terça-feira, 30 de outubro de 2012

DENISE FRAGA


VIDA REAL




Vale trave

Intenção deveria contar pontos, mas futebol se mede pelos gols assim como audiência, pelo Ibope

Sou flamenguista de nascença, mas palmeirense pelo coração. Gosto de futebol. Meu marido é palmeirense roxo e meus filhos ainda ostentam com orgulho a camisa do Palestra. Não tivemos muitas alegrias na última década, mas, neste ano, nosso time nos deu a Copa do Brasil e garantiu nossa vaga na Libertadores.
Fazia tempo que não nos inflamávamos tanto na arquibancada nem víamos nosso time jogar bonito assim. Estava um ano quente.
Mas, por incrível que pareça, corremos o perigo de passar o Natal amargando 2013 na segunda divisão do Campeonato Brasileiro. O time até brilhou, mas a bola simplesmente não entrou.
Um poderoso sentimento de injustiça cresce em meu peito quando penso nas inúmeras bolas na trave que presenciei. Em minha relativista visão feminina do mundo pão, pão, queijo, queijo do futebol já tentei tecer várias teses a respeito da importância da bola na trave, mas sempre me olham como se eu fosse mulherzinha.
É óbvio que é muito mais difícil acertar nas traves e no travessão do que no vão de sete metros. Não valendo mais do que um gol, deveria, no mínimo, aumentar o número de pontos de times como o meu, à beira do precipício. Mas bola na trave não é gol. Bola na trave é intenção. E, como dizia minha avó, de boa intenção o inferno está cheio.
Futebol se mede por gols, audiência, pelo Ibope, o valor das coisas, por seu preço e meu filho, mesmo devorando livros, só passa de ano se tirar boas notas. São regras e parâmetros aos quais fomos nos acostumando para tentar ter a vida nos trilhos.
Da última vez, saí do estádio pensando em um texto que li de Maria Rita Kehl no qual ela dizia que nossa biografia não deveria se basear somente em nossos feitos. Às vezes, nossos desejos e intenções nos configuram de forma muito mais plena. Seria nossa "biografia em baixo-relevo". Mas como exigir desse mundo objetivo em que vivemos tamanha delicadeza?
Continuamos por aí nos afogando em números e perdendo nossos "quases" que tanto têm a dizer. Nosso time talvez caia para a segunda divisão pela segunda vez.
Na primeira vez, os meninos eram pequenos e se firmaram palmeirenses gritando muitos gols, sem saber que torciam para um time rebaixado. Agora não poderemos mais enganá-los: já sabem que a vida é feita de números. Mas, mesmo na segunda, continuaremos na arquibancada contando nossos gols, aos quais eu, eterna e secretamente, agregarei as bolas na trave e os passes perfeitos.
DENISE FRAGA é atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo)

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