sábado, 21 de dezembro de 2013

A escuta do silêncio - José Castello


A primeira imagem do rei que a escritora
alemã (nascida na Romênia)
Herta Müller conheceu não
veio dos contos de fadas, mas de
uma peça de um jogo de xadrez
que seu avô construiu na prisão.
Fazer aquele xadrez deu segurança ao avô prisioneiro.
Mais do que depois jogar com ele, fazêlo
foi o que o salvou. O avô jogou xadrez o resto
da vida. Só parou quando o último companheiro
fiel de jogo faleceu. Então, passou a jogar cartas
com a família.

Reis têm uma imagem complexa: falam da
grandeza, mas também da tirania, da insegurança,
e ainda do poder de salvar. A palavra “rei” se
tornou, por isso, uma palavra central na obra de
Herta, nascida em 1953. Desde menina, se intrigou
com a linguagem usada na imprensa da República
Democrática Alemã, a comunista, para
se referir às coisas comuns. Por exemplo, não se
falava nos “anjos das árvores de natal”, mas nas
“figuras-aladas-de-fim-de-ano”. Não falavam
em bandeirolas, mas em “elementos de abanar”,
para assim não ferir a honra dos símbolos do Estado.
Ninguém falava em caixão, mas em “móvel
de terra”, e uma repartição do serviço secreto era
chamada, em geral, de “alegria e tristeza”.

Essas contorções da linguagem levaram Herta,
desde muito cedo, a se impressionar com a
maleabilidade e a potência das palavras. Ela relata
essas lembranças no ensaio que dá título à
coletânea “O rei se inclina e mata” (Biblioteca
Azul). Muitos ecos se guardam dentro de cada
palavra, ela medita. “Móvel de terra” (para caixão)
é, por exemplo, “uma palavra em que se ouve
o medo da morte”. Conclui a escritora, ainda,
que “a verdade está nas palavras estranhas”.
Sempre que a língua é retorcida, amarrada, algo
se esconde nas entrelinhas. “Quando se quer
descobrir a verdade, precisa-se encontrar essas
palavras que se misturaram entre as outras, que
não nos dizem respeito”.

Em sua delicada reflexão sobre a linguagem
do poder, que tanto pode ser bom (alimentar)
como mau (matar), Herta Müller conclui que, entre
os diversos reis existentes, é o rei da cidade
quem se inclina e mata. “O rei da cidade não revela
as suas fraquezas, quando ele cambaleia, parece
que está se inclinando, mas ele se inclina e mata”,
justifica. Na sua história pessoal e em suas lembranças,
este rei tem um nome: o ditador romeno
Nicolae Ceaucescu (1918-1989),
que presidiu o país durante 24
anos. Herta passou a infância
em uma pequena aldeia da região
do Banat, dominada pela rotina
das cooperativas agrícolas.
Adulta, estudou literatura
germânica em Timisoara, capital
da província. Foi ali que tomou
contato com a verborragia
exagerada dos funcionários oficiais
e que passou a entender
que o poder se infiltra nas palavras
e nós o engolimos.


“Procurávamos por saídas que porém não havia
em lugar algum”, ela rememora. Aí lhe surge a literatura
(a palavra de novo) como porta de salvação
contra as próprias palavras. Todos estavam tomados
pelo medo, cada um a seu modo, e Herta
aprendeu a observar “em que posição estava o medo
de cada um”. Foi a literatura quem lhe deu a expressão
“fera d’alma” (Herztier no original), “um sinônimo
que inventei para encobrir a palavra rei”.
Na cidade, o rei estava por toda parte, estava escondido
nas coisas. “O rei estava na minha cabeça desde
a infância. Ele estava enfiado nas coisas. Mesmo
que eu nunca tivesse escrito uma palavra, ele estaria
estado presente”.


“Fera’alma”, na verdade, não
fala só do rei, mas também da
“gana de viver” que a onipresença
do rei provoca. “Eu queria
uma palavra de dois gumes, tão
de dois gumes quanto rei deveria
ser”, explica. Uma palavra
que, como um rei, salva e fere ao
mesmo tempo. A ideia de um
rei, diz Herta, surge sempre que
não há mais lugar para o pensamento.
Aquilo que fica fora do
pensamento, aquilo de que o
pensamento não dá conta, é o poder do rei. É o
impossível, talvez o absurdo. Por isso, a presença
do rei a seguiu pelo resto da vida, mesmo quando
se mudou para a Alemanha. “O rei me seguiu primeiro
do vilarejo para a cidade, depois da Romênia
para a Alemanha, como reflexo das coisas que
para mim jamais se esclareceriam”. Luta para defini-
lo com mais precisão: “Ele personifica toda
a extensão das coisas; quando não há mais palavra
que sirva na corrida errante do pensamento,
digo até hoje: opa, lá vem o rei”.


Cada vez que o real lhe dava um golpe — o
“suicídio” do amigo Roland, enforcado na prisão
— a presença do rei se impunha. Horrorizada,
Herta passou a evitar os laços e as cordas. “Após
o enforcamento do amigo passei a ver todos os
laços em todos os lugares com outros olhos”. Passou
a temer e a evitar, por exemplo, as alças de
apoio que existem dentro dos ônibus. “Se um casaco
está pendurado num cabideiro, ele tem, por
um instante, como se houvesse um estalar de
dedos no cérebro, pés que, então, desaparecem
de novo”. Herta vê a presença e a astúcia do rei
presente até nos contos de fadas romenos. Imita
o estilo retorcido das narrativas romenas para as
crianças: “Era uma vez do jeito que era. E isso foi
naquele tempo, quando era, do jeito que jamais
havia sido. Era uma vez, quando era indiferente
o jeito como era. E era uma vez, em que não se
sabe quantas vezes já fora”. A questão não estava
no que se pretendia dizer, mas na forma extravagante
e torta de dizer. As afirmações são contorções.
Contorções da linguagem, que se torna um
instrumento de muitos gumes.


Herta Müller fala (inventa) pelos poderosos:
“Tínhamos uma visão ampla de nossos labirintos
fraseológicos, possuíamos uma espécie de
soberania territorial, inseríamos tantas trilhas
e desvios até que nossas cabeças zuniam”. A
serviço dos tiranos, as palavras se enroscam e
se esgoelam. As frases tortuosas do regime romeno
ensinaram a Herta Müller a grandeza,
mas também o perigo guardado na língua. Instrumento
de dois gumes, devemos estar sempre
alertas quando a manipulamos. A grande
estratégia do rei é se fazer amar e as palavras
são muito eficazes para isso. Elas incham nos
corações. Elas se erguem no lugar de coisas que
estão acontecendo em silêncio e que não correspondem
a nome algum.

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