sábado, 22 de junho de 2013

Está apenas começando - João Paulo

Movimento político que toma conta das ruas traz para a cena pública novos personagens e demandas, com formas de organização que evidenciam o descompasso do discurso político tradicional com a realidade da juventude 


João Paulo

Estado de Minas: 22/06/2013 



Os protestos que varreram o Brasil nas últimas semanas convocaram muitas opiniões, análises e interpretações. Muita gente aponta para a necessidade de entender a voz que vem das ruas, como se tratasse de algo muito novo, portanto ainda fora do hábito mental e político da sociedade. Assim, ao lado de truísmos como a defesa do direito de protestar como exercício legítimo da democracia e da tarefa de separar o que consideram legítimo dos abusos, ficou no ar, com o cheiro de gás lacrimogênio e com a perplexidade da direita e da esquerda convencionais, uma sensação de que há uma nova tarefa delegada ao futuro. Não é verdade. A voz das ruas não foi nem rouca nem inescrutável, mas límpida. É preciso ter ouvidos de ouvir. E honestidade para reconhecer os limites expressos na manutenção de práticas perniciosas do nosso sistema político e da potente estrutura geradora de injustiça social.


1) Democracia direta não é novidade
A tradição política ocidental é marcada pela representatividade, a partir de escolhas democráticas de consulta popular. É um bom princípio, mas não basta. A combinação entre democracia representativa e democracia direta precisa ser balanceada a todo momento. A democracia é uma forma de invenção permanente, e não cumprimento de protocolos. A livre manifestação não é democrática, ela é parte integrante do núcleo da democracia. Em alguns momentos, há crises de legitimidade na área da representação. Os eleitores não se sentem contemplados pelas decisões tomadas em seu nome. Nessa hora, é fundamental que a crise se traduza em ações diretas, de ocupação, protesto e constrangimento, como as vaias. O caso da Copa das Confederações e da Copa do Mundo (em 2016 será a vez das Olimpíadas) é exemplar e por isso está tão em evidência. Os cidadãos não concordam com as decisões (investimentos, cerceamentos de liberdade, verticalização das decisões, submissão a uma entidade lucrativa, aprovação de uma espúria Lei Geral da Copa, que conflita com a legislação vigente, superfaturamento de obras, etc.) e, como não podem seguir a regra leniente de forçar seus representantes, já que o rolo compressor foi acionado, cabe a legítima e indispensável ação direta da população. É o mesmo que se viu na tentativa de inviabilizar o funcionamento da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que teve sua presidência entregue a um homofóbico confesso e, portanto, incapacitado de exercer a função. Como o próprio Legislativo foi incompetente para resolver o impasse, mais uma vez a democracia direta é convocada – nesse caso, com ações justas de constrangimento e tentativa de inviabilização do funcionamento do colegiado, que, no entanto, se recompõe ao menor refresco (como se viu com a recente aprovação do projeto da “cura gay” pela comissão). É preciso ainda destacar que o caráter direto da democracia não se liga apenas às manifestações públicas. Há muito o tecido institucional brasileiro vem jogando para escanteio o orçamento participativo, as conferências setoriais e os conselhos populares e paritários, que se perdem entre o aparelhamento e a triste vocação homologatória de políticas de Estado.


