sábado, 27 de setembro de 2014

Sem aviso prévio - José Manoel Bertolote

Estado de Minas: 27/09/2014

O ator norte-americano Robin Williams sofria de depressão e tinha diagnóstico de mal de Parkinson, duas das grandes causas de suicídio no mundo, segundo estudo da OMS
 (MAJ. ENRIQUE VASQUES - 19/12/07)
O ator norte-americano Robin Williams sofria de depressão e tinha diagnóstico de mal de Parkinson, duas das grandes causas de suicídio no mundo, segundo estudo da OMS


A recente morte do ator norte-americano Robin Williams lança uma luz sobre o suicídio. Trata-se, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), de uma das quatro principais causas de morte no mundo. Existe uma crença de que há uma relação profunda entre suicídio e depressão, como parece ter sido o caso de Williams, segundo o que foi divulgado pela imprensa. Há, mas a depressão não é a única causa. O psiquiatra José Manoel Bertolote, autor do livro O suicídio e sua prevenção, traça um retrato do que é o suicídio e aponta as alternativas de tratamento para evitar o desfecho fatal.

A relação entre o suicídio e a depressão é, para muita gente, inclusive profissionais da saúde e da psicologia, de estreita correlação, quase sinônimos. Entretanto, na suicidologia, essa relação é conhecida como "paradoxo da depressão e suicídio". O que significa isso? Em primeiro lugar, temos que saber do que estamos falando. O que é depressão? O que é suicídio? Depressão é um termo ambíguo, que pode designar desde um estado emocional momentâneo e passageiro (a "fossa", uma "deprê", "dor de cotovelo") até doenças graves (como a melancolia, caracterizada por angústia e tristeza profundas), doenças estas que podem ter causas biológicas (como alterações hormonais ou de neurotransmissores), psicológicas (frustrações, decepções ou a "raiva dirigida a si mesmo") ou sociais (situações de humilhação, de desonra). Há casos em que as três ordens de fatores atuam, obviamente aumentado a gravidade do caso. Já o suicídio é uma das quatro principais formas de óbito (as demais são as causas naturais, os acidentes e os homicídios), definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma morte resultante de um ato executado voluntariamente por um indivíduo com a intenção de pôr fim à sua existência. E como se formula esse paradoxo? Segundo ele, há uma fortíssima correlação com a depressão, a qual, contudo não se verifica na realidade.

De onde vem esse paradoxo?

Podemos atribuir a origem desse paradoxo à diferença dos pontos de partida da clínica e da epidemiologia. Psiquiatras e psicólogos clínicos partem de populações de pessoas enfermas que chegaram aos seus cuidados, grande parte dos quais portadores de depressão. Já os epidemiologistas, bem como psiquiatras, psicólogos sociais e suicidólogos, partem da população geral. De qualquer modo, seja qual for a origem desse paradoxo, ele pode ser demonstrado a partir de algumas constatações.

O primeiro aspecto desse "paradoxo da depressão e suicídio" diz respeito à frequência desse dois fenômenos. As depressões constituem uma das mais frequentes formas de transtorno mental nos países industrializados, de alta ou média renda (entre os quais se encontra o Brasil). Um importante estudo recente (São Paulo Megacity, 2011) indicou que, dos entrevistados de uma amostra representativa dos adultos residentes na Região Metropolitana de São Paulo, 10% admitiram ter estado deprimidos no ano anterior. Não temos estudos comparativos realizados em outras cidades ou regiões do Brasil, porém, se projetarmos essa porcentagem para a população brasileira, teremos no mínimo uns 10 milhões de brasileiros deprimidos.

Já o suicídio, embora seja uma das principais causas de morte em todo o mundo, é um evento relativamente raro, medido não em termos de porcentagem (número de ocorrências por 100 pessoas), como a depressão, mas em número de casos por 100 mil pessoas. Em todo caso, o suicídio é um evento muito mais raro do que a depressão. Como comparação, no mesmo ano de 2011 houve, em todo o Brasil, pouco menos de 10 mil (9.852) casos de suicídio.

O segundo aspecto se refere ao sexo, ou gênero. Praticamente em todos os estudos epidemiológicos sobre transtornos mentais, realizados no Brasil ou no exterior, os transtornos depressivos são mais frequentes em mulheres do que em homens, numa proporção que varia de duas a quatro vezes, conforme o estudo. Ora, exatamente o contrário é revelado também pela maioria dos estudos epidemiológicos sobre o suicídio: em todas as partes do mundo onde isso foi estudado, o suicídio predomina em homens, também numa proporção de duas a cinco; a única exceção conhecida vem de certas regiões rurais da China, onde a taxa de suicídio feminina é levemente superior à masculina.
 
A realidade
Todavia, onde há fumaça deve haver (ou ter havido) fogo. E, se tanto se fala em associação entre suicídio e depressão, algo deve haver. E há. A maioria dos estudos científicos sobre a relação entre o suicídio e a depressão empregou e emprega o método da autópsia psicológica, que é um tipo de estudo retrospectivo que investiga, através de registros médicos e hospitalares do falecido e de entrevistas com seus familiares, amigos e colegas, a presença nele de algum tipo de transtorno ou doença mental. Trata-se de um método que, embora não totalmente isento de possíveis falhas, tem alta validade e fidedignidade, quando bem planejado e aplicado. É um tipo de estudo delicado, caro e que exige cuidadoso preparo de seus pesquisadores entrevistadores. Ademais, para que os dados de um mesmo estudo sejam comparáveis entre si, é preciso que o tempo entre o óbito e as entrevistas seja mais ou mesmo o mesmo. Em locais com baixa frequência de suicídio, isso se torna um óbice.

Em parte por esse motivo, os primeiros estudos que investigaram a relação entre suicídio e doenças mentais foram realizados na Europa, mais particularmente no Reino Unido, com poucos casos, e encontraram uma alta proporção (até 80%) de depressão nas populações estudadas. Esses dados confirmaram a impressão prévia dos psiquiatras clínicos e consolidaram a ideia de que realmente havia uma forte associação entre depressão e suicídio.

Contudo, à medida que o número de casos estudados aumentou e pesquisadores de outros países passaram a fazer mais estudos de autópsia psicológica, a proporção de casos de depressão entre pessoas que haviam se suicidado foi diminuindo. Em 2005 a OMS compilou todos os estudos de autópsia psicológica publicados em todo o mundo (mais de 16 mil casos) e constatou que, efetivamente, a depressão era o diagnóstico psiquiátrico mais frequentemente identificado em pessoas que haviam se suicidado. Não obstante, estava longe de ser encontrado na maioria dos casos: em pouco menos de apenas um terço (30%) das pessoas que haviam falecido por suicídio podia-se fazer o diagnóstico de alguma forma de depressão.

E o diagnóstico dos outros dois terços? Para surpresa de muitos (e satisfação de outros), o diagnóstico de alcoolismo foi o segundo mais frequentemente encontrado (em 18% dos casos), seguido pelo diagnóstico de esquizofrenia (em 14% dos casos). Juntos, a depressão, o alcoolismo e a esquizofrenia respondem por mais de 60% dos casos de suicídio.

Resta ainda quase um terço dos casos cujo diagnóstico se distribui entre diversas categorias, das quais a mais frequente é a de certos transtornos de personalidade que, embora sejam considerados transtornos mentais, não constituem exatamente uma doença mental.

É importante assinalar que em apenas cerca de 5% dos casos não foi possível fazer-se um diagnóstico retrospectivo de alguma forma de doença mental. Importante assinalar, ainda, que esse quadro geral foi observado tanto em estudos com populações de adultos e idosos quanto em estudos com suicídio de crianças e adolescentes.

Outras doenças

Além do peso da comorbidade - que, em medicina, designa a ocorrência concomitante de duas ou mais doenças na mesma pessoa, como hipertensão e diabetes em idosos, ou desnutrição e infecções em crianças -, existe a comorbidade com doenças físicas. Destas, as mais frequentemente associadas ao suicídio são aquelas crônicas, incuráveis, incapacitantes ou dolorosas, como certos cânceres, epilepsia, doença de Parkinson e doença de Alzheimer, em suas fases iniciais.

Voltando à questão do "paradoxo da depressão e suicídio", há outro elemento que contribui para mantê-lo, e que diz respeito ao fenômeno da comorbidade. Ocorre que depressão e alcoolismo têm uma elevada comorbidade e, quando as duas doenças estão presentes, o mais provável é que o diagnóstico de depressão seja registrado, em detrimento daquele do alcoolismo, o que inflaciona proporcionalmente o primeiro diagnóstico, reforçando, assim, a impressão inexata de uma associação mais forte entre depressão e suicídio.

Outro fator que contribui para dar a impressão de validade ao paradoxo decorre das tentativas de suicídio. Embora tanto o suicídio (óbito, logo mortalidade), quanto a tentativa de suicídio (morbidade) façam parte do processo suicida, são fenômenos bastante distintos em vários aspectos, não apenas em relação ao desfecho: morte no primeiro (logo, do campo da mortalidade) e sobrevivência no segundo (logo, da morbidade). O que acontece aqui é que as tentativas de suicídio - também associadas a quadros depressivos - são mais frequentes em mulheres jovens, que têm mais depressões que os homens.

A depressão está presente em cerca de 30% dos casos de suicídio. Recomendação da OMS é que pacientes com esse distúrbio sejam tratados pela rede básica de saúde e pelo Programa de Saúde da Família 


 (MARCOS SANTOS/USP IMAGENS
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A depressão está presente em cerca de 30% dos casos de suicídio. Recomendação da OMS é que pacientes com esse distúrbio sejam tratados pela rede básica de saúde e pelo Programa de Saúde da Família


O que fazer?

Confirmada por inúmeros estudos e análises estatísticas, resta a evidência de que os transtornos mentais, em geral, e a depressão, o alcoolismo e a esquizofrenia, em particular, são dos mais importantes fatores de risco para o suicídio. Isso não que dizer, em absoluto, que o suicídio seja uma doença; é, tão somente, um desfecho possível de determinadas doenças, particularmente se estas não forem bem tratadas. Tampouco quer dizer que a depressão (ou o alcoolismo, ou a esquizofrenia) cause o suicídio; tão somente que é um fator predisponente ao suicídio.

Independentemente da magnitude e da robustez da associação entre depressão e suicídio, permanece o fato de que a depressão pode ser uma doença grave o suficiente para merecer atendimento médico e psicológico. A mais recente recomendação da OMS a esse respeito afirma que a depressão (assim como outros nove transtornos psiquiátricos, entre os quais o alcoolismo e a esquizofrenia) pode ser tratada em locais de cuidados não especializados, o que, no Brasil, corresponde à rede básica de saúde e ao Programa de Saúde da Família.
A população espera que as autoridades sanitárias federais, estaduais e municipais tomem as providências necessárias para que isso se torne uma realidade acessível a todos e a todas. Os benefícios serão notados não apenas na melhoria do estado da saúde, mas também na redução das taxas de suicídio.

Depois da depressão, o alcoolismo aparece em estudo da OMS como a segunda maior causa de suicídios. É preciso que as autoridades federais, estaduais e municipais de saúde estejam mais atentas aos fatores que levam uma pessoa a tirar a própria vida

 (MARCOS SANTOS/USP IMAGENS)
Depois da depressão, o alcoolismo aparece em estudo da OMS como a segunda maior causa de suicídios. É preciso que as autoridades federais, estaduais e municipais de saúde estejam mais atentas aos fatores que levam uma pessoa a tirar a própria vida


. José Manoel Bertolote é professor voluntário da Faculdade de Medicina de Botucatu, da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e professor visitante do Instituto Australiano de Pesquisa e Prevenção do Suicídio - Griffith University, Brisbane, Austrália   

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