terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

VIVA VOZ » A utopia de cada dia Ângela Faria‏

VIVA VOZ » A utopia de cada dia 
 
Ângela Faria
Estado de Minas: 25/02/2014


Caetano mostrou seu Abraçaço  aos mineiros em abril do ano passado, no Palácio das Artes (Beto Magalhães/EM/D.A Press)
Caetano mostrou seu Abraçaço aos mineiros em abril do ano passado, no Palácio das Artes

Com o perdão da rima pobre, Abraçaço ao vivo é um discaço. Gravado em agosto no Vivo Rio, o CD/DVD traz o repertório do álbum homônimo, lançado por Caetano Veloso em 2012, em vigoroso diálogo com antigas canções. Aos 71 anos, cabelos brancos e sutil rebolado, o velho baiano empurra a MPB para longe da zona de conforto. A Banda Cê – o power trio Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo e piano) e Marcelo Callado (bateria) – é coautora da proeza.

A faixa de abertura, a recente A bossa nova é foda, petardo em homenagem ao “bruxo de Juazeiro”, virou praticamente grito de guerra. De braço erguido, a plateia grita o refrão (ou palavra de ordem?) para em seguida ouvir Lindeza, com seus doces acordes, gravada em Circuladô (1991). Três meses depois das manifestações de junho, o público aplaude para valer o verso “vida sem utopia não entendo que exista”, de Um comunista, tributo ao guerrilheiro Carlos Marighella, ícone da esquerda brasileira. Enquanto Caetano revela seu desencanto com revoluções e violência, o “samba fúnebre” reverencia a saga do fundador da Aliança Libertadora Nacional (ALN), executado por agentes da ditadura militar. A setentista Triste Bahia parece ter sido feita hoje, tão bem se encaixa na saga do mulato baiano. O pot-pourri de cantos populares traz toques de capoeira. Marighella costumava jogar com mestres no Pelourinho.

À recente Estou triste – “o lugar mais frio do Rio é o meu quarto” – segue-se a vigorosa Odeio, do álbum Cê (2006), em que o poeta se diz velho e feio. A tristeza acaba em samba, a contagiante Escapulário. “Dai-nos senhor a poesia de cada dia”, cantam Caetano e o público, arrebatado pela versão arrasa-quarteirão da Banda Cê para Funk melódico. Rock na veia.

Bom de palco, o setentão Caetano não está ali para conversar. Dança, dá seus pulinhos, brinca de roqueiro e, performático, se joga. Em Homem, ele confessa a inveja dos orgasmos múltiplos femininos e se esparrama pelo chão. Faz sutil striptease durante a veterana returbinada De noite na cama. Abre a blusa, mostrando barriga e peito. Bem menos que Ney Matogrosso, é certo, mas o suficiente para ironizar os militantes da ditadura dos sarados, devotos da eterna juventude.

O público o aplaude ao ouvir “cadê o Amarildo?”, mantra cívico que ecoou pelo Brasil durante as manifestações de junho e julho do ano passado. A pressão popular obrigou o governo fluminense a esclarecer o assassinato do pedreiro, acusado de tráfico, mas, na verdade, torturado por PMs na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Favela da Rocinha. “O império da lei há de vingar”, roga o velho baiano.

Descrente das revoluções, o conterrâneo de Marighella não foge à luta. Há anos Caetano Veloso ocupa seu lugar na arena para brigar por suas convicções – seja para questionar a atuação dos biógrafos no Brasil, defender o diálogo com os black blocs ou denunciar a posição da mídia em relação ao deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) no recente episódio da morte do cinegrafista Santiago Andrade. Zona de conforto, definitivamente, não é a praia deste medalhão da MPB

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