sábado, 1 de dezembro de 2012

DIREITOS HUMANOS » Histórias para não esquecer - Sandra Kiefer‏

Caravana da Anistia recolhe em BH depoimentos de violações de direitos durante o regime militar. Desde a criação, no governo FHC, a comissão já recebeu 72 mil requerimentos 

Sandra Kiefer
Estado de Minas: 01/12/2012 
Cada um dos 25 processos de militantes mineiros analisados na Caravana da Anistia, que veio ontem a Belo Horizonte, tem história suficiente para um livro. Quando os representantes da Comissão da Anistia pediram desculpas, em nome do Estado brasileiro, pelas violações de direito cometidas contra os anistiados políticos, transtornos causados a suas famílias, tempo passado no exílio e na clandestinidade, torturas sofridas na pele, perda de emprego e identidade, sofrimento e dor, foi possível perceber a sensação de alívio no rosto da plateia.
A comissão, que se reuniu na Faculdade de Direito da UFMG, já concedeu anistia política e reparação econômica em 50 mil dos 75 mil processos julgado no país e ontem apreciou mais 25 casos. Um deles é o requerimento de Arnaldo Cardoso Rocha, ex-militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e que lutou ao lado de Marighella. Quem compareceu representando o filho, dado como morto aos 25 anos, foi a mãe, Anette Cardoso Rocha, de 91 anos. O pai, João de Deus Rocha, comunista histórico em Minas, está debilitado depois de sofrer uma queda aos 94 anos. Os dois, que moram na mesma casa onde nasceu o filho, no Bairro Sion, não pediam reparação econômica. Queriam apenas ouvir um pedido de desculpas formal, em nome do filho, o que foi feito ontem, em clima de muita emoção.
Condenado pela ditadura militar a duas prisões perpétuas mais 64 anos de cadeia, o advogado mineiro José Roberto Rezende foi representado in memoriam pela ex-mulher, a professora de direito da Universidade de Brasília (UNB), Beatriz Vargas Gonçalves de Rezende, de 51 anos. “Não me interessa qual vai ser o valor da reparação concedida pela Comissão da Anistia. Sua finalidade é atenuar as perdas morais e materiais, no sentido de assumir politicamente a culpa pelos erros do passado. Só se faz isso pagando uma espécie de custo ditadura”, afirmou ela, que veio a BH na companhia dos filhos José Roberto, 21 anos, estudante de geografia, e de João Carlos, de 18, que está terminando o ensino médio .
Bia Vargas perdeu o marido de enfarto em 2000, quanto ele tinha 58 anos. Os filhos do casal tinham 9 anos e 6 anos, além de Ronald, filho do primeiro casamento. Militante da Colina, VPR e Var-Palmares, o advogado enfrentou oito anos e seis meses de prisão, onde foi torturado. Somente ao deixar a cadeia, conseguiu concluir o curso de direito na UFMG e se tornou militante do movimento dos sem-casa. “Ele se tonou ícone em Belo Horizonte e a OAB tornou-se parceira da Caravana da Anistia por causa da independência que José Roberto demonstrava como advogado. Ele seria nomeado primeiro ouvidor de polícia de Minas, uma função esquecida no tempo, que exercia o controle externo da atividade policial”, comentou Nilmário Miranda, membro da Comissão da Anistia.
Demitido por greve Já Maria Helena de Lacerda Godinho, a Lena, de 68 anos, pediu a palavra para falar em nome do marido, Renato Godinho Navarro, 69 anos, ex-militante da Ação Política (AP) e ex-reitor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) por dois mandatos. Na noite de 24 para 25 de outubro, Godinho sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) e uma trombose. Aos poucos, foi recuperando as funções, saiu andando do Sarah Kubitschek, se tornou pintor e já participou de exposições de arte. “Ele hoje já fala palavras e formula frases. Eu me comunico bem com ele. Estamos juntos há 42 anos. Eu me casei com Renato no religioso, na clandestinidade, e depois que saímos da prisão, também no civil. Tornaria a me casar outras vezes, desde que fosse com ele”, conta ela, que conheceu o marido nos movimentos cristãos.
Com três filhos, Lena e Renato assumiram como filho mais velho a criança gerada na prisão pela irmã dela e por um colega. “Após sair da cadeia, nós nos desligamos da militância político-partidária, pois queríamos ter filhos. Fomos ser professores”, conta. Em 1979, depois de ser convidado a dar aulas na PUC de Coronel Fabriciano, Renato foi demitido pela faculdade por participar de uma greve, mesmo sendo delegado sindical. “Ele está pedindo agora a recomposição do salário dele na PUC como se estivesse trabalhando até hoje”, informou ela. Na década de 1990, depois de passar em primeiro lugar no concurso público para dar aulas na Ufop, Renato apresentou a tese de doutorado. Apesar de termos nos desligado da militância, nunca desistimos, que defendia não existir ainda democracia plena no Brasil.”

Saiba mais
Comissão da Anistia
Criada em 2001, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, a Comissão da Anistia tem por finalidade apreciar os pedidos de reconhecimento do direito à anistia e reparação econômica dos 475 brasileiros mortos e desaparecidos durante o regime militar, além dos 72 mil requerimentos feitos até agora exigindo o reconhecimento de algum tipo de lesão grave ao direito por perseguição política. As indenizações podem ser de prestação mensal continuada, caso haja comprovação de que o vínculo de trabalho foi interrompido em função da militância política, ou de uma vez, com limite máximo de R$ 100 mil. Cada ano de perseguição política comprovada dá direito a 30 salários correspondentes à função exercida na época, calculada em valores atuais.  Para uma pessoa ser anistiada, é necessário apresentar requerimento à Comissão da Anistia, com apresentação anterior de processo.  

Protesto 
Estado de Minas: 01/12/2012 
Um homem acorrentado e com uma mordaça interrompeu a sessão da Comissão da Anistia. O protesto foi organizado pelos Serpentes Negras, grupo de ex-policiais militares negros, expulsos da corporação por reivindicarem promoções e simpatizarem com os movimentos de esquerda, contrários ao governo militar que comandou o Brasil depois do golpe de 1964. De acordo com um dos integrantes, João Martins Gualberto, o movimento começou com o nome de Semente Negra, no início da década de 1970, inspirado nos Panteras Negras, dos Estados Unidos. Chegou a contar com 300 militares, mas foi dizimado pela repressão na década de 1980. Gualberto acredita que os processos do grupo não são analisados por haver uma má vontade da Comissão de Anistia. “A comissão promove anistia dos bacanas e dos notáveis de fato. A Comissão de Anistia do governo federal parece mariposa. Vive sempre em busca do brilho, das luzes da ribalta. Desconhece o valor e a dignidade da luz da justiça”, afirma o manifesto distribuído na sessão de ontem. De acordo com João Martins Gualberto, 21 processos estão em análise e nove militares teriam sido assassinados. “A comissão trabalha para a burguesia e anistiando ladrão de banco”, acusou. “A comissão deve ser de Estado, não de governo”, argumenta.

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