segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A qualidade contra a miséria - RENATO JANINE RIBEIRO

Valor Econômico - 25/02/2013


Combate à miséria precisa ter educação e cultura


Há poucos dias, o governo lançou mais uma etapa da luta contra a miséria, ou extrema pobreza. Nos anos Lula e Dilma, dezenas de milhões de brasileiros deixaram esse nível, subindo para o - ainda indesejado, mas mesmo assim melhor - da pobreza. Na pobreza, o ser humano repõe as energias, enquanto na sua versão extrema (ou miséria) são sensivelmente abreviadas a quantidade e qualidade de sua vida. Para usar a expressão do filósofo inglês Thomas Hobbes quando fala no estado de guerra, o miserável "não vive o tempo que a natureza normalmente lhe daria". É claro que essa distinção não torna a pobreza uma condição invejável. Aliás, a própria pobreza também abrevia a duração possível da existência, pelo menor acesso a cuidados bons de saúde, pela alimentação não tão boa, pelo desgaste a que se submete a pessoa num país que, na frase de Fernando Henrique Cardoso, é mais injusto do que pobre. E que, por isso, tem tanta gente na pobreza simples ou extrema.

A redução da miséria e da pobreza ocorreu em muitos países. Na América do Sul, deu-se com governos de esquerda, mas alguns de direita também reduziram a dívida social. No Peru, uma diminuição no porcentual de miseráveis data de governos anteriores ao atual - que não eram de esquerda. Parece que, assim como nos anos 1990 a inflação foi derrotada em quase todo o mundo, por governos de direita na maior parte, mas também de esquerda, desde o ano 2000 a injustiça social tem baixado em muitos lugares, pela ação da esquerda mas também de alguns governos liberais.

Isso basta? Preocupa-me que a maior parte dos comentários sobre a melhoria na vida das classes pobres, no Brasil, enfatize o aumento no poder de compra. O avanço na cultura e na educação, embora ocorra, não recebe a mesma atenção. Ora, aí está a diferença entre a necessidade e a liberdade, entre uma vida de carências e uma mais ativa.

A miséria é mais fácil de se perceber sob dois aspectos principais: a fome e a doença. Digamos que os gastos básicos das pessoas se dividam entre a alimentação, a vestimenta, o transporte, a saúde e a moradia. Todos esses gastos podem ser comprimidos, a um custo humano elevado - mas não dá para deixar de comer, de se vestir, de ir e voltar do trabalho e de cuidar da saúde. Penso que a mais sacrificada dessas necessidades básicas é a moradia. Assim entendo a pesquisa que o Valor divulgou na semana passada, revelando que 65% dos moradores de favelas pertencem à classe média. Eram 37% em 2002. Certamente hoje comem e se vestem melhor, parte tem carro, mas continuam morando muito mal. Resolver a questão da residência é mais difícil, porque mais caro, do que solucionar as outras necessidades que chamei de básicas, e que são evidentes, flagrantes, visíveis.

Mas para estas necessidades, justamente por sua visibilidade, foram definidas políticas públicas que funcionam. Nelas, há uma linha de corte entre a carência e a sua satisfação. Por exemplo, a saúde seria a não-doença. Se você tem um resfriado, a cura lhe devolve a saúde. Se está com fome, comendo, ela passa. E isso todos sabem na hora. Estou simplificando, até porque podemos melhorar cada vez mais a qualidade da roupa, da comida, da moradia e do bem-estar físico e mental - mas, em linhas gerais, vale esse recorte.

O que se enquadra mal nele são a educação e a cultura. Pode haver uma satisfação completa das necessidades de proteínas e carboidratos, de vitaminas e minerais - mas não há um equivalente em termos culturais ou educacionais. Não faz sentido dizer que, vendo cem filmes, lendo cinquenta livros, conhecendo mil canções, aprendendo uma língua e resolvendo equações, eu chegue ao patamar da pessoa "culta" ou "educada". Aqui, o céu é o limite. Ou seja, não há limite.

Tudo isso para dizer que, enquanto as carências físicas são fáceis de detectar e por isso constituem prioridades dos governos, e, em consequência, contam com políticas públicas testadas e que vêm funcionando, as deficiências em cultura e educação se mostram bem diferentes: quase intangíveis, são mais difíceis de perceber, impossíveis de saciar.

Mas o lado bom dessa diferença é que a ação pública pela educação e da cultura pode ir cada vez mais longe. Ela não tem um roteiro claro. Na verdade até tem algum, no caso da educação. Hoje dispomos de indicadores de sua qualidade. O Indicador de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) tem subido dez por cento, no Brasil, a cada edição - isto é, a cada dois anos. Esse progresso é notável. Mede certas capacidades básicas. Não pode medir tudo o que há na educação. É duvidoso que consiga aferir competências sofisticadas. Mas estas, por natureza, fogem à métrica. E, se a saúde é a cura da doença, a boa educação não termina quando acaba a ignorância. Ela pode melhorar cada vez mais.

E não será este o caso da cultura? Não será ela o glacê do bolo, o que há de mais precioso nele e, portanto, o que não pode ser medido?

Porque, no fundo, a questão é: o Brasil está superando as carências que limitam a duração da vida. A luta contra a fome, o aumento do poder aquisitivo, a construção de habitações populares - tudo isso está neste projeto que permitirá, em alguns anos, zerar nossa dívida social. Mas esse é o reino da necessidade, como dizem os filósofos. Outra coisa é a república da liberdade. Para chegar a ela, só com educação e cultura. E aí temos menos fios condutores. É da natureza delas serem mais livres, terem menos roteiros, serem mais abertas para a criação humana. É bom ter isso em mente sempre que discutirmos a luta contra a pobreza. Porque ela somente será vitoriosa quando também a cultura entrar em cena.

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