quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Operação Cracolândia - Gustavo Fioratti


Operação Cracolândia
Região da Luz vira palco de ações artísticas empreendidas por grupos de teatro, dança e grafite que se relacionam com o espaço público
Letícia Moreira - 9.jun.12/Folhapress
Cena de "Bom Retiro 958 Metros", do Teatro da Vertigem, inspirada em intervenção do grupo realizada na região da cracolândia
Cena de "Bom Retiro 958 Metros", do Teatro da Vertigem, inspirada em intervenção do grupo realizada na região da cracolândia
GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULOEm setembro e outubro, o espetáculo "Piratas de Galocha" encampou uma ação artística desbravadora pelo bairro Campos Elíseos, no centro de São Paulo -mais especificamente pela região apelidada de cracolândia.
A peça (que no dia 15 volta à porta da Estação Júlio Prestes) é apresentada às 20h, horário em que o tráfico e o uso de crack fervem pelo bairro. Enquanto esteve em cartaz, atores, público e usuários de drogas dividiram ali um mesmo cenário: a rua.
Houve uma ocasião especialmente tensa na temporada, conta o diretor Rafael Presto, 26. Dez intérpretes atuavam para uma plateia com cerca de 20 pessoas, e uma "feira" se formou bem no meio do espetáculo.
"Feira" é o nome dado a grupos de usuários que se deslocam atrás de traficantes. São dezenas deles, apinhando-se como zumbis.
Os "Piratas de Galocha" não estão sozinhos na tentativa de estabelecer uma troca entre artes e o bairro cheio de problemas, alvo de projeto de reurbanização da prefeitura chamado "Nova Luz", cujo edital foi lançado em 2009.
Outros grupos de teatro e de dança e artistas plásticos aportaram ali para experimentar o que tem sido tratado até então como um campo minado.
Ao divulgar que o grupo Os Satyros pretende deixar sua sede na praça Roosevelt por causa da alta nos aluguéis, o ator e diretor Ivam Cabral afirmou que está de olho na Cracolândia. Quer se avizinhar ao grupo Pessoal do Faroeste, que em fevereiro deste ano abriu novo espaço na rua do Triunfo, hoje um dos pontos mais críticos da região da Luz.
As "feiras" são frequentes na porta do teatro, onde está sendo realizada uma mostra.
A movimentação de usuários e traficantes afasta o público, diz Paulo Faria, diretor da companhia, "mas queremos trazer as pessoas para que elas vejam o que é a cracolândia", explica.
O contato com o espaço público é defendido por esses artistas como alternativa às ações policiais. Não é mera ação beneficente: eles também se alimentam dos conflitos no entorno para elaborar suas pesquisas de linguagem.
Na próxima montagem do grupo, por exemplo, uma cena de faroeste vai ocupar um trecho da rua do Triunfo.
A peça recuperará histórias da região, que nos anos 1970 foi reduto de produtoras de cinema. O quarteirão era conhecido como Boca do Lixo, ou Quadrilátero do Pecado, um lugar onde "prostitutas viravam atrizes e atrizes viravam prostitutas", diz Farias.
TESOURO
Em junho do ano passado, o grupo Teatro da Vertigem já havia criado, num terreno baldio ali perto, a intervenção "Cidade Submersa", com objetos enterrados sob destroços de um edifício demolido.
A intervenção fez parte da pesquisa do espetáculo "Bom Retiro 958 Metros". Em uma das cenas da peça, hoje em cartaz na região da Luz e do Bom Retiro, um usuário interage com uma pedra de crack gigante.
O grupo é uma das principais influências dos "Piratas de Galocha", diz Presto. O espetáculo teve a orientação de Antonio Araújo, diretor do Vertigem.
Para Presto, o trabalho na cracolândia funde ação política e pesquisa estética.
"Não pretendemos dizer como a região deve ser reorganizada", explica. "Apenas invadimos o espaço com uma ação teatral em que a rua passa a fazer parte da dramaturgia."

    Projeto filma balé acidental com o crack
    Bailarinas dizem que não se intimidaram com a presença de usuários, que se aproximaram e dançaram com elas
    Grafiteiro Zezão conta que alugou imóvel na região da Luz e contratou usuário de crack como assistente
    DE SÃO PAULOAssim como a peça "Piratas de Galocha", outros projetos na cracolândia buscam aproximar-se do cenário estabelecido na região, bem como da população local, usuários de crack incluídos.
    Sem se intimidar com a presença de meninos que fumavam em pequenos cachimbos, Sissi Betina e Kalisy Cabeda, do grupo de dança Coletivo Âmago, escolheram o interior de um túnel no centro para uma intervenção.
    Já era madrugada, o túnel estava vazio, e ali as duas bailarinas começaram a dançar, num improviso. A experiência lhes rendeu "um momento único", diz Betina.
    Um dos meninos que usavam crack estranhou a "invasão". "Ele estava agitado", diz Betina. Mas o outro, ao compreender que se tratava de um balé ao ar livre, começou a dançar em sincronia com as duas artistas.
    "Quando todos começaram a dançar, o primeiro garoto se acalmou também", conta.
    Tudo isso foi registrado pelo videomaker Daniel Eizirik e pode ser visto no YouTube.
    Em maio, a arquiteta Nana Maiolini também filmou na região da Luz ação performática das bailarinas Luiza Cardinalli, Luiza Moraes, Adriana Nunes e Anna Luiza.
    O projeto foi concebido "como comentário irônico diante de um espaço em demolição em um lugar povoado por evidentes conflitos humanos", diz Maiolini.
    Com o título "Buracos Negros", o curta que registra a ação será levado em março de 2013 a uma exposição coletiva no Museu de Arte do Rio de Janeiro.
    Um dos grafiteiros mais valorizados da atualidade, o Zezão, conhecido por pintar as paredes da rede de esgoto da cidade, alugou um imóvel na Luz para seu ateliê.
    Ele grafita na região desde os anos 1990 e conta que contratou um usuário de crack, que conheceu no bairro, como assistente. "Ele se chama Índio e tem comportamento exemplar", conta o artista. (GUSTAVO FIORATTI)