2) Protestos respondem ao seu tempo
Não adianta comparar o que está ocorrendo no Brasil – e de resto em todo o mundo – com outros momentos históricos, em busca de uma valorização da memória em nome do desprezo à novidade. Felizmente, não vivemos mais uma ditadura. E, em grande parte, devido exatamente à reação social. Se as mobilizações de natureza mais universal, como lutar pela democracia contra a ditadura, tiveram papel importante, nem por isso todo protesto social tem que se basear naquele modelo. Aquela conjuntura histórica unificava diferentes forças sociais em nome de uma conquista comum. Assim, se anulavam divergências ideológicas, fazia-se conviver sindicatos e igrejas, apelava-se para um sentimento maior capaz de atrair grandes multidões. Para a nova conjuntura, novos modelos de participação. A sensação da conquista democrática fez com que certa sensação de consenso tomasse conta de parte da sociedade, que passou a considerar a política algo fora de sua ação, mesmo que muitos movimentos sociais se mantivessem ativos e, exatamente por isso, fossem demonizados pelas forças conservadoras e por parte da imprensa, que sempre preferiu entender política como conchavos de bastidores e não a cena aberta do teatro social. Assim, sobretudo os jovens assumem novo caminho político, que desliza da representação oficial em nome da manifestação em torno de bandeiras específicas, mais próximas de seu cotidiano. Se a motivação é singular, as formas de se manifestar também o serão. É por isso que, em vez de se ocupar em reuniões prévias ou busca de consensos e identificação de lideranças que falem em nome do movimento, eles apostam na espontaneidade e em formas de convocação mais anárquicas e descentradas.


3) A política é outra nas redes
As redes sociais são a maior novidade (nem tão nova assim) na política. Elas têm potencial de mobilização nunca visto e são capazes de atrair atores que até então escapavam das questões sociais e econômicas em nome do investimento na individualidade e no consumo. Além da força de convocação, as redes sociais modulam o estilo de política que hoje se estabelece na sociedade. Há aspectos positivos inegáveis, sobretudo pela capacidade de inclusão de sujeitos até então alienados do jogo político global. Outra novidade que precisa ser festejada é a força para descobrir as questões que, a princípio particulares, tornam-se bandeiras capazes de mobilizar grandes grupos de pessoas. Não por acaso o transporte público se tornou a bola da vez. Trata-se de área em que se conjugam problemas graves e sintomáticos com escolhas políticas e econômicas claras e de interesse de grupos bem localizados e com forte trânsito nas estruturas de poder. Se a internet ajudou a criar um novo sujeito político, que deixou o computador de lado e foi para as ruas, ela também carrega problemas que precisam ser enfrentados para que os atores, de fato, conquistem maior significação na arena pública. Entre as barreiras típicas das redes sociais está o desejo de falar muito maior que o de ouvir. A mesma democracia que precisa ouvir os jovens espera que os jovens se abram para ouvir outras vozes sociais. Quem frequenta as redes sabe que se fala muito e se escuta pouco fora do próprio ambiente defeso de “seguidores” ou “amigos”. A democracia é um cenário de conflitos e negociações possíveis, nunca de “inimigos”. Talvez esteja aí o papel dos meios de comunicação, que deveriam funcionar como essa arena de contradições, aberta às várias possibilidades sociais, e não eco de apenas uma visão do mundo.

O ônibus, o jovem e o policial
João Paulo

Se tudo começou com o preço da passagem de ônibus em São Paulo e mobilizou sobretudo jovens, a continuidade do movimento vem afirmando uma ampliação desses parâmetros, tanto geográficos como geracionais, em direção a demandas mais universais. A questão da segurança pública, em sua manifesta incapacidade de dar conta do novo cenário, em razão de sua origem institucional e de sua prática histórica, é elemento que provoca o desafio de se constituir, pela primeira vez na trajetória da civilização brasileira, uma polícia democrática.


