domingo, 15 de dezembro de 2013

EM DIA COM A PSICANáLISE » Quatrocentos e cinquenta quilos de imaginário

Estado de Minas 15/12/2013

Nas psicoses, o inconsciente fica a céu aberto. Escancarado, funciona sem censura, sem barreiras, produz fenômenos como as alucinações e os delírios, que são uma tentativa de dar sentido ao caos que se instala na mente. Tudo isso produz angústias terríveis, sensações de despedaçamentos. O imaginário ganha consistência e parece tão concreto que submete o sujeito, sem as barreiras que normalmente deveríamos ter para nos defender.

E quando o imaginário ganha a cena, invade a realidade, ele captura nossa interpretação, que passa a significar tudo conforme a tradução que fazemos. Mas nem sempre isso ocorre somente nas psicoses. As pessoas ditas normais também são ricas na imaginação e viajam mentalmente para continentes distantes da realidade.

E, quando o imaginário nos guia, rouba a cena e nos conduz, o pensamento voa para onde quer sem as limitações do princípio da realidade. E pode ir muito longe. A novela Amor à vida (trama das nove da Globo) é bom exemplo da proliferação do imaginário.

As novelas geralmente nos proporcionam uma ficção em que pontos problemáticos e polêmicos do cotidiano são expostos para discussão. Elas influenciam e são formadoras de opinião. De fato, elas têm um papel na sociedade brasileira, que aprecia uma novela e as produz com excelência. Nesta novela, o autor toca em múltiplos preconceitos, ambiguidades do relacionamento humano, traições e jogos de interesse e poder.

Amor à vida tem levado a extremos as relações, sejam as familiares, entre vizinhos, entre amantes e as profissionais. Enfim, para todos os lados que ela aponta é chumbo grosso que vem. Nada de momento relax. Uma trama pesada de maldades, vinganças e mau-caratismo. Não é uma novela, é uma catarse, como disse um amigo.

Quem é bom na novela parece idiotizado, outro extremo. Cai em todas as ciladas e armações, não consegue se expressar na hora que deveria, deixa passar argumentos os mais simples para ficar embolado nas garras dos maldosos.

O problema é que a banalização dessa exposição faz parecer que o mundo é composto de pessoas maquiavélicas, e em qualquer família encontraremos tamanhas mirabolâncias. Sabemos que a realidade pode nos surpreender grandemente, e há os que são de fato maldosos, mas na trama se concentraram no exagero.

A caracterização de cada personagem é caricatural. Traços que em nós são atenuados pela censura, pela educação, na novela são escancarados. Somos em parte bons e maus ao mesmo tempo, porém, nos contemos pelos princípios morais e éticos que nos ajudam a reconhecer limites necessários à convivência. Ali na novela, ninguém tem inibição, limite ou pudor.

Tudo é dito como pensado. Xingamentos são atirados na cara do outro, ofensivamente, o que dificilmente ocorre na vida real, quando os mais feios pensamentos são muitas vezes dissimulados, invertendo-os a seu oposto. Quando o exagero é tão bizarro, não podemos mais nos deixar levar e acreditar nos argumentos da novela. A maldade está em todos os lados, é uma novela paranoide.

Fico pensando no peso que ela tem e em como o apelo por audiência levou a um drama forte e pesado. Então pensei que a novela vem logo depois do Jornal Nacional, quando estamos acostumados a notícias escabrosas, como as do mensalão, corrupção pipocando para todo lado e até helicóptero de deputado apreendido com 450 quilos de pasta-base de cocaína (e a culpa é do piloto...). Só uma novela com 450 quilos de imaginário poderia mesmo nos causar qualquer impacto...

E as situações são tão bizarras, tanto as da realidade quanto as da novela, que chego a pensar se não estamos todos pirando juntos. Um pouco de perversão atrai o telespectador, até aí dá para entender uma pitada dela. Acho que um pouco de saúde mental para contrabalançar poderia ser bom de se ver, de quando em vez, para nos trazer alento e esperança de que dias melhores virão.

>>  reginacosta@uai.com.br

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