segunda-feira, 25 de março de 2013

Mostra que introduziu Duchamp nos EUA e deslocou eixo das artes de Paris para NY faz cem anos

folha de são paulo
Pipoca moderna
SILAS MARTÍDE SÃO PAULo

Em abril de 1913, o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, apertou um botão na Casa Branca, em Washington, e acendeu, com um toque, todas as luzes de dentro e fora do Woolworth, em Nova York, inaugurando à distância o que era então o prédio mais alto do mundo.
Mas o que eletrizou mesmo Manhattan, dois meses antes, foi a Exibição Internacional de Arte Moderna, que entrou para a história como Armory Show, por ter acontecido num depósito militar da rua 26 com a avenida Lexington.
Naquele fevereiro, fuzis e canhões deram lugar a armas estéticas, como "Nu Descendo a Escada nº2" de Marcel Duchamp, o "Nu Azul", de Henri Matisse, peças de Francis Picabia, esculturas de Constantin Brancusi e todo um arsenal de 1.400 obras de europeus e americanos.
Numa Nova York ainda provinciana, onde mulheres marchavam pelo direito ao voto, a vanguarda europeia causou certa indigestão
intelectual.
Divulgação
'Nu Descendo a Escada', obra de Marcel Duchamp que esteve no Armory Show de Nova York há cem anos
"Nu Descendo a Escada", obra de Marcel Duchamp que esteve no Armory Show de Nova York há cem anos
Quando a mostra foi a Chicago, estudantes de arte quiseram queimar uma efígie de Matisse e atearam fogo em réplicas de suas obras.
Muitos tacharam de "primitivo" o artista, que teria errado ao pintar dedos a mais ou a menos nos pés da modelo que se exibia nua na tela.
MUDANÇA DE EIXO
Duchamp, que quatro anos depois causaria novo escândalo com seu urinol em Nova York, fazia ali sua estreia na cidade que se tornou, com o Armory Show, o centro cultural do mundo, desbancando Paris, então farol das artes.
Foi também o início das exposições-espetáculo, eventos do "grand monde" para ver e ser visto que hoje se multiplicam no circuito da arte.
"Isso tudo aconteceu no mesmo lugar, debaixo do mesmo teto", conta a historiadora americana Laurette McCarthy. "Embora a classe artística já conhecesse parte dessa produção, milhares de nova-iorquinos foram à exposição como a um evento social, curiosos pelo teor das críticas nos jornais."
Gail Stavitsky, outra historiadora que organiza com McCarthy uma mostra em homenagem ao centenário do Armory Show, sustenta, aliás, que a crítica de arte nos Estados Unidos surgiu com as reações acaloradas à mostra.
"Esse foi o nascimento da crítica de arte americana", diz Stavitsky. "Houve uma explosão do pensamento crítico, os jornais passaram a publicar resenhas de exposições quase todos os dias. Isso ajuda a derrubar o mito de que a América era um deserto intelectual até a o surgimento do expressionismo abstrato."
Nesse ponto, o movimento artístico que pôs Nova York no mapa algumas décadas mais tarde, com os arroubos agressivos de Jackson Pol-
lock, também teve seu embrião no choque causado pela avalanche das vanguardas europeias do Armory Show.
"Até então, as cores na arte americana eram quase mortas", analisa Marilyn Kushner, da Sociedade Histórica de Nova York. "Aquele azul do Matisse e as cores vibrantes dos fovistas foram um assalto aos sentidos."
Kushner lembra também que, além das cores, as proporções distorcidas das figuras nas telas e a economia formal das obras de Brancusi causaram grande espanto.
COLECIONISMO
Foi um espanto rentável. Organizada pela extinta Associação de Pintores e Escultores Americanos, a mostra, caríssima para os padrões da época, com o transporte transatlântico de obras e artistas, teria de se bancar com a venda das peças em Nova York.
No afã por entrar na moda, a aristocracia americana arrematou grande parte das peças. Único dos grandes museus da cidade que já existia em 1913, o Metropolitan comprou o seu primeiro Cézanne.
Edward Hopper, então longe da fama que conquistaria mais tarde, vendeu sua primeira pintura, "Sailing", em que retratou um veleiro.
Do total de 250 peças vendidas, grande parte ajudou a formar coleções de peso, como a de Lillie Bliss, herdeira de um magnata têxtil que doou anos mais tarde centenas de peças de Matisse, Cézanne e Picasso para criar o MoMA, em Nova York.
"Grandes coleções de arte começaram com o Armory Show", conta Stavitsky. Tanto que uma feira de arte que ocorre até hoje na metrópole americana leva o nome da mostra. "Foi o ponto de partida para o levante das galerias de arte."

Exposição em SP homenageia Lasar Segall
DE SÃO PAULONo mesmo mês e ano em que Duchamp e Matisse assombraram Nova York, Lasar Segall fez sua primeira exposição em São Paulo, marcando a entrada do modernismo no país e causando alvoroço no meio intelectual da época.
Influenciado pelos interiores soturnos e as figuras marginais do impressionismo alemão, Segall teve sua técnica elogiada por críticos paulistas -mas seu "temperamento impetuoso e esquisito" seria reprovado nas resenhas.
Cem anos depois da estreia do modernista no Brasil, o Museu Lasar Segall abriu neste mês uma mostra com quatro das 52 obras exibidas então, entre elas "O Violonista", com clara influência de Cézanne, e "O Asilo de Velhos", em que o russo tentou revisitar os traços e a estética do holandês Rembrandt.
"Causou estranhamento na exposição de Segall a força da modernidade que já estava ali", diz Vera d'Horta, curadora da mostra. "Mas as críticas que ele recebeu mostram um descompasso entre o que ele fazia e o padrão aceito pela alta burguesia."
De fato, os lampejos de modernidade na obra de Segall contrastavam com as naturezas-mortas e paisagens em voga em São Paulo. Tanto que a estreia de um moderno como Segall acabou preparando o terreno para a polêmica mostra de Anita Malfatti em 1917, que foi atacada com ferocidade pela crítica.
Segall só não teve o mesmo destino por ser estrangeiro e ter sido acolhido pela aristocracia local. Sua irmã era casada com Salomão Klabin, amigo do senador-mecenas Freitas Valle, que levou o crítico de "O Estado de S. Paulo", Nestor Rangel Pestana, para conhecer o artista.
Dez anos depois da estreia brasileira, Segall se mudaria para São Paulo, inaugurando essa fase de sua obra com um autorretrato em que se pintou mulato -um sinal de que estava vindo para ficar.