4) A juventude não mudou o comportamento
O protagonismo dos jovens nas manifestações de rua é evidente, no entanto não é novo. O que cria a perspectiva de que existe uma nova ação da juventude é a soma de dois fenômenos distintos: em primeiro lugar, o desprestígio histórico com os movimentos vindos da periferia do sistema; em seguida, a pluralidade na composição dos novos manifestantes, com a incorporação de atores que estavam fora do jogo político tradicional. O primeiro aspecto é evidente. Em todos os movimentos sociais em atuação no país a presença de jovens é expressiva e, muitas vezes, definidora de pautas, seja em ações como a ocupação de propriedades improdutivas, na luta por moradia, emprego e transporte (a causa está longe de ser novidade para a periferia das grandes cidades), seja, enfim, na busca de nova política cultural, como ocorre com grande força em Belo Horizonte com movimentos como o Praia da Estação (composto basicamente por demandas da classe média) e o Duelo de MCs. No entanto, sempre que se tornavam públicas, era patente o interesse em desvalorizar as manifestações ou circunscrevê-las no seu domínio marginal. O outro aspecto, que aponta para a integração de nova faixa de manifestantes, ao lado da saudável variedade e ampliação do movimento, deixa também patente certa dificuldade de diálogo com expressões políticas, como os partidos e outras organizações. É exatamente pelo fato de não se sentirem representados nessas instâncias que os jovens foram às ruas, mas o repúdio à política como um todo, mesmo em seu enérgico espontaneísmo, não garante a mobilização ou o avanço de consciência possível. A ação gerada pelo ceticismo com a política não ultrapassa a política e pode se mostrar regressiva. O alerta não é apenas para os manifestantes, mas para certa parcela da esquerda que julgava dominar os instrumentos de luta de massas e não compreende a disposição dos novos agentes em aprender com a prática. A indignação da juventude é o motor permanente de transformações, mas é preciso ficar atento para o retorno a formas pré-políticas, que podem alimentar o conservadorismo em momentos eleitorais, como se observou na Espanha em 2011. A voz das ruas está gritando também para o ouvido esquerdo.


5) Pessoas são tratadas como gado
“Mobilidade urbana é o cacete.” O fato que disparou as manifestações em todo o país, o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo, não deve ser visto como menor. Ele expressa a baixa qualidade da atenção pública com aspecto fundamental da vida do cidadão; o alto preço do serviço num contexto de risco de inflação; a falta de transparência e participação na definição dos reajustes, como se tratasse de uma questão meramente técnica; o equívoco do investimento no setor, com o privilégio histórico do incentivo ao transporte individual; o baixo subsídio no preço da passagem reforçando a lógica comercial na consideração de um bem de interesse público; desprezo com o cidadão-consumidor, tratado como gado, em transporte quente, sucateado, que não cumpre horários e circula superlotado. O Brasil é um dos países que menos subsidiam as passagens de transporte coletivo (em torno de 10% contra 60% em Amsterdã e Buenos Aires); que tem uma das piores relações do mundo entre gasto em transporte coletivo e investimento para facilitar transporte individual (segundo o Ipea, para cada R$ 1 investido em transporte público são destinados R$ 12 para incentivar o transporte individual); em que o preço do transporte coletivo mais impacta a estrutura de gastos do trabalhador. Além disso, vem procrastinando a construção e ampliação das linhas de metrô e transporte ferroviário (para o qual existem recursos e tecnologia há décadas) pela manutenção dos setores que lucram com o modelo incentivado: indústria automobilística, construtoras e empresários do setor de ônibus e transporte rodoviário. O descalabro do sistema, ainda que atinja a sociedade como um todo, é também um signo poderoso de injustiça social, atiçador inclusive do preconceito, quando se deposita a responsabilidade do caos nos novos compradores de automóveis. Ninguém pensa que a classe média alta vai deixar seu carro em casa ou mudar o padrão de consumo (um automóvel por motorista, muitas vezes carros enormes e disfuncionais) em nome do interesse coletivo. Quando se fala em transporte coletivo, o alvo é sempre o trabalhador pobre. Os últimos muros da falta de transparência em relação às tarifas começam a cair com as medidas de redução de preço das passagens que vêm sendo anunciadas em várias cidades do país e com a inclusão de lideranças dos manifestantes nas mais recentes reuniões para enfrentar a situação. Entre outras coisas, é para isso que serve o povo nas ruas, para forçar os limites da institucionalidade.


