sábado, 1 de dezembro de 2012

Somos modernos? - João Paulo‏


Somos modernos?

 Reedição completa do suplemento mineiro leite criôlo, que circulou em 1929, destaca aspectos históricos e ideológicos do modernismo no Brasil e em Minas 


João Paulo
Estado de Minas: 01/12/2012 

Fac-símile da capa do primeiro número de leite criôlo, que, em seguida, seria publicado nas páginas do Estado de Minas
O modernismo brasileiro, para o leitor de hoje, é um tempo de conquistas e heroísmo. Como toda avaliação feita sobre o passado, esse juízo talvez diga mais do nosso tempo do que propriamente da realidade do movimento estético, político e ideológico que tomou conta da inteligência brasileira nos anos 1920. Estamos sempre à procura de genealogias que expliquem nossos acertos e mitiguem nossos erros. Com suas demasias, o modernismo se presta bem às duas tarefas.
A identificação do moderno com a crítica ao antigo, com a abertura de novas avenidas artísticas, mais livres e desimpedidas, com a renovação política em favor de bandeiras universalistas e, sobretudo, com o rompimento de tudo que nos atava ao ultrapassado, ao bacharelesco, ao conservador, ao tacanho e ao preconceituoso, tudo isso faz parte de nossa memória inventada. O modernismo apascenta os pecados de origem, já que, por causa dele, de uma hora para outra nos tornamos todos modernos. Antigos eram os outros.

A reedição do periódico leite criôlo, que circulou em Belo Horizonte em 1929, em versão fac-similar de todos os 19 números do suplemento, é uma oportunidade para não apenas conhecer um trabalho que marcou época – embora seja pouco conhecido fora do círculo dos especialistas – como também para revelar questões que ficaram submersas em razão desse otimismo ideológico da memória. Mesmo nos momentos mais produtivos do ideário modernista, não estiveram ausentes disputas ferrenhas (e vaidosas) entre os integrantes do movimento, bem como questões aparentemente superadas, como o racismo.

As revistas eram o instrumento por excelência da circulação de ideias e da produção estética do modernismo. Ao lado das já conhecidas, estudadas e reeditadas publicações como as paulistas Klaxon, Terra Roxa e Outras Terras e Revista de Antropofagia, e as mineiras A Revista e Verde, o periódico leite criôlo mantinha, na forma e no projeto político, semelhanças com suas irmãs. Havia predomínio de pequenos textos, poemas e proposições ideológicas; a forma gráfica fugia sempre que possível (por vezes era amarrada no projeto gráfico do jornal onde se inseriam) do convencional; a direção era coletiva, bem como a abertura de espaço a colaboradores de vários pontos do país. 

A trajetória de leite criôlo teve, no entanto, suas singularidades. O primeiro número, o mais programático, foi editado em formato tabloide, independente, distribuído de graça no dia 13 de maio de 1929, em clara alusão à comemoração do dia a abolição da escravatura. A partir daí, os demais 18 números – entre 2 de junho e 19 de setembro daquele ano – saíram como suplemento literário do Estado de Minas, jornal recém-fundado (em 1928), ocupando espaço que variava de metade a um quarto de página.

Durante todo o tempo, leite criôlo  foi dirigido por João Dornas Filho, Guilhermino César e Achiles Vivacqua e contou com colaborações de nomes como Carlos Drummond de Andrade (com o pseudônimo de Antonio Crispim), Cyro dos Anjos, Rosário Fusco, Francisco Inácio Peixoto, Oswaldo Abritta e Newton Braga (irmão de Rubem Braga), entre outros. De fora de Minas, o suplemento publicou textos de Marques Rebelo, Luis da Câmara Cascudo, Raul Bopp (como Jacob Pim-Pim) e Yan de Almeida Prado.

A novidade de leite criôlo não estava, portanto, nem na forma nem nos colaboradores, que podiam ser lidos em outras publicações e revistas da época. Também não se localizava no espírito modernista, de combate ao beletrismo e ao provincianismo, que unia todas as publicações, num espectro que ia do anarquismo de Oswald de Andrade ao nacionalismo reacionário de Plínio Salgado. O que havia de diferente vinha impresso no nome da publicação: o criolismo. E talvez esteja aí a ambiguidade que marcou o suplemento em toda a sua trajetória.

Quando surgiu, leite criôlo já se encontrava num terreno de consolidação do modernismo, que vinha da Semana de Arte Moderna de 1922 e de várias publicações, livros e exposições. Cronologicamente, os responsáveis pelo suplemento faziam parte da segunda geração de escritores modernistas que se reuniam em Belo Horizonte, depois da rapaziada formada por Drummond, João Alphonsus, Emílio Moura, Pedro Nava e Abgar Renault. Reunidas em torno da publicação de A Revista (1925-26), a turma mantinha contato com os modernistas de São Paulo, que estiveram trazendo o germe do movimento para Minas em 1924. 