    SAIBA MAIS
    Pai do 'ready-made' chocou até libertários
    NELSON AGUILARESPECIAL PARA A FOLHAMais de mil obras foram expostas no Armory Show. Uma, porém, se destacou: "Nu Descendo a Escada nº 2", de Marcel Duchamp.
    A tela conseguira no ano anterior a façanha de ser excluída de um evento cuja norma era admitir todo tipo de arte, sem restrição, o Salão dos Independentes de Paris. O grupo cubista considerou a peça irreverente, provocadora e pediu-lhe o favor de retirá-la.
    Tal reação num ninho de libertários se deveu ao fato de Duchamp ter escrito ao pé do quadro o título, o que dava a sensação de comentário sarcástico endereçado ao cubismo sério, adepto de naturezas-mortas e paisagens rigorosamente fatiadas e alérgico à situação circunstancial na qual o nu estava envolto.
    Em Nova York, a obra cansou celeuma. Sua estrutura tubular em movimento diagonal chegou a ser definida por um jornalista como "uma explosão num depósito de telhas".
    O sucesso fez Duchamp aceitar o convite de ir à América, onde passaria o período da Primeira Guerra e se implicaria na formação da Sociedade dos Artistas Independentes local, inspirada na parisiense e com o mesmo lema: nem júri nem premiações.
    Em 1917, enviaria ao salão da congênere americana a célebre "Fonte", sanitário em louça, assinado R. Mutt, sofrendo nova recusa. A alegação do comitê de recepção de obras foi de que a inscrição estava mal preenchida; e assim foi contornada a necessidade de discutir a aterrissagem do "ready-made" na cena artística nova-iorquina.
    Atento à volatilidade da ética vanguardista, Duchamp fez fotografar a obra antes do envio e a exibiu na revista "The Blind Man" (o cego), lançada no dia da abertura do salão.
    Trabalharia ainda no que hoje se denomina expografia ou, mais que isso, instalação, ao enredar, em 1942, o espaço expositivo da mostra "The First Papers of Surrealism" (nome que alude aos documentos apresentados por imigrantes que pleiteiam cidadania norte-americana) com uma milha de barbante, criando entre espectadores e obras uma teia que problematiza o acesso.
    Duchamp desenvolveu sua produção graças ao apoio quase secreto de alguns colecionadores. Sua redescoberta só ocorreria através dos pioneiros da pop art nos anos 50 e 60.
    Hoje é mais estudado que Leonardo da Vinci, quem lhe inspirou o "ready-made" assistido, um postal com a imagem da Mona Lisa e a interferência de traços que dão bigode e cavanhaque à musa, além de batizá-la com iniciais que, lidas em francês, lhe emprestam uma qualidade escabrosa ("L.H.O.O.Q.", 1919).

      Mostra percorre o legado de Duchamp na arte americana
      Em cartaz em Londres, exposição remonta impacto do artista na dança, na música e na arte visual do pós-Guerra
      Conjunto exposto no Barbican retraça influência do francês sobre John Cage e Jasper Johns, entre outros
      FERNANDA MENAENVIADA ESPECIAL A LONDRESNa primavera de 1942, o compositor John Cage se mudou para Nova York e ficou hospedado na casa do pintor alemão Max Ernst e de sua mulher, a colecionadora Peggy Guggenheim. Sob esse
      teto, Cage conheceu artistas como Jackson Pollock, André Breton e Piet Mondrian.
      Nenhum de seus novos convivas, no entanto, causaria tamanho impacto em sua vida e obra como Marcel Duchamp (1887-1968), considerado um dos mais importantes artistas do século 20.
      Cage fez reverberar ideias de Duchamp em artistas com quem colaborou e as estendeu à música, à pintura, à escultura e à dança americanas do pós-Guerra.
      É do traçado desse legado que trata a mostra "A Noiva e os Celibatários: Duchamp com Cage, Cunningham, Rauschenberg e Johns", em cartaz até junho no Barbican Centre, em Londres.
      A exposição multidisciplinar identifica a complexa rede de influências que Duchamp exerceu na dança do coreógrafo Merce Cunningham (1919-2009), nas pinturas de Jasper Johns, nas esculturas de Robert Rauschenberg (1925-2008) e, sobretudo, na música e na não música de John Cage (1912-1992).
      O núcleo da exposição traz obras célebres de Duchamp, como "Nu Descendo a Escada nº 2" (1912) -tela exposta pela primeira vez há cem anos no Armory Show, em Nova York- e "Noiva Despida por seus Celibatários (O Grande Vidro)" (1915-1923).
      Ao redor dele orbitam obras sonoras de Cage, telas e esculturas de Rauschenberg e Johns e, num pequeno palco no centro do espaço, coreografias de Cunningham que repercutiram o ideário do pai da arte conceitual.

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