quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Ruas de junho e ironias da história

Vinícius De Bragança Müller e Oliveira

Professor de história econômica do Instituto de Ensino e Pesquisas (Insper)

Estado de Minas: 19/09/2013



Encontrar a medida certa entre a análise eventual, fruto do curto prazo e tomada por preferências e simpatias pessoais, e a análise estrutural, de prazo alongado, amparada em rigor científico e leitura cuidadosa, é uma das mais difíceis tarefas daqueles que pensam com o mínimo de profundidade os caminhos tomados pela sociedade.

As manifestações de junho que incendiaram o país são exemplos de tal dificuldade, dada a eventual adesão de parcelas da população que, a princípio, não deveriam reclamar da conjuntura; afinal, “nunca antes neste país” tivemos tantos motivos para comemorar: ascensão das classes E, D e C, Copa do Mundo e Olimpíadas no horizonte próximo, taxas de desemprego controladas e tudo isso patrocinado por um governo cujo representante maior é oriundo das classes populares, invertendo séculos de domínio da elite corrupta e encastelada na desigualdade que
a beneficia.

Pensei nisso após ouvir meu pai, logo no início das manifestações, indagar sobre os reais motivos de tanta gritaria, já que, segundo ele, não tínhamos uma crise econômica nem um governo autoritário. Indagação típica de quem viveu e lutou contra o governo militar nos anos 70 e enfrentou a hiperinflação dos anos 80.

Em ao menos três situações durante os últimos 100 anos o país viveu momentos de euforia seguida de depressão. As três estiveram historicamente ligadas a líderes de alta popularidade e fortemente personalistas: Vargas, Juscelino e Lula. Cada um promovendo, ao seu modo, a ascensão de grupos sociais escolhidos para serem os símbolos da prosperidade que caracterizaria seus respectivos governos.

A ascensão dos operários e de suas organizações sindicais marcou o governo de Vargas e foi garantida pela ampliação dos direitos políticos e sociais entre a população urbana. Tais direitos, etapas de construção do mundo ocidental pós-iluminista, tiveram no Brasil que se industrializava campo fértil, mas foi limitado pelo autoritarismo de uma das ditaduras mais ferozes que já tivemos. Quando, já nos anos 50, Vargas retomou seu projeto em ambiente democrático, seu governo terminou em uma das maiores crises políticas da história recente, culminando no suicídio de agosto de 1954.

Juscelino, por sua vez, escolheu a classe média como símbolo de seu governo, amparado como estava pela ascensão dos trabalhadores promovida por Vargas. Em outras palavras, o operário beneficiado pela política varguista transformava-se, nos anos de JK, em classe média urbana. Isso em meio ao auge dos debates ligados à Guerra Fria e, portanto, fortemente influenciado pelo que ditavam os EUA. À classe média alta, automóveis; à classe média baixa, eletrodomésticos. Juscelino foi um dos mais populares presidentes da história do Brasil, mesmo que tenha deixado as contas públicas arrasadas e não tenha conseguido eleger seu sucessor.

Já Lula, beneficiado pela melhoria institucional dos anos que o antecederam e pela favorável conjuntura econômica internacional, apostou coerentemente na ascensão das classes E, D e C como símbolo de seu governo. Desdenhou qualquer tipo de crítica que recebia como sendo manifestação da inveja que tinham os opositores de sua popularidade e garantiu que houvesse uma sensação, muitas vezes real, de melhoria de vida da população. Telefonia celular e outros eletrônicos invadiram a vida dos brasileiros, assim como cartões de crédito e financiamentos de automóveis a perder de vista. Elegeu sua sucessora, mas não ampliou significativamente os investimentos em saúde e educação. Em suma, andar de automóvel e falar ao celular, e não ser mais educado e saudável, são os símbolos da ascensão promovida por Lula. Por isso o cartaz que vi em uma das manifestações “queremos hospitais e escolas padrão FIFA” representa o limite dessa ascensão.

Vargas, Juscelino e Lula fazem parte da mesma trajetória, mas deixaram heranças muito diversas. Longe do alarmismo, é ínfima a chance de termos o desfecho trágico como nas duas primeiras ocasiões. Contudo, isso não ocorrerá pela eficiência dos governos Lula e Dilma, e sim pela solidez institucional que, por ironia da história, foi o legado do governo anterior ao de Lula. Aquela mesma, a chamada “herança maldita”. 

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