quinta-feira, 13 de junho de 2013

O parêntesis de Gutenberg - Raquel Cozer

folha de são paulo

O parêntesis de Gutenberg


“Me perguntaram quando vai ter livraria em Taperoá, cidade de 12 mil habitantes onde nasci. Respondi: ‘Nunca. Nem vai precisar.  Provavelmente nem de biblioteca vai precisar’.”
Interessante a escolha do paraibano Silvio Meira, pesquisador da engenharia de software, para a abertura do Congresso do Livro Digital, em São Paulo. Chutou uns baldes que desafiaram qualquer sonolência de editores no auditório da Fecomércio, hoje cedo.
Professor do Centro de Informação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e cientista-chefe do Centro de Estudos de Sistemas Avançados do Recife (Cesar), Meira foi porta-voz daquela opinião que editores menos apreciam sobre o futuro do livro em palestra sobre “como leremos em 2020″, aquela que defende que não propriamente “leremos” e que aquilo que chamamos de livro digital talvez nem livro seja.
“Um editor me perguntou se isso tudo o que digo vai acontecer antes de ele se aposentar. Perguntei: ‘Quando você se aposenta?’. Ele: ‘Daqui a dez anos’. Falei: ‘Tá lascado.”
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Imagem do vídeo que apresenta “The Silent History”
“The Silent History”, um “novo tipo de romance”, foi um exemplo do que esse discurso quer dizer. É um aplicativo, à venda por US$ 1,99 na Appstore, assinado por Kevin Moffett, Matthew Derby, Russell Quinn e Eli Horowitz, mas na teoria não só deles. Trata de uma epidemia de silêncio iniciada em 2011, com crianças ao redor do mundo nascidas sem a capacidade de ou interesse em se comunicar, algo que adultos demorarão a entender do que se trata.
Um vídeo e um texto apresentam a história ao leitor, que pode acompanhá-la de duas maneiras: lendo depoimentos dos personagens, que contam a história dos silêncios desde sua descoberta até 2043. Cada depoimento tem 1.500 palavras e, quando forem concluídos, equivalerão a algo como um romance de 500 páginas, segundo a revista Wired.
E há a opção de acompanhar e expandir as histórias de locais onde ela acontece. Essa opção só está aberta para quem estiver a pelo menos dez metros do cenário segundo as coordenadas do GPS. Uma história de um avião que pousa em Chicago, por exemplo, só poderá ser desbloqueada no aeroporto de O’Hare. Hoje há 250 locais desses no mundo, e os autores incentivam os criadores a elaborarem seus próprios relatórios de campo.
Gastei meus U$ 1,99. Se valer a pena, eu conto.
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“É autoria? Não necessariamente. Autores na nossa época era quem escrevia tudo para a gente ler. O que a gente vê em ‘The Silent History’ é uma combinação de autor com leitor muito mais dinâmica, de pessoas que participam de várias formas.”
O que não é exatamente novo, lembra Meira. Em 1961, Raumond Queneau escreveu sua série de dez sonetos recombinantes. Dez sonetos de 14 linhas em dez páginas, sendo cada linha uma tira recortada. Cada tira que o leitor vira cria um novo poema. A leitura de um soneto por minuto tomaria 190 milhões de anos do leitor. Achei melhor não checar.
E então chegaríamos ao modelo iPod shuffle literário, expressão que Meira toma de Adam Langer, do “The Boston Globe”, em relação às referências explicitadas ou não em “Manuscrito Encontrado em Accra”, mais recente obra de Paulo Coelho. “O mais interessante sobre a abordagem de Coelho não é o que ele afirma ou cita, mas o que ele sugere sobre como textos, inclusive bíblicos, devem ser lidos”, escreve Langer.
O conceito de autoria que se tornou possível com a imprensa criada por Gutenberg (1398-1468), diz Meira, é um parêntesis na história. Antes, era o recr[e,i]ativo, o coletivo, a performance, o instável. Com Gutenberg, veio o original, o individual, o estável, o canônico. Fechado o parêntesis, vêm variações do que tínhamos antes dele (mas agora, veja só, em inglês, sinais dos tempos): sampling, [re]mixing, borrowing, appropriating.
Meu exemplo preferido disso foi uma referência ao blog Bibliotecas do Brasil, no post “Vandalismo e destruição de livros universitários”, sobre alunos com “o péssimo hábito de pegar livros para estudar e marcar os exemplares utilizando-se de canetas marca-texto com a maior naturalidade, sem levar em conta que aquele livro pertence à biblioteca da faculdade”.

“Anotar é uma nova forma de ler”, concluiu Meira. “Provavelmente no futuro vamos descobrir que a única coisa que interessa neste livro da imagem é o que está marcado em cor de rosa e azul. O resto do texto é enchimento de linguiça para vender papel.”
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Essa leitura interfere em tudo que o mercado editorial tem de mais sagrado, que é o conceito de autoria. Não por acaso a mesa seguinte tratava justamente do direito autoral em tempos de livro digital, com representantes de variações internacionais da ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos) e seus olhares mais conservadores e voltados à dinâmica de mercado.
Fui expulsa do Congresso do Livro Digital por uma apuração a concluir na Redação e pelo sotaque de Ranier Just, presidente da Internacional Federation of Reproduction Rights Organizations, num inglês talvez só não mais macarrônico que o meu.
Antes de sair, no entanto, não pude deixar de prestar atenção num argumento que, em tempos de Obama espionando o mundo, vale reflexão.
De Ranier Just: “As pessoas acham que a internet permite o anonimato. Não permite. O consumidor não é mais anônimo, e é sempre possível traçar a linha do produtor ao consumidor. Isso traz novas possibilidades, mas é preocupante quando você pensa em privacidade. Não é legal ter a noção de que outros sabem o que você lê quando vai para a cama.”

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