segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A atriz, uma personagem. o cenário



 O Globo - 23/12/2012


Destaque no teatro, no cinema e na TV em 2012, a atriz Mariana Lima posa como uma diva contemporânea na cidade das artes





Mariana Lima pega o isqueiro lilás com a mão direita, acende um Marlboro light e pede um tempinho para pensar. Depois diz que arte, na sua cabeça, é uma coisa a ser definida em palavras aleatórias: coragem, trabalho, loucura, comprometimento e paixão. Risco, acima de todas as outras coisas. Ela está metida em um longo vestido preto e caminha pela área central da Cidade das Artes, projeto iniciado por Cesar Maia como Cidade da Música, em 2002, e que agora — depois de desprezado, abandonado, renascido do quinto dos infernos, rebatizado e retrabalhado em sua arquitetura espetacular — está prestes a ser inaugurado definitivamente. Aatriz é mais ou menos como o prédio que a abriga, desenhado pelo francês Christian de Portzamparc: desconcertante, assimétrica, arrebatadora, agressiva, moderna, meio maluca e incrivelmente bela — uma diva.


Ainda que tire de letra a tarefa de posar no papel de diva contemporânea das artes, Mariana anda disposta a deixar rótulos para trás: quer ser simplesmente uma artista. Nem moderna demais, nem maluca demais, nem dura demais. A artista que Mariana quer ser é o que o público pôde ver durante todo o ano de 2012, um ano que lhe deu muito mais visibilidade. Uma atriz que fez cinema (no belo “Sudoeste”, de Eduardo Nunes, com seus tempos mortos e silêncios filmados em preto e branco); que fez teatro, dividindo o palco com Drica Morais em “A primeira vista” (peça em que vive uma emburacada roqueira, patrocinada pelo texto subversivo de Daniel MacIvor e pela direção do marido Enrique Diaz); que fará o especial de fim de ano da Globo ao lado de Fernanda Montenegro (dirigido por Jorge Furtado); e que fechou a tampa de um bom ano como uma das pacientes de “Sessão de terapia”, a série dirigida por Selton Mello e exibida pelo canal GNT. Fechou em termos: Ana, sua personagem, ainda não teve alta.


— Na próxima temporada eu estarei de volta — avisa Mariana, que tem 40 anos, faz terapia desde os 13 e, na vida pessoal, ainda não se vê em condições de ter alta. — Estou em busca do equilíbrio. Na vida toda, especialmente na carreira. As pessoas tendem a achar que a grande arte é impossível na TV, mas gente como Guel Arraes, Amora Mautner, Selton e muitos outros provam que isso é possível. Eu quero conseguir um espaço nessa TV, uma TV corajosa e inovadora. Quero tornar minha vida mais viável.



A vida viável de Mariana pode ser traduzida como uma mistura de estabilidade, contracheque, dinheiro no banco, carteira assinada, sonhos bons, conforto para as duas filhas (Elena, de 8 anos, e Antônia, de 4), uns dias vagabundeando em São Miguel dos Milagres, caipirinha antes do almoço, projetos bacanas com pessoas bacanas, novela das oito, série na TV, filmes do Claudio Assis, Proust na cabeceira da cama, mangás de Osamu Tezuka (“Uma descoberta!”), Tennessee Williams para estudar de noite, Aretha Franklin várias vezes ao dia, sossego, tempo pra namorar o marido e — se Deus for mesmo o sujeito maneiro que dizem que é — patrocínio para montar o que quiser no teatro.



atriz é cria do Teatro da Vertigem com Antônio Araújo — uma daquelas experiências que, depois que invadem, permanecem no sangue da gente para sempre. Mais que um grupo de teatro, o Vertigem sempre foi uma radical proposta de vida. Lá ela fez “O Livro de Jó” (encenado em hospitais públicos) e “Apocalipese 1,11” (montado em prisões). Experiências arrebatadoras. Mariana se acostumou a ir ao fundo do poço para tirar sua arte de lá. Em uma cena de “Apocalipse”, um dos atores urinava sobre seu corpo nu a cada apresentação. Mariana bebia, fumava, se machucava, discutia, chorava, transava, adoecia e vivia o teatro.

— Ali não tinha meio-termo, era ou tudo ou nada. Para mim era tudo — resume.

A entrega continuou a mesma em “A paixão segundo G.H.”, baseada no livro homônimo de Clarice Lispector, e “A gaivota”, de Tchecov — os dois espetáculos já sob a direção de Enrique Diaz, na Companhia dos Atores. No cinema, sempre fez opções por filmes autorais, como “Árido movie” (de Lírio Ferreira) ou “A cadeira do pai” (de Luciano Moura), em que contracena com Wagner Moura e que será lançado no início de 2013. Sempre bancou seus projetos, nunca teve facilidade. Mesmo na TV, ganhou espaço em novelas atípicas, como “Cordel encantado”, que tinha a levada cinematográfica da direção de Amora Mautner (leia-se “Avenida Brasil”).