      Para urbanistas, artistas inspiram direito à cidade
      DE SÃO PAULOAções culturais que ocupam o espaço público são sempre bem-vindas, defende o diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, Valter Caldana.
      "Hoje, a cidade faz cada vez mais parte do nosso cotidiano. Deixaremos de viver em casa para viver mais tempo na rua. O século 21 é o século do espaço público", defende o urbanista.
      A retomada de áreas degradados não é um fenômeno exclusivo de São Paulo. Processos similares ocorreram em toda a Europa. "Mas não com as dimensões trágicas da cracolândia", diz ele.
      O urbanista considera que situações em Nova York nos anos 1980 se assemelham mais ao que houve aqui. "E os movimentos culturais foram atuantes lá também", diz.
      A degradação do espaço urbano acontece por deficiência do uso, explica Caldana. "Se há apenas um tipo de uso [só escritórios, por exemplo], esse lugar passa a ter problemas."
      O urbanista aprova a criação de um polo cultural na região da Luz pelo Estado, mas aponta que equipamentos como a Sala São Paulo e a Pinacoteca carecem de um projeto de integração. "Falta um elemento ali, que é o uso do espaço público. Eu vou à Sala São Paulo, mas saio dali e vou embora, não fico no bairro", explica.
      FESTAS
      Segundo Ermínia Maricato, urbanista da FAU-USP, ações culturais podem incluir a realização de festas, como as que o núcleo Voodoohop tem produzido na avenida São João e no Minhocão.
      Maricato lembra que "estamos em um momento em que o espaço tornou-se mercadoria". "Cada metro hoje é disputado", diz. "A arte tem a capacidade de lembrar que temos direito à cidade", diz. (GF)

        Obra do Complexo Cultural Luz está prevista para 2013
        Artistas criticam projetos do Estado na região; secretaria diz que levou cerca de 800 mil pessoas ao bairro entre janeiro e outubro
        DE SÃO PAULOAo propor uma relação direta entre produção artística e espaço urbano, o diretor do grupo Pessoal do Faroeste, Paulo Faria, critica as ações do Estado e da prefeitura na região.
        "Não queremos uma Nova Luz. Queremos a Luz, simplesmente", sintetiza.
        Paulo defende que os moradores da região, muitos ameaçados com ações de despejo por causa do programa de desapropriações previsto no projeto da Nova Luz, sejam incluídos nos projetos culturais e nos debates de reforma urbana.
        "A arquitetura da Sala São Paulo não inclui essa população", julga ele. "É um lugar para outro público, que passa pela região sem estabelecer relação com ela."
        Em resposta, a Secretaria Estadual de Cultura diz que equipamentos culturais como a Pinacoteca, a Estação Pinacoteca e a Sala São Paulo ocuparam prédios históricos, o que limita alguns tipos de intervenção.
        INVESTIMENTOS
        Além da Sala São Paulo (inaugurada em 1999) e da Pinacoteca (reaberta ao público em 1998), a secretaria pretende construir na região o Complexo Cultural Luz, com projeto dos arquitetos suíços Herzog & De Meuron.
        O edifício tem "como uma de suas características fundamentais a relação com o entorno", explica a secretaria, por e-mail.
        O projeto, também chamado de Teatro da Dança, está em pauta desde 2009 e vai ocupar o quarteirão onde antes era o endereço da rodoviária da cidade e, depois, de um shopping, que foi demolido em 2010.
        O edital de licitação para a escolha da empresa gerenciadora da obra foi lançado no dia 2 de novembro e deverá ser concluído até o fim deste ano.
        A previsão é de que a obra seja iniciada no segundo semestre de 2013. O custo estimado é de R$ 400 milhões.
        Ainda segundo a secretaria, os equipamentos culturais mantidos hoje pelo Estado na região da Luz e do Bom Retiro mantêm atividades voltadas ao morador da região, às escolas e às organizações comunitárias.
        Entre janeiro e outubro deste ano, estes equipamentos trouxeram ao bairro um público estimado em 800 mil pessoas, divulga. Também fazem parte do circuito o Museu da Língua Portuguesa e a Escola de Música do Estado de São Paulo. (GF)

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