6) A segurança pública está despreparada
A incapacidade da polícia em lidar com o movimento nas ruas ficou patente em todo o país. Há mesmo um consenso que aponta para o crescimento das manifestações em razão do comportamento violento e desproporcional das forças repressivas nos primeiros embates. A reversão do discurso, inclusive nos meios de comunicação, se deveu aos abusos, que, é bom frisar, fizeram com que as pessoas nas áreas nobres da cidade fossem tratadas como se estivessem na periferia. A polícia brasileira não tem tradição de manifestações democráticas e vê no outro sempre o inimigo a ser combatido. Os manifestantes, por sua vez, não enxergam os policiais como servidores públicos encarregados da ordem, mas como agentes de força, marcados por uma visão estrita de legalidade e democracia. A demonização dos movimentos sociais sempre bateu na tecla do direito à propriedade. A decisão recente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, provocada por ação da prefeitura da capital, ao tentar impor limites às manifestações em nome do livre fluxo de veículos nas ruas, é tributária dessa visão patrimonialista do espaço público. A política de segurança não é uma coleção de táticas e estratégias de enfrentamento, mas uma definição de parâmetros de comportamento social que permitam a liberdade. Nesse sentido, trata-se, em primeiro lugar, de uma ação política, não técnica. Entre os aspectos a serem observados está a integridade das pessoas (acima da defesa do patrimônio) e a capacidade racional do uso da força, discriminando manifestantes de bandidos. Estabelecer uma prática para o todo a partir da exceção é um equívoco ético de consequências desastrosas. A polícia não é monopólio dos governos ou partidos instalados no poder, mas corporação de defesa da sociedade. A lógica de buscar culpados (vigente em outros movimentos sociais há décadas) mostra seu limite nas recentes manifestações. A forma brutal como agiu a polícia no primeiro momento e a tentativa de espelhar as ações futuras nos parâmetros do Exército são equívocos a serem evitados urgentemente, sob risco de agravamento das tensões e do incentivo ao aparecimento de grupos que se dão bem nesse contexto. A agir assim, as badernas não serão subproduto dos protestos, mas monstros gerados pelas forças repressivas, que escolhem assim seus “melhores” inimigos. Para uma prática democrática de protesto é preciso uma polícia igualmente democrática.


7) As pessoas sabem o que não querem
Talvez a maior de todas as constatações seja exatamente o esgotamento das opções disponíveis de exercício da cidadania. Se a sociedade brasileira, nos últimos anos, vive uma polarização entre PT e PSDB, entre um projeto neodesenvolvimentista e um programa de aprofundamento das reformas liberais (em termos dos próprios partidos), muitos cidadãos não se sentem representados. Menos pelas diferenças do que pelas semelhanças na forma de exercer aqueles propósitos, a partir de jogos considerados de cartas marcadas pela prática real da corrupção. Nesse conjunto de autoexcluídos, os jovens são expressivos. Sabem o que não querem e começam a articular, em passos objetivos e práticos, uma agenda própria, com novos modelos de organização e vocalização. A expulsão das bandeiras partidárias em manifestações é um dos sintomas dessa recusa dos caminhos habituais. E é bom lembrar que o espectro partidário não se limita ao par PT/PSDB e que a possibilidade de organização política não passa necessariamente por essa via. Além disso, o modelo de instant mob, ainda que singular, não garante mudanças estruturais, ainda que se mostre eficiente para conquistas específicas. Mas há outros movimentos em ação. O campo da chamada esquerda popular, por exemplo, ligado aos movimentos sociais, para se diferenciar das disputas partidárias que perderam o horizonte das transformações mais profundas, tem investido num caminho mais consistente, que envolve inclusive as tarefas de formação política e ações de base. O que vemos hoje nas ruas, no entanto, parece partir de um ponto de ruptura. Começar pela negação – o que não queremos – é também uma maneira de se afirmar. Como no poema do português José Régio (1901-1969): “Não sei por onde vou,/ Não sei para onde vou/ Sei que não vou por aí!”. Ser apartidário não é ser apolítico. A lição fundamental é clara: não há saída fora da política.

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