A Cidade das Artes é um show de superlativos. Está construída num terreno de 95 mil metros quadrados na bifurcação das avenidas Ayrton Senna (que liga Jacarepaguá à Barra) e das Américas (que liga o Recreio ao início da Barra). É um lugar cercado por prédios altos, condomínios de luxo, shoppings de todos os estilos e carros. Antes de ser ocupado pelo prédio desenhado por Portzamparc, o espaço era conhecido como Cebolão e funcionava como uma rotatória para o trânsito. Depois veio o projeto de Cesar Maia, a Cidade da Música, o dinheiro escorrido pelo ralo (estima-se que cerca de R$ 600 milhões foram gastos até agora com a obra), as polêmicas, uma inauguração meia-bomba há quatro anos e o abandono. Isso mudou.

Quando abrir as portas no início de janeiro, para sessões de “Rock in Rio — O Musical”, no estilo soft opening, a Cidade das Artes já estará com outra cara. Apenas a sala principal, uma lanchonete e uma loja temática estarão à disposição do público, mas é o suficiente para se ter uma ideia de tudo. O musical vai servir como teste para o funcionamento do espaço: bilheteria, maquinaria, circulação, estacionamento, horários e equipamentos, alguns deles na caixa há seis anos. Um começo com os números impactantes do espaço: 25 atores em cena, 50 canções e um investimento de R$ 12 milhões. É — à maneira do jingle do festival — como se a vida começasse agora. Mas a inauguração para valer será em março.

Aí o público poderá desfrutar da sala principal com 1.800 lugares (com, dizem, uma acústica perfeita), uma sala menor para 800 pessoas, uma sala de concertos, três cinemas, 13 salas de aula, 13 salas de ensaio, uma cafeteria, um restaurante, um bar, uma galeria de arte e 750 vagas no estacionamento. Sem contar o espetáculo de circular em meio aos imensos vãos de concreto, subir pelas niemeyerianas rampas de acesso ou simplesmente ficar de bobeira pelas diversas arquibancadas distribuídas no lugar e se deslumbrar com o arrojado projeto arquitetônico.

— Só agora em dezembro, quando for publicado o estatuto, poderei pensar nas contratações e concretizar a programação. Estou muito animado — diz Emilio Kalil, presidente da recém-criada Fundação Cidade das Artes, que administrará o espaço. — Não é uma casa de espetáculos, é um espaço múltiplo das artes. Não concorro com as casas de shows da Barra. Meu negócio é outro. Quero grandes espetáculos, grandes projetos, grandes artistas. A Mariana Lima, que eu adoro, seria sempre bem-vinda, claro.

Mariana — que já foi faxineira em Nova York e ainda comemora o sucesso da temporada popular de seu último espetáculo no Sesc São João de Meriti, na Baixada Fluminense — está sempre aberta a experimentar.

— É um lugar incrível que, a princípio, não tem nada a ver comigo — explica a atriz paulistana, moradora de um apartamento classe média em Laranjeiras.— Mas sempre fico impressionada quando percebo que podem erguer um universo tão diferente do meu universo e que, ao mesmo tempo, pode ser tão belo e impactante. E tem autoria. Gosto de ver quando as pessoas se jogam de cabeça naquilo que acreditam. Se jogar de cabeça é, para Mariana, condição fundamental para qualquer ator. Na época do Vertigem chegava a dormir nos espaços inóspitos onde os espetáculos foram encenados. Já viu estupros, rebelião em presídio e conviveu com prostituta. Para interpretar Grace, a alcoólatra de “Pterodátilos”, foi fundo nas experiências. A peça — em que contracenava com Marco Nanini — lhe deu um Prêmio Shell.

— Mariana é um vulcão. Ela é, de fato, a atriz que toda atriz sonha ser. Se fosse uma música, seria “Darklands”, do Jesus and Mary Chain: “I’m going to the darklands to talk in rhyme with my chaotic soul” — resume Felipe Hirsch, diretor do espetáculo, para depois acrescentar. — Mas Mariana também seria uma marcha de carnaval apaixonada, Carmem Miranda cantando “I like you very much”.

Entre a depressão e a euforia carnavalizada, Mariana se equilibra do jeito que dá. A atriz fala abertamente sobre drogas (“Quando você é dominado por aquilo, viciada, é uma prisão. Mas quando te amplia a percepção da realidade e te deixa mais tolerante e amoroso, é libertador”), sobre amor (“O amor que deixa amar mais, quando não é poder sobre o outro, liberta também”) e sobre sexo (“O sexo é o grande libertador. Toda travação sexual amarga o indivíduo”). Por fim, diz que a maternidade a libertou do egoísmo e colocou o pingo definitivo nos seus “is”:

— Deixei de ser o centro do universo, cada vez mais eu tenho que levar o leite das crianças para casa — explica, para depois emendar. — Mas eu ainda gosto de me imaginar envelhecendo como uma daquelas velhas malucas que bebem, fumam maconha e cagam pra todo o resto.  


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