Os fundadores de leite criôlo não apenas vieram depois, como tiveram certa resistência em aderir ao modernismo. Dois deles, João Dornas e Vivacqua, chegaram a publicar textos que não passariam no critério do futuro suplemento, e Guilhermino César, o mais novo deles, se integra ao modernismo já em 1927. Em matéria de vínculo, leite criôlo estava mais próximo da revista Verde, de Cataguases (editada entre 1927 e 1929), da qual participou Guilhermino César. Ainda no capítulo das afinidades, o criolismo dialogava com a chamada “primeira dentição” da Revista de Antropofagia, editada em São Paulo por Oswald de Andrade, e que ajudou a dar repercussão nacional aos jovens mineiros.

O suplemento não tardaria a se ver em meio à polêmica que dividiu o movimento modernista em São Paulo, separando os projetos de Oswald e Mário de Andrade e gerando um cisma que atravessou o Brasil de norte a sul. Em Minas, a primeira e mais drástica dissidência em relação à antropofagia seria capitaneada por Carlos Drummond de Andrade, que rompe com Oswald em carta de maio de 1929. É nesse contexto que leite criôlo surge. O mais polêmico, contudo, seria sua concepção do papel das diferentes raças na composição da cultura brasileira. Entre o racialismo e o racismo, muitas vezes leite criôlo ficou com os dois.

LEITE CRIÔLO

. Lançamento da edição fac-símile do suplemento literário publicado originalmente em BH em 1929. Segunda-feira, às 19h30, na Academia Mineira de Letras, Rua da Bahia, 1.466, Lourdes

Tristeza, raça e sociedade 


O escritor Guilhermino César, um dos diretores de leite criôlo, morreu em 1995, aos 87 anos
Imagine a mescla de bons exemplos de poesia modernista, olhar melancólico sobre a realidade urbana de Belo Horizonte, reflexões sobre estética moderna e pitadas malcomportadas de política. Com esse receituário, leite criôlo tinha tudo para se comparar com suas irmãs de letra de fôrma daqui e de São Paulo. No entanto, dois elementos parecem ter dado uma dimensão de ambiguidade à publicação: um certo penumbrismo melancólico e derrotista, por um lado; e o tratamento dado à questão racial.

O chamado criolismo, ponto de referência da publicação, era uma mescla dessas duas tendências. De um lado os editores nomeavam como criolismo uma tendência negativa, ligada à preguiça, que precisava ser superada seja pela educação ou por procedimentos eugênicos. Por outro, teve o olhar para a questão negra no Brasil, mas não chegou a dar o salto que seria completado na década seguinte, com a consideração sociológica e política das matrizes de nosso projeto injusto de nação.

Os modernistas mineiros, em alguns momentos, quiseram crer que faziam pelos negros o que os paulistas fizeram pelos índios, em termos de reconhecimento de sua significação na formação do homem brasileiro. Mas assim como eles, na esteira da teoria das três raças tristes de Paulo Prado, eram capazes de enxergar a questão racial, mas não foram astutos para superar suas determinações. As sucessivas referências aos negros em leite criôlo denunciam ao mesmo tempo a atmosfera racialista do período e as observações francamente racistas.

O curioso é que, passados muitos anos, alguns dos colaboradores da publicação ao relembrar o período parecem esquecer suas próprias posições, colocando-se na vanguarda da denúncia de preconceitos, postura que, na realidade, nunca tiveram. Nesse aspecto, o suplemento evocava sua época e seus integrantes – gente vinda de famílias importantes ou que ascenderam pela política ou pela arte.

Os textos do suplemento não tratavam apenas da questão racial, mas o tema toma conta de boa parte da produção do grupo. A ambivalência em torno do criolismo vai emergir de formas variadas, como crítica social (ainda que ingênua), em comentários sobre branqueamento, no tratamento afetivo de personagens como a “mãe preta”, na percepção da questão da afro-descendência da nação brasileira e até num humor malicioso que, por vezes, descamba para o sadismo. 

Edição exemplar 


A coletânea editada pelo Instituto Cultural Amilcar Martins (Icam) permite recuperar essa história sem intermediários, pela leitura dos textos que fizeram parte de todas as edições de leite criôlo. O trabalho não foi fácil. Não havia uma coleção única na qual figurasse, em boas condições, todos os exemplares do suplemento. Por isso foram utilizadas coleções pertencentes a várias instituições, como a Fundação Biblioteca Nacional, Hemeroteca Histórica do Estado de Minas Gerais e Coleção Linhares do Setor de Coleções Especiais da Biblioteca Central da UFMG.

O conhecimento do material editado vai permitir, ainda, nova safra de estudos sobre os primórdios do modernismo em Minas, que vão se somar a trabalhos clássicos, como os de Antônio Sérgio Bueno, Maria Zilda Ferreira Cury, Helena Bomeny, Francisco Iglésias e Humberto Werneck. Nesse grupo, já se pode filiar o pesquisador Miguel Ávila Duarte, autor de um reflexivo estudo crítico sobre leite criôlo que integra a edição. O suplemento já havia sido tema de sua dissertação de mestrado em teoria da literatura na UFMG.

Um dos maiores acertos da edição completa de leite criôlo foi a escolha do sociólogo Fernando Correia Dias para escrever o prefácio da coletânea. Autor de O movimento modernista em Minas –Uma interpretação sociológica, em seu último trabalho Fernando Correia Dias deixou registrado seu estilo, capaz de dar conta da erudição e da interpretação, além de oferecer perfis exemplares dos principais atores do movimento modernista mineiro.

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