quinta-feira, 5 de setembro de 2013

MARINA COLASANTI » Fome e polenta‏


Estado de Minas: 05/09/2013 




Faço uma polenta mole, derramada bem quente sobre pedaços de queijo brie, coberta com cogumelos salteados, tomate no azeite e parmesão ralado, que é de se comer trajando roupa de bispo.

Levei um minuto escrevendo isso. Considerando que no mundo, a cada cinco segundos, uma criança morre de fome, quantas crianças morreram enquanto descrevia esse prato?

Vou a restaurantes e vejo pessoas fotografando a comida, mesmo se insignificante do ponto de vista gastronômico. As fotos vão para a internet, onde são consumidas por outras pessoas. Há um casal que janta fora várias vezes por semana, fotografa todos os pratos antes de comer e gasta uma fortuna em restaurantes. Mas não é por isso que 18 milhões de pessoas morrem de fome a cada ano.

Alimentos não faltam, garantiu Jean Ziegler, sociólogo suíço , ex relator da Organização das Nações Unidas  para o Direito à Alimentação. Falta tê-los ao alcance.

Em seu livro O imperador, sobre Hailé Selassié, o jornalista polonês Kapuscinski conta que quando em 1973 o jornalista da televisão inglesa Jonathan Dimbleby chegou mais uma vez à Etiópia, já era considerado um amigo e todas as portas se abriram para ele. Mas Dimbleby foi ao Norte do país, filmou milhares de etíopes morrendo de fome e estradas cheias de esqueletos de pessoas mortas por inanição. O filme foi visto em todo o mundo. Movidos pelo escândalo, observadores, missionários, médicos e membros de organizações humanitárias rumaram para a Etiópia e descobriram que ao lado dos que morriam de fome, armazéns e lojas estavam abarrotados de gêneros. O problema não era a falta de alimentos, era a especulação.

Meu amigo David, do Médicos sem Fronteiras, era uma criança em 1973. Agora, com sua instituição, vai quase todos os anos à Etiópia lutar contra a fome. A fome só se altera enquanto eles estão lá, para voltar à antiga forma depois que partem.

A produção agrícola só faz crescer e, conforme aprendo na entrevista de Ziegler, o mundo poderia alimentar, com uma dieta de 2,2 mil calorias diárias, 12 bilhões de pessoas. Muitíssimo mais do que os que já comem e dos que não o fazem.

E dizer que os pobres sempre souberam transformar em comida qualquer mínimo alimento disponível. Entre uns tantos livros de culinária na minha estante, tenho um que comprei há muitos anos, mais por ternura do que por gula. É La cucina povera, de Houguette Fouffignal. Comem muita sopa os que têm pouco para comer e a sopa pode ser qualquer coisa que tenha um caldo, apenas algo mais do que água quente, para aquecer o ventre semivazio. Cozinhar as ervas ou folhas que se apresentem e molhar sobras de pão. Na Birmânia, se faz com sobras de peixe (cabeças, pele e espinhas) e folhas de couve; na Grécia, com dois ovos, suco de limão e um punhado de arroz; na Península Ibérica, com as ervas perfumadas que o sol garante, quatro dentes de alho, quatro azeitonas, os mesmos ovos gregos e sobras de pão. Nesses lugares, como em tantos outros, a sopa costumava ser o único prato da refeição.

A terceira edição do Rio Gastronomia, que se realizou no mês passado, envolveu 400 restaurantes, um caminhão-cozinha itinerante, programas de televisão e um batalhão de chefs. Foi muito bem-sucedido. A gastronomia tornou-se um ótimo negócio. Já a comida, é apenas uma necessidade.

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