quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A política é SENHORA - Ângela Faria

De volta a BH, Caetano Veloso fala das manifestações de junho e do sonho de ver vingar a civilização brasileira


Ângela Faria

Estado de Minas: 03/10/2013 



De volta a BH, Caetano Veloso fala das manifestações de junho e do sonho de ver vingar a civilização brasileira  (Marcos de Paula/AE)
De volta a BH, Caetano Veloso fala das manifestações de junho e do sonho de ver vingar a civilização brasileira

Em março, a turnê do disco Abraçaço estreou no Rio de Janeiro. Ao cantar A bossa nova é foda, no Circo Voador, Caetano Veloso disse estar ali “o grito de guerra do Brasil”. Em junho, milhares de manifestantes tomaram as ruas do país. Tachados de baderneiros, os black blocs enfrentam a polícia, alegando lançar mão das pedras para questionar o sistema, com ampla cobertura da rede on-line Mídia Ninja. Autor da música O império da lei, que exige a chegada da justiça “ao coração do Pará”, Caetano Veloso, de 71 anos, surpreendeu muita gente ao visitar o coletivo Mídia Ninja e posar com a máscara dos blocs no rosto. Em entrevista concedida por e-mail ao Estado de Minas, o compositor diz que a violência não funciona. Mas adverte: “Entendo a raiva dos que querem quebrar bancos, butiques e concessionárias de automóveis”. Para ele, o Brasil precisa de coragem para superar seus impasses históricos. Sábado, o “velho baiano” e a Banda Cê trazem o show Abraçaço ao Chevrolet Hall, em BH.

Abraçaço, lançado em dezembro, tem canções que convocam à política. O império da lei é uma delas – veio ao encontro do Brasil que saiu às ruas em junho. O império da lei realmente está chegando ao coração do Brasil, Caetano?
Escrevi essa música quando vi o filme Eu receberia as piores notícias dos teus lindos lábios, em que um assassinato impune se dá no interior do Pará. Já faz anos que esses crimes não castigados vêm se repetindo e isso não é admissível. O Brasil tem de se mover no sentido de respeitar a vida humana. Temos de ser uma sociedade moderna e deveríamos ser mais justos do que as sociedades modernas conseguiram chegar a ser. As manifestações de junho tiveram beleza e sugestividade. Há vida consciente na multidão.

Como você recebeu a decisão do ministro Celso Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), em relação aos embargos infringentes?
Sem surpresa. Quando ficou na mão dele a decisão estava claro que votaria favoravelmente. Naturalmente, muitos brasileiros ficam decepcionados porque pensam que o que se passou ali significa que só pobre vai preso, que essa tradição sinistra é resistente demais e não vai ceder à pressão por responsabilidade. Mas quero crer que tudo isso que tem se passado no Supremo servirá para fazer o tema andar. O mensalão do PT, roçando o poder central, é algo realmente gritante. Mas o mensalão do PSDB mineiro não deve ficar impune tampouco. Seja como for, não sinto desejo de ver pessoas na cadeia. Fico revoltado quando vejo um Pimenta Neves ser agraciado com as nuances da Justiça brasileira quando milhares de pobres estão na cadeia sem julgamento. Mas os juízes do Supremo têm que andar no fio fino que separa a superação desse descalabro da vendeta antipetista. Talvez essa complexificação do julgamento do mensalão venha a ajudar a amadurecer o Judiciário e nosso senso ético. Tomara que não seja apenas uma reafirmação de que pessoas que usam paletó não podem ser punidas.

A canção Um comunista, dedicada ao guerrilheiro Carlos Marighella, fala em guardar sonhos, em utopia, coisas que remetem a um projeto coletivo de sociedade. Você vê utopias assim renascerem no Brasil pós-junho?
Claro que há algo de tudo isso nas manifestações. Mas são tempos diferentes. O prestígio intelectual e moral de que o comunismo gozava desmoronou. Sempre estive à esquerda, mas nunca fui comunista porque sempre achei estranho o que se sabia do mundo soviético. Também o que se passava na China de Mao, na época da Revolução Cultural, era algo aterrador, com jovens fanatizados fazendo justiçamentos em praça pública em nome do governo autocrático. Desejo para o Brasil uma aventura espiritual que supere esses horrores. Para isso, precisamos sair do horror em que vivemos. Suponho que temos recursos. Mas é preciso querer com coragem.

Você cobriu o rosto como os black blocs e considerou violência simbólica proibir o uso de máscaras. O que o levou a esse gesto que tanto repercutiu no país? Você apoia a ação dos blocs, mesmo quando eles recorrem às pedras?
O que me levou foi o pedido de um garoto da Mídia Ninja, que Sidney Waismann (produtor cultural) e eu tínhamos ido visitar depois de falar com Beltrame (José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Estado Rio de Janeiro), numa missão idealizada por Sidney de evitar a violência nas manifestações. O 7 de Setembro estava chegando, anunciavam-se muitas coisas. Não apoio nem aprovo o quebra-quebra. Os black blocs incluem isso (eles também socorrem manifestantes atacados, fazem barreira de proteção dos pacíficos que são alvo das armas não letais da polícia etc.). Sidney e eu quisemos nos aproximar de pessoas que estão no olho do furacão das passeatas. Nosso intuito era argumentar contra a violência. O garoto da Ninja me disse que a Emma, uma black bloc bonita que deu entrevista à Ninja, tinha gostado do artigo que escrevi no Globo sobre ela. Ele queria tirar uma foto minha com a camiseta preta no rosto para mostrar ou dar a Emma. Topei. Sidney e eu estávamos em missão de paz e tínhamos ficado muito alegres com a conversa desses garotos, que explicavam o sentido simbólico dos atos dos BBs, mas não achavam que essa violência fosse a meta das demonstrações. Eles soltaram minha foto na internet. E não fiquei bolado com os Ninjas, porque eu é que deveria saber que uma foto nas mãos deles para ser mostrada a uma black bloc iria logo para as redes. Mas o fato é que não pensei nisso. O pessoal do meu escritório, que toca Facebook, Twitter e Instagram, acompanhando a divulgação de Abraçaço, não gostou. Mas não me arrependi. Já disse mil vezes em meus artigos que entendo a raiva dos que querem quebrar bancos, butiques e concessionárias de automóveis – e que sei que muitos manifestantes que não quebram nada dizem que têm vontade de quebrar. Mas eu sou contra.

A violência é necessária? Funciona?

Não. Nem é necessária nem funciona. Pelo menos não no quadro que se delineou no Brasil agora. Pessoalmente, de todo modo, não suporto violência. E os episódios de quebra-quebra serviram para esvaziar as manifestações. Mas todos sabem que essas marchas não iam se repetir interminavelmente. Embora a gente não saiba se outras virão. Sidney queria fazer uma grande (manifestação), radicalmente pacífica. Ele pensa em Gandhi. Mas os jovens com quem fomos falar não creem que se possa convencer centenas de milhares de pessoas a agirem pacificamente. O sonho de Sidney é que os manifestantes não reajam nem que a polícia atire balas de borracha. Que não reajam nunca. Ele queria também convencer a polícia a não atacar. Mas os dois lados são difíceis de conter. Beltrame nos disse o quanto é difícil para ele. E um assessor dele nos disse a seguinte frase: “A Secretaria de Segurança Pública não é a polícia”. E ele estava certo.

Você é um artista que tem gosto pelo debate, pela arena pública. Que sonhos você guarda?
São sonhos para o Brasil. Gosto de ouvir Jorge Mautner dizer todas aquelas coisas afirmativas sobre o Brasil. Coisas que eu próprio não sei dizer, porque vejo muita coisa ruim. Mas me deixo sonhar com uma experiência nova a partir da civilização brasileira. A reunião dessas duas palavras – que nomeavam uma editora de livros – resume tudo o que sonho. Não é um império do Brasil, como há o americano e houve o inglês. É um mundo pós-imperial, de grande doçura e sabedoria, nascido das peculiaridades que quase só nos têm feito mal. Somos um país gigante, na América, no hemisfério sul, fortemente miscigenado e que fala português. Veja bem: nem é espanhol. É português! Temos um dever de originalidade e temos de querer realizá-la. Por isso leio Roberto Mangabeira. Leio também Olavo de Carvalho, à direita. E ouço e vejo mil outras coisas. Ouço Mautner e Antonio Cicero, Zé Miguel Wisnik e Gilberto Gil. Chorei vendo a exposição de Adriana Varejão.

A articulação da nova Lei do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) dividiu os músicos. Houve racha no Clube da Esquina – Milton Nascimento de um lado; Fernando Brant e Ronaldo Bastos de outro – e até entre os Buarques: Chico de um lado; Ana e Cristina de outro. Sem querer ser “mineira” – mas sendo –, pergunto: passado o “tsunami”, dá para todo mundo retomar a conversa e aparar arestas? Ou a luta continua?
É. Foi um abalo inevitável. Mas se alguém foi mineiro ali, esse alguém fui eu. Quase todo o meu esforço foi no sentido de fazer os dois lados dialogarem. Não era fácil – e a maioria esmagadora dos meus colegas demandava uma reestruturação da gestão coletiva dos direitos autorais no Brasil. Toda essa movimentação ainda está em curso. Fui a uma reunião em que estavam Milton e Brant: não houve hostilidade nenhuma. Suponho que Chico e Ana não tenham nem sequer discutido o assunto. As mudanças eram pedidas com veemência por Djavan, Lenine, Nando Reis, Roberto Carlos, Gaby Amarantos, Pretinho da Serrinha, Racionais MCs, Dudu Falcão, Márcio Vítor, Leoni, Frejat, Ivan Lins... – gente de todas as áreas da música. O pessoal do Ecad não queria fiscalização por parte do Ministério da Cultura. Na verdade, eles não queriam mudança nenhuma. Estavam seguros de que o que faziam era o melhor possível. Mas essa turma grande não pensava assim. Eu e Chico aderimos a essa turma, já que a reação à mudança não nos anima. Mas espero que tudo possa ter uma transição suave.

Nenhum comentário:

Postar um comentário