sábado, 12 de outubro de 2013

Autoras em papo literário - Por Noemi Jaffe

Valor |Econômico - 11/10/2013

Há algo estranhamente comum entre um condutor de caravanas no deserto, um libanês que foge para o Brasil, um neto adolescente que cuida do avô na Austrália e um paulista que escolhe viver num garimpo distante, no meio da Amazônia. São personagens ao mesmo tempo ancestrais e estrangeiros, distantes no espaço e no tempo, perdidos do mundo em seus conformes. É assim também a literatura de Beatriz Bracher: deslocada na linguagem e em seu objeto. Sempre um pouco mais para lá ou para cá, o centro não é seu lugar e o leitor precisará se haver com contos que o põem, sem disfarces, de frente consigo mesmo. Na entrevista abaixo, uma conversa com ela sobre "Garimpo", seu livro mais recente.


Fotos Ana Paula Paiva/Valor / Fotos Ana Paula Paiva/Valor

Noemi (à esq.) e Beatriz: conversa sobre "Garimpo", um romance em construção e a literatura brasileira atual



Noemi Jaffe: Por que o nome "Garimpo", que é o título de um dos contos?

Beatriz Bracher: Um dos contos do livro se chama "O Que não Existe". Tinha pensado em usar esse para o título, mas é muito carregado de significados e eu preferi algo mais concreto e que ao mesmo tempo tivesse múltiplas interpretações. Não queria nada muito filosófico.

Noemi: Percebi que vários contos do livro sofrem uma espécie de corte, de interrupção, é como se não tivessem fim. É isso mesmo?

Beatriz: É curioso que as últimas palavras do conto "Garimpo" e, portanto, do livro, sejam "uns anões", realmente uma forma brusca de terminar. É que nesse conto - e talvez no livro, como um todo - eu queria falar sobre como somos pequenos, como nos assombramos e aviltamos a natureza, inclusive no processo de garimpo. Em várias mitologias são os anões que fazem o garimpo: os nibelungos, os sete anões... Mas não se trata de anões frágeis e fofos. São guerreiros. Lá na Amazônia, os garimpeiros estão se acabando, se matando, nem sabem exatamente por que estão lá, mas não saem. A questão não é só enriquecer. Há algo a mais nesse processo. Eu estive pessoalmente em um local de garimpo na Amazônia e vi que lá o ambiente não é de degradação, mas é como se estivéssemos no Velho Oeste, são pessoas que estão lá porque querem e se sentem independentes, fazem a sua vida sem pedir licença a ninguém, inclusive as prostitutas. Por falar em natureza, o livro tem também uma preocupação com a ecologia e com a linguagem de certo ambientalismo. Penso que corremos o risco de, na defesa da natureza, beirar um autoritarismo excludente com coisas que são muito viscerais no ser humano. É importante pensar na nossa relação com a natureza e com os animais como uma espécie de luta, em todos os sentidos. Quando a respeitamos e também quando a destruímos. Não é porque há covardia que não existe luta, até mesmo entre um homem e o animal que ele mata, como no caso do conto "O Que não Existe" e em "Michel e Flora". Tem uma frase de Karen Blixen que está até no livro: "Quem melhor conhece um leão é o caçador de leão". Toda violência é um tipo de aproximação, um conhecimento muito forte do outro.

Noemi: Acho que sua linguagem está ficando cada vez mais concreta, menos filosófica. É isso mesmo?

Beatriz: Por um lado isso é verdade, mas por outro eu tenho admirado cada vez mais alguns autores que não têm vergonha de se explicar. Sei que existe essa máxima na literatura, que é a de mostrar mais do que interpretar, mas gosto de alguns autores, como Rubens Figueiredo, por exemplo, no livro "Passageiro do Fim do Dia", que percebem a necessidade até política de dar explicações. A despretensão com que ele descreve as coisas me dá a impressão de que tudo fica menos panfletário. Como tudo é muito explícito, não fica parecendo que o narrador quer ocultar algo para o leitor interpretar; é como se fosse o pensamento do próprio personagem.

Noemi: Está escrevendo um novo romance?

Beatriz: Sim e o conto "Suli", que está em "Garimpo", é um trecho desse novo romance, embora também possa ser lido autonomamente. O livro será dividido em quatro partes. A primeira trata de um rapaz que está estudando o livro "O Paraíso Perdido", de Milton. Em função disso, estou lendo muito a "Bíblia" e comparando diferentes traduções dos mesmos trechos. As duas partes finais do livro se passam no futuro: uma em 2020 e a outra em 2050, quando uma garota relembra o passado, incluindo a história desse rapaz. Nessas minhas leituras comparativas descobri, por exemplo, que a criação do mundo por Deus foi traduzida de três formas distintas: por "sopro", "vento" e por "espírito", dependendo do tradutor. É um atributo humano, natural ou divino, de acordo com a interpretação.

Noemi: Como foi sua visita ao garimpo, na Amazônia?

Beatriz: Fui até lá com a intenção de encontrar alguns arquétipos sobre o Brasil, buscar a história antiga, mas acabei encontrando uma história moderna, Não a formação do país, mas sua "des-formação". O garimpo do ferro, por exemplo, destrói a montanha inteira, mas depois se transforma nos objetos que utilizamos diariamente. Tudo o que está sobre a terra já estava sobre ela. Mas com o ouro o processo é diferente. Apenas uma ínfima parte do que é destruído é aproveitado. Cerca de 0,5 grama por tonelada. Dessa forma, a sensação de tocar uma barra de ouro garimpada é muito impressionante. Todo aquele esforço para tirar de dentro da terra algo que não tem utilidade alguma.

Noemi: Sei que você tem uma visão da literatura brasileira mais melancólica do que querem os estereótipos, não é verdade?

Beatriz: Sim. Para começar com o maior de todos, Machado, o romance que inaugura a nossa modernidade foi escrito por um autor defunto, o Brás Cubas, e a morte é um assunto muito importante em todos os seus livros. Depois, se você pensar desde José de Alencar, por exemplo, não em "O Guarani", mas "O Sertanejo", vai reconhecer esse aspecto. Dyonélio Machado, Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Hilda Hilst, Pedro Nava, para não falar em Drummond, há toda uma linhagem de grandes autores tristes na nossa literatura. Mas, quando retratam o Brasil lá fora, parece que há uma necessidade de só mostrar um Brasil feliz, artificialmente feliz. A própria antropofagia não é só ufanismo e euforia. A injustiça social, mas também a injustiça jurídica brasileira, são coisas muito tristes. A história da nossa formação, o início da nossa miscigenação são senhores estuprando suas escravas. Não entendo por que ninguém fala sobre isso. Por que não usam essa palavra quando falam da tendência do português a se miscigenar: estupro?

"Garimpo".

Beatriz Bracher. Editora 34, 134 págs., R$ 32,00



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