tem eleição, mas antes tem Copa do Mundo. Um bom teste para a memória política das revoltas de junho. Um boicote seria o ideal. Mas, se não for possível, vai ser muito bom atrapalhar como for possível a festa pobre para a qual não fomos convidados, mas cuja conta estamos pagando.

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