sábado, 29 de novembro de 2014

HQ é o que há - João Paulo

Novos álbuns em quadrinhos mostram a força da arte sequencial, com adaptações de clássicos, romance de guerra e até mesmo a breve história do golpe civil-militar de 1964


João Paulo
Estado de Minas : 29/11/2014



As histórias em quadrinhos têm história. Das revistas infantis às adaptações de clássicos, passando por obras feitas especialmente para a linguagem sequencial de texto e desenhos, hoje se constituem num setor de destaque da indústria editorial. Não se trata mais de um artifício ou de uma possibilidade, mas de um território próprio, cada vez mais autônomo, criativo e original. A nova safra de produções nacionais e internacionais que acaba de chegar às livrarias é um bom exemplo deste movimento.

O primeiro destaque fica para a Barricada, segmento ligado à Editora Boitempo dedicado especialmente aos quadrinhos. Com conselho editorial formado por Luís Gê, Ronaldo Bressane, Rafael Campos e Gilberto Maringoni, o selo, como o nome indica, está voltado para títulos que tenham conteúdo libertário. Um bom exemplo desse projeto (que segue a própria linha da editora-mãe, responsável pela melhor edição das obras de Karl Marx no Brasil) é o álbum Último aviso, da feminista alemã Franziska Becker, lançado este ano.

O mais recente título da Barricada é o parrudo álbum Cânone gráfico – Clássicos da literatura universal em quadrinhos, organizado por Russ Kick. Trata-se, na verdade, do primeiro volume de uma trilogia, cobrindo o período que vai da Epopeia de Gilgamesh, uma das mais antigas obras literárias da humanidade, às Ligações perigosas, de Chordelos de Laclos, romance epistolar do século 18. Entre uma obra e outra, o antologista percorreu séculos, formas literárias, estilos e continentes.

O livro reúne 51 obras que ganharam tratamento em quadrinhos por alguns dos mais conhecidos nomes do gênero, como Robert Crumb, Will Eisner, Hunt Emerson, Peter Kuper e Seymour Chwat, entre outros. Há um pouco de tudo: poemas (entre eles dois sonetos de Shakespeare), epopeias, peças de teatro, romances, livros religiosos, tragédias, comédias, contos, textos filosóficos, diários e histórias infantis. A variedade de formas é um estímulo a mais para os quadrinistas e o resultado traz uma pletora de soluções gráficas originais.

Entre as obras clássicas adaptadas por quadrinistas selecionados por Russ Kick estão Ilíada, de Homero, por Kate Dixon; Medeia, de Eurípides, em adaptação de Tori McKenna; Tao te ching, de Lao-tsé, por Fred van Lente e Ryan Dunlavey; Apocalipse, por Rick Geary; Poemas, de Rumi, por Michael Green; A divina comédia, de Dante, por Seymour Chwast; o livro sagrado quiche Popol Vuh, por Roberta Gregory; Rei Lear, de Shakespeare, por Ian Pollock; Dom Quixote, de Cervantes, por Will Eisner; e Diário londrino, de James Boswell, por Robert Crumb.

O antologista escolheu um capítulo ou parte de cada livro adaptado, que ganha uma introdução com breve explicação da obra original. Geralmente, as versões em quadrinhos de obras literárias se destacam pela busca de tradução da história em outra técnica, com atenção sobretudo ao texto. No caso do Cânone gráfico, o cuidado maior é com o desenho. Não se trata de uma mera “transcriação” de um registro em outro (da literatura para os quadrinhos), mas de uma colaboração entre artistas de épocas e expressões distintas.

É um álbum que reúne criatividade espantosa para traduzir obras tão distintas. Há histórias em quadrinhos tradicionais, experimentos gráficos, pranchas coloridas, desenhos sem texto, estética underground, emulação da arte oriental clássica, abstrações, uso do humor, da paródia e de citações da história da arte. Um catálogo completo da arte dos quadrinhos a serviço de obras-primas da literatura.

Devastação

Outro lançamento recente no mercado de graphic novels é Kapputt, obra de Curzio Malaparte, com adaptação e arte de Guazzelli (WMF Martins Fontes). O ilustrador e quadrinista brasileiro tinha um desafio e tanto pela frente. A obra do jornalista e escritor italiano é um dos clássicos sobre a Segunda Guerra e a representação do nazismo e do fascismo. Malaparte é neorrealista, mas não como os diretores de cinema. É um tipo peculiar de escritor, que mescla realidade e ficção com técnicas de reportagem, com o interesse em flagrar o mal e a miséria, fazendo uso de um profundo senso metafórico. Kapputt é por isso um livro ao mesmo tempo real a simbólico.

Guazzelli captou bem o universo do escritor. Exacerbou a presença dos animais em sua obra, criando visões disformes e técnicas próprias para cada capítulo (todos têm nome de um bicho ou inseto). O resultado é devastador: ao mesmo tempo um retrato de época e um espelho da maldade humana, em que há muitos traços ainda hoje reconhecíveis. Não se trata do horror do nazifascismo, mas do pendor do homem ao mal. O tom dos desenhos é escuro, há poucas cores (aquarelas esmaecidas como memórias vagas) e o texto é quase uma legenda exata para a atmosfera destacada.

A violência ronda cada quadro. Os cenários são sempre lúgubres, as cidades parecem adormecidas, os sons mais ouvidos são de tiros. Um trem atravessa a paisagem. Sabe-se, ou intui-se, o que trazem em seus vagões de carga. Ao fim, um cadáver balança em um galho. Não é uma morte isolada, mas um alerta do que somos capazes de fazer e da indiferença que muitas vezes nos faz virar o rosto a outras violências, menos explícitas, mas igualmente próximas.
Outro clássico marcado pela proximidade com o horror, recentemente lançado em quadrinhos no Brasil, foi Coração das trevas, de Joseph Conrad, com desenhos de Catherine Anyango e roteiro de David Zane Mirowitz (Editora Veneta). O livro é mais conhecido por sua adaptação para o cinema, Apocalipse now, dirigida por Francis Ford Coppola. Aqui, também em função da atmosfera – de pesadelo e indistinção geográfica sobre onde seria de fato o “coração das trevas” – os desenhos são sombrios e os enquadramentos cinematográficos ora miram nos detalhes, ora se afastam da cena como se não a compreendesse.
O roteirista funde habilmente a narrativa com experiências do autor no Congo Belga, além de deixar aberta a trilha da imaginação para outras operações de rapina, que ainda hoje marcam o contato com o continente africano. Sem falar do racismo presente na narração conradiana, um traço de época, mas ainda vigente nas sombras da intolerância contemporânea. Sem falar da sedução algo inexplicável pelo personagem central um contrabandista de marfim. A história começa e termina nas trevas. O horror de ontem talvez não esteja tão distante do atual. Nem seus funcionários devotados menos cruéis – e admirados no cumprimento de suas metas. 

Ditadura

Lançamento recente que merece destaque é O golpe de 64, de Oscar Pillagallo e Rafael Campos Rocha (Editora Três Estrelas). Como se trata de conteúdo histórico, o maior mérito é a correção das informações. Com caráter quase didático – é um bom material de apoio para professores –, o livro se concentra mais no golpe. Dos seis capítulos, apenas o último é dedicado à ditadura e suas consequências, ainda assim de maneira mais sumária. O objetivo é traçar a gênese da quartelada de março de 1964.

O interesse dos autores foi apresentar os fatos políticos que antecederam o golpe civil-militar, retrocedendo ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. A história segue com as tentativas de inviabilização do governo JK, com a pressão conservadora em torno de João Goulart, a resistência, o clima de conspiração na caserna e a atmosfera cultural do período. Pilagallo destaca os principais personagens e suas falas: as legendas e balões com dizeres são quase uma antologia de momentos marcantes do período, pela voz de seus atores mais importantes.

O golpe de 64 é quase um álbum paradidático, sobretudo pela costura sucinta dos fatos e correta seleção de interpretações mais canônicas. O desenho de Rafael Campos Rocha oferece um bom suporte para o roteiro, sobretudo pela visão sagazmente caricata das personagens, mas não chega conduzir a narrativa nem dá a ela uma dinâmica própria. A se destacar a inspiração ética que comanda a estética: a esquerda é sempre digna, os milicos uns brutamontes. Ponto para Rafael. A dupla deveria dar continuidade ao projeto, numa trilogia que abarcasse o período da ditadura e, ao fim, trouxesse a história da redemocratização do Brasil. Os leitores jovens merecem e os autores devem estar bem afiados depois do primeiro desafio. 

 CÂNONE GRÁFICO: CLÁSSICOS DA LITERATURA UNIVERSAL EM QUADRINHOS, VOL. 1
. Organizado por Russ Kirk
. Editrora Barricada, 456 páginas, R$ 118

KAPUTT
. De Curzio Malaparte, adaptação e arte de Guazzelli
. Editora WMF Martins Fontes, 184 páginas, R$ 59

CORAÇÃO DAS TREVAS
. De Joseph Conrad, adaptação de Catherine Anyango e David Zane Mairowitz
. Editora Veneta, 128 páginas, R$ 39,90

O GOLPE DE 64
. De Oscar Pilagallo e Rafael Campos Rocha
. Editora Três Estrelas, 120 páginas, R$ 34,